Prisão sem julgamento

A prisão espetáculo de Roger Abdelmassih

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8 de setembro de 2009, 12h24

Entre 1936 a 1938, a Rússia comunista produziu uma série de três julgamentos contra os oponentes políticos do seu então ditador Joseph Stalin. Passaram à História como os “Julgamentos Espetáculos de Moscou”. Belas e profundas páginas sobre tais julgamentos foram escritas pelo advogado inglês Sadakat Kadri no primoroso livro The Trial.

O crime comum imputado aos acusados era destruir a União Soviética e assassinar Stalin. Todos eles não só eram confessos como pediam a si punição máxima.

Os julgamentos caracterizaram-se por grande publicidade, massivo apoio popular; haviam sido preparados e foram desenvolvidos de tal forma que mesmo vários observadores ocidentais à época acreditaram terem sido processos justos.

Mas o tempo mostrou, tarde demais, que os acusados eram inocentes.

O método para obter o reconhecimento de culpa foi ameaçar os acusados, humilhar e destruir suas vidas e de seus familiares, submetê-los à pressão da opinião pública, e mantê-los presos até concordarem em confessar.

E eles confessaram com riqueza de detalhes, mostrando os pormenores de seus planos, suas tentativas, encontros secretos etc., tudo narrado com grande coerência (embora, houvesse alguns detalhes errôneos mas que “passaram” desapercebidos aos julgadores, como no depoimento de um dos acusados descrevendo um encontro com outro conspirador no ano de 1932 num hotel em Copenhague, que, na verdade, já havia sido demolido em 1917).

Quem acompanhou os Julgamentos Espetáculos à época provavelmente se convenceu da culpa e da existência do complô, logicamente desde que fechasse os olhos a certos inconvenientes detalhes.

Os julgamentos atingiram seu real objetivo de consolidar uma política de terror, legitimar novos parâmetros de poder, intimidar inimigos, e obter apoio da população pela ampliação controlada da insegurança geral (só Stalin poderia salvar a pátria).

Tudo isso poderia ter ocorrido sem julgamento, afinal era uma ditadura, mas só com os espetáculos poderia se conquistar amplamente a opinião pública. Era um poder liberticida que estava se consolidando, e isso só ficou claro ao longo da História.

Sob pesadas acusações está preso, antes de ser julgado, o facultativo Roger Abdelmassih.

Ele está preso sob a acusação de ser autor de vários estupros, covardemente praticados contra suas pacientes, indefesas sob efeitos de anestesia. Mais de 70 mulheres resolveram apresentar seus testemunhos, suas palavras de vítimas vieram com riqueza de detalhes.

“As taras dos homens são terríveis”, disse uma vez uma delegada, ao tratar de outro caso famoso de um médico no centro-oeste.

Pior ainda, há suspeita de manipulação de óvulos e fraudes para melhorar a taxa positiva de resultado de gravidez na clínica.

A certeza dos crimes cometidos e a questão sobre fraudes em procedimentos médicos não deixa dúvidas sob a futura condenação. A sua clínica irá desaparecer.

Mas há alguns detalhes a serem ponderados. O conceito de estupro foi estuprado pelo legislador, que o ampliou para causar comoção na opinião pública. Ao invés de apenas agravar a pena, a lei preferiu piorar o fato, mudando o nome com a complacência da imprensa. A defesa, ainda, argumenta com o imenso número de mulheres atendidas na clínica contra o pequeno número de queixosas.

Pessoalmente sou inclinado a crer que haja culpa, pois é muito provável, pelo que se lê da imprensa, que tenham ocorridos os fatos, consequentemente ele deva ser condenado com o maior rigor possível, respondendo por todas as consequências.

Mas… E se ele for inocente ? E se não for verdade o que lhe imputam ? Ou, se houver exagero? E se o processo judicial — e ele existe para isso — provar a inocência do médico?

Afinal, erros em casos de crime existem há tempos, não que eu acredite na inocência de Roger, mas, e se for o caso ? Não parecia certíssima a culpa dos envolvidos no caso da Escola de Base ? Que falar então dos Irmãos Naves, quem duvidaria do homicídio e da confissão deles? E o comandante Dreyfuss?

Não só para evitar erro judiciário Roger poderia aguardar o julgamento em liberdade, afinal não estão livres Daniel Dantas, Igor Ferreira da Silva, Pimenta Neves, Rugai, etc.?

Eis o retrato do nosso sistema jurídico penal: Roger preso sem julgamento, Pimenta Neves, que foi condenado, está solto.

Não se pode comparar a ditadura stalinista com a democracia brasileira; não se pode comparar o Judiciário e o sistema jurídico soviético com o brasileiro.

Igualmente, não se pode comparar a violência daquela página negra da História, com a que estamos vivendo; a rigor nada poderia ser comparado a não ser por dois pequenos mas fundamentais detalhes: ambos os casos têm como objetivo real a consolidação de um pensamento liberticida que apenas se começa a se revelar e necessita de espetáculo a todo custo para se legitimar; e, a pena em ambas situações começou muito antes do julgamento.

Roger merecerá a prisão, merecerá arcar com as vultosas indenizações que as queixosas eventualmente poderão propor na Justiça Cível, deverá perder o direito de ser médico; mas merecerá isso após ser julgado e condenado, e não antes.

Diferentemente do ocorrido em Moscou, Roger deverá ter um julgamento justo, os acusados por Stalin só o tiveram pela História; mas igualmente aos julgamentos de Moscou, isso acontecerá tarde demais, ou porque sendo inocente Roger, a absolvição ser-lhe-á caríssima e sob certos aspectos inútil. Sendo culpado, a pena ficará acentuadamente agravada pois a punição já lhe adveio há muito tempo.

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