SEGUNDA LEITURA

Novo mundo judiciário alterou o papel de seus atores

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  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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18 de abril de 2010, 11h10

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O Judiciário acha-se em transformação. Isto é inegável. Múltiplos fatores contribuem para tal situação. Mas o primeiro deles é a mudança do mundo. Costumes, moral, economia globalizada, práticas religiosas, tudo está cambiando rapidamente. Tudo isto sem falar que passamos do regime militar para a plena democracia. Não era de se esperar que o Judiciário permanecesse o mesmo. As mudanças deste Poder foram e são inevitáveis.

Neste mundo novo as normas assumiram novas características. Há mais preocupação com os direitos coletivos (v.g., Código do Consumidor). A Constituição Federal fortaleceu os direitos e garantias individuais (art. 5º). Aos juízes, deu-se poder nunca antes visto (v.g., o de alterar contratos, art. 478 do C. Civil).

Portanto, só alguém de posição conservadora extrema, aferrado ao passado, poderia sustentar que o Judiciário deveria ser o mesmo de 50 anos atrás, ou seja, igual ao de 1960. Impossível. Mas aos leitores mais jovens, cumpre esclarecer como era o Judiciário daquele tempo.

Em 1960 não havia Justiça Federal e a Justiça do Trabalho era menos conhecida e estruturada. Os Juízes de Direito eram homens (mulheres nem sequer se inscreviam nos concursos), regra geral discretos e cercados por uma aura de respeito. Os promotores ocupavam uma sala no Fórum, não tinham servidores nem estrutura de trabalho. Os funcionários, exceto o escrivão, raramente eram formados em Direito. Os advogados eram poucos e suas vitórias contadas com admiração.

As ações envolviam conflitos individuais. Direitos coletivos, só em eventuais casos de litisconsórcio. O tempo de duração do processo jamais foi mensurado, mas era razoável. Tudo, ou quase tudo, começava e terminava em duas instâncias. Recursos extraordinários ao STF só em hipóteses raras.

No entanto, a partir do fim dos anos 1970, as coisas começaram a mudar. A mecanização da agricultura, o inchaço das cidades, o agravamento dos problemas sociais, o aumento da violência, somados a outras tantas mudanças, resultaram em uma explosão de processos. E entre tantas razões para esta judicialização de temas do cotidiano, influiu também a impossibilidade da lei excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, inc. XXXV).
Atualmente, todas as unidades judiciárias vêem-se repletas de processos. A Justiça Federal está envolvida em milhares de ações de natureza previdenciária, transformando Varas ou Juizados Especiais em repartições mais aparelhadas do INSS. Na Justiça do Trabalho novas competências resultaram em mais processos. O mesmo se dá na Justiça Estadual.

O resultado desta massificação de causas, que invade e inviabiliza Juízos ou Juizados Especiais, ainda não foi bem dimensionado. Mas todos reconhecem que é impossível a estrutura do Estado acompanhar o crescimento desordenado de demandas. A correção monetária disto ou daquilo pode significar milhares de ações. Uma verba cobrada em um plano de telefonia, idem.

Na ânsia de dar a resposta em tempo hábil, o juiz passou a transformar-se. Adaptou-se à informática, o que é bom. Mas ela não deu a solução. Daí partiu para a delegação de tarefas. As assessorias cresceram. Sendo insuficientes, passou-se a recorrer a servidores, estagiários ou trabalhadores voluntários. Projetos de decisões, sentenças ou votos nos Tribunais, passaram a ser ferramentas indispensáveis.

Não há mais tempo para ler os processos. E projetos legítimos, como a Meta 2 do CNJ, obrigam que a celeridade seja ainda maior. Sentenças ou votos passam a ser genéricos, uma chapa comum que se adapta aos casos. Um relatório que nada diz em concreto, motivação com doutrina e jurisprudência, mas que não enfrenta a prova, e uma parte dispositiva que decide a lide. Equívocos, por isso mesmo, tornam-se cada vez mais comuns.

Na Justiça dos Estados há dificuldades adicionais. Muitas vezes as instalações são inadequadas. Fóruns antigos, desprovidos de rede elétrica que permita a instalação de rede de computadores, salas de espera que obrigam testemunhas a ficar diante de réus, divisórias improvisadas, sem as mínimas condições de trabalho. O número de servidores geralmente é insuficiente para o volume de processos. A criação de cargos por lei e o provimento por concurso nunca acompanham a explosão de processos. Por outro lado, o CNJ proibiu a utilização de funcionários das prefeituras. Estas condições geram desânimo e baixa estima, refletindo diretamente na eficiência dos serviços.

Este novo mundo judiciário vem alterando o papel a ser exercido por cada um dos atores jurídicos. O juiz passa a ser mais um administrador do que um julgador. Alguns servidores passam a atuar como juiz de fato. Advogados cada vez querem mais conversar com o juiz, temerosos de que seu caso não seja, de fato, por ele examinado. O juiz cada vez com menos tempo, nem sempre está disposto a ouvir o advogado. O Ministério Público, pela respeitabilidade conquistada, muitas vezes conduz o processo, pois o juiz, envolvido em milhares de casos, opta por adotar as promoções do órgão.

Nem todos estão satisfeitos com este estado de coisas. De dois desembargadores de elevado conceito, um do TJ-SP e outro do TRF-4, que se aposentaram voluntariamente, ouvi como justificativa o fato de que não conseguiam adaptar-se a este novo sistema, no qual não havia mais tempo para ler os processos e eventual atraso poderia ser alvo de representação.

Preocupado, pensei: a tendência será os mais dedicados baterem em retirada? Teremos cada vez mais delegação de jurisdição? Será este o sistema que conquistamos depois de 20 anos de democracia? Vale a pena esse acesso à Justiça sem limites que acaba inviabilizando-a? Acharemos solução para o problema ou estaremos, em 2020 (para não falar em mais 50 anos), a falar dos mesmos problemas?

O fato é que a mecanização do Judiciário chegou e todos, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, dela são vítimas.
 

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