Desafio do juiz é dar resposta que vai além
17 de janeiro de 2010, 8h11
Casos difíceis ou “hard cases” são aqueles que não encontram solução tranquila no ordenamento jurídico, em face da existência de conflitos existentes entre as diferentes normas constitucionais incidentes sobre a matéria.
Ronald Dworkin (na obra O império do direito, Ed. Martins Fontes) é um dos autores que melhor se ocupa da análise destes “casos difíceis”, propondo que as diferentes soluções sejam enfrentadas pelo operador jurídico. Para tanto criou a figura do juiz Hércules, que tem por dever solucionar a controvérsia a partir dos diversos princípios constitucionais incidentes, de modo a garantir a unidade e integridade do sistema jurídico.
Dois exemplos de casos difíceis, que este ano deverão ser objeto de acurado exame pelo Supremo Tribunal Federal: o direito prestacional à saúde e o sistema de cotas para ingressos nas instituições públicas de ensino superior.
A importância destes temas restou reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal ao submetê-los a audiências públicas. Por iniciativa do ministro Gilmar Mendes em abril e maio de 2009 ocorreram discussões públicas para tratar do direito a saúde. No tocante às cotas sociais e raciais, o ministro Ricardo Lewandowski, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 e no Recurso Extraordinário 597.285, designou os dias 3 e 5 de março próximo para oitiva da sociedade.
Relativamente ao direito à saúde, o colegiado do Supremo Tribunal Federal ainda não se posicionou, embora as audiências públicas já datem de quase um ano. Entretanto, o presidente da Corte, ministro Gilmar Ferreira Mendes, traçou orientações iniciais nas decisões proferidas nas Suspensões de Tutela Antecipada (STAs) 175, 178 e 244, reconhecendo o dever estatal à prestação de medicamentos “se a prestação de saúde pleiteada não estiver entre as políticas do SUS” sendo “imprescindível distinguir se a não prestação decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, de uma decisão administrativa de não fornecê-la ou de uma vedação legal à sua dispensação”, observada a necessidade de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para o deferimento judicial da medida deve haver suficiente fundamentação e detalhado exame dos motivos que levaram o SUS a não fornecer a prestação desejada.
Quanto às cotas para ingresso nas universidades públicas, ainda não houve um posicionamento da Suprema Corte, embora haja grande divergência na jurisprudência dos demais Tribunais (ora validando a política de criação de cotas, ora invalidando-as, ora invalidando apenas as cotas raciais).
Em ambos os casos é importante que haja uma desapaixonada discussão dos diferentes pontos de vista, com o exame aprofundado dos princípios constitucionais contrapostos, tais como princípio da legalidade, separação dos Poderes, unidade da Constituição, concordância prática, dentre outros, que devem ser harmonizados com normas constitucionais como o direito à saúde, direito à vida e os objetivos fundamentais expressos na nossa Carta Política, dentre eles a erradicação da pobreza, dignidade da pessoa humana e a busca pela construção de uma sociedade justa e solidária.
Embora não se trate de tarefa simples, vejo nesses hard cases uma grande oportunidade para que a Suprema Corte não se limite a resolver apenas os conflitos normativos imediatos, mas principalmente traçar diretrizes para a solução de muitos outros conflitos aparentes entre as diversas normas constitucionais e dos direitos sociais.
Tanto o direito à saúde quanto as cotas fazem parte dos direitos fundamentais de segunda geração, também chamados de direitos prestacionais, segundo os quais o Estado tem o dever de atender materialmente aos indivíduos. Embora não se possa dar a mesma densidade para todos os direitos sociais (dispersos por toda a Carta Política), seria de bom alvitre que a solução para estes casos difíceis trouxesse luzes para a solução de outros conflitos que logo serão postos à discussão.
Isto porque a tensão entre direitos fundamentais sociais e princípios como a separação de poderes e reserva possível, entre outros, é permanente, o que está a justificar a delimitação da justiciabilidade dos direitos prestacionais e da atuação jurisdicional, de modo a haver uma diretriz segura a ser trilhada nas diversas demandas deste jaez.
Tomando-se o direito à saúde como mote, há que se analisar não apenas a dispensação de medicamentos excepcionais – tema tão em voga nos Tribunais –, mas também o direito prestacional à realização de procedimentos médicos, ou ainda, trazer luzes às escolhas trágicas que os profissionais, seja do Direito ou da medicina, por vezes tem que fazer: quem deve ser operado primeiro? O mais urgente? Aquele que está na fila? Aquele que o juiz determinou? Qual médico deve ser o cirurgião? Qual cidade? Qual hospital? A quem compete tais escolhas? Ao Juiz, à parte que necessita da prestação ou do sistema de saúde?
Indagações como estas repetem-se frente a outros direitos fundamentais prestacionais, como o direito à educação, à moradia e à segurança, para ficarmos apenas nos elencados no artigo 6º da Carta Política, embora sobre estes não resida a dramaticidade que o direito à vida traz ao tema. Há direito subjetivo (individual, difuso ou coletivo) a ser judicialmente reivindicado para se postular a construção de creches, de escolas ou de moradias populares? É possível compelir-se o administrador público para que promova a construção e aparelhamento de postos de saúde? Ou a construção de delegacias de polícia, penitenciárias ou promova o policiamento ostensivo em determinados locais?
É certo que todos estes direitos prestacionais representam anseios da sociedade como um todo, bem como é certo que nem todos podem ser imediatamente satisfeitos pelo Poder Público, ante a insuficiência de recursos.
Sendo a tensão entre as escolhas políticas, as possibilidades fáticas e os deveres estatais permanentes, não é recomendável que meras soluções casuísticas sejam dadas a problemas tão intrincados e recorrentes.
O desafio é hercúleo, utilizando a figura criada por Dworkin, mas a conformação entre o direito e a realidade exige respostas que possam atender não apenas casos específicos (como dar ou não dar medicamento para determinada pessoa), mas principalmente a construção de exegese que dê conta da concordância prática entre as colisões normativas existentes, iluminando o caminho para uma hermenêutica constitucional que sirva como paradigma para a concretização dos direitos sociais, resultando em maior segurança jurídica, harmonia, isonomia e Justiça.
* João Pedro Gebran Neto assume interinamente a coluna até o final de janeiro.
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