Responsabilidade civil

O exercício do direito por si só, não autoriza abuso

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26 de novembro de 2009, 15h48

Para coibir atos maliciosos que em nome do “exercício de um direito” encontrava guarida numa omissão legislativa, foi positivada a Teoria do Abuso de Direito. Conhecido na jurisprudência estrangeira, desde 1855, verifica-se expressamente no Brasil, no Código de Defesa do Consumidor (art. 28), no Código Civil de 2002 (arts. 187 c/c 927), na Constituição Federal de 1988 (arts. 3º, I), e implicitamente nos artigos 110, 112, 129, 138, 145, 147, 148 do nosso Código Civil.

Em suma, trata-se de atos realizados sob a máscara de uma aparente licitude que ocultam uma intenção ilícita por contrariar a boa-fé, bons costumes, fins econômicos e social do ato, ou nas palavras de Eduardo Jordão: “o abuso de direito é um ato ilícito porque contraria o dever de boa-fé imposto por uma norma do sistema jurídico, o princípio da boa-fé”[1].

O primeiro caso de abuso de direito é considerado por muitos como o famoso affaire de la fausse cheminée apreciado na França de 1855, pelo qual um cidadão, nos limites de sua propriedade, alegando exercício de um direito, ergue uma chaminé enorme e falsa. Ou seja, não havia liberação de fumaça, nem benefício sequer, visava apenas tapar a janela principal do vizinho, para lhe cercear o acesso à luz e ao vento.

Surgi assim a famosa teoria do “abuso de direito” na França, para reprimir essas condutas maliciosas, que muitas vezes eram injustamente cometidos sob a guarda e permissão jurídica feitas “no exercício de direito”.

Abuso de direito e sua ilicitude
Conforme ensina Eduardo Ferreira Jordão: “o abuso de direito é um ato ilícito porque contraria o dever de boa-fé imposto por uma norma do sistema jurídico, o princípio da boa-fé”[2].

O exercício de um direito por si só, não autoriza a exercê-lo com abuso (princípio da boa-fé objetiva).

Sobre a identificação de um ato em abuso preleciona Eduardo Jordão:

“O ato abusivo é, assim, o ato ilícito perpetrado sob aparente titularidade de direito, ou, destrinchando este conceito, é o ilícito que, embora aparentemente tenha sido perpetrado no exercício de um direito, viola princípios gerais limitadores dos direitos subjetivos.”[3]

Aparente conflito entre os artigos 178 e 927 com o artigo 188, todos do Código Civil de 2002
Citados dispositivos legais se harmonizam conforme observa-se na seguinte interpretação sistemática:

a) Aquele que por ação ou omissão voluntário, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (art.186 CC/02) e por conseqüência deve repará-lo (art. 927 CC/02);

b) Entretanto, se tal ato foi praticado no exercício regular de direito ou em legítima defesa, nesse caso não será considerado ilícito, não se falando em indenização. (art.188 CC/02);

c) Porém se esse exercício regular de direito excedeu manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes deve ser considerado ilícito e ser indenizado (art. 187 CC/02).

Pode-se identificar a boa-fé em diversos dispositivos constitucionais dentre os quais o artigo1º, III, artigo 3º, I, artigo 4º, VI e VII, todos da CF de 1988. Na esfera infraconstitucional denota-se a boa-fé implicitamente nos artigos 110, 112, 129, 138, 145, 147, 148, todos do CC/02.

Matéria de ordem pública
É importante observar que o abuso de direito, previsto no artigo 187 c/c 927 ambos do Código Civil de 2002, sendo, portanto, matéria de ordem pública, visto que previsto em lei, tendo caráter cogente e consequentemente deve ser conhecido de ofício pelo juiz.

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

Caso o magistrado, em um caso concreto, não se manifeste a respeito do mesmo em sua sentença, pode-se inquiri-lo a fazê-lo através de Embargos de Declaração ou para evitar maiores delongas remeter à análise diretamente ao tribunal, conforme dispõe o Código de Processo Civil em seu artigo 515.

Nesse sentido, preleciona Fredie Didier Jr:

“A devolução permitida pelo parágrafo 1º do artigo 515 do CPC refere-se a questões suscitadas e discutidas no processo, mas que não foram abordadas na sentença, total ou parcialmente. Nesse caso, caberia ao interessado a interposição de embargos de declaração, ao fito de suprimir a omissão incorrida pelo julgador, ou, para evitar maiores delongas, já intentar seu recurso de apelação, incluindo a matéria, cuja apreciação pode e deve ser feita pelo tribunal”[4]

Assim, caso as partes não suscitem a apreciação do abuso do direito, nos termos do artigo 515, parágrafo 1º, CPC, pode o magistrado conhecê-lo de ofício por tratar-se de matéria de ordem pública.

O abuso de direito, expressamente no artigo 187 c/c 927, ambos do Código Civil de 2002, e no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor deve ser analisada e tutelada pelo Poder Judiciário para cumprir o preceito constitucional entabulado no artigo 5º CF/88, in verbo: (…) “XXXV — a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O exercício regular do direito e sua relatividade
Vale mencionar que já decidiu o STF, que mesmo os princípios e garantias fundamentais não são absolutos, ao analisar caso de violação de correspondência (art. 5º, XII, CF/88) pelos diretores de presídios, assim se manifestando: “Os direitos e garantias fundamentais não podem ser usados como salvaguardas de atividades ilícitas”:

“Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal pela possibilidade excepcional de interceptação de carta de presidiário pela administração penitenciária, entendendo que a ‘inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas”[5] [6]

Assim, fica evidente que o exercício regular de direito não é absoluto, visto que nem mesmo as liberdades individuais o são.

Conclusão
O sistema normativo deve ser visto como um todo, assim como os direitos subjetivos devem ser analisados e contrastados com seus limites.

Os direitos subjetivos têm as limitações que lhe impõe o sistema jurídico.

Assim, surge no direito estrangeiro e posteriormente na justiça pátria o “abuso do direito”, que na verdade seria um uso irregular de um suposto direito que por ser praticado com ofensa a boa-fé perde seu caráter de direito e torna-se ilícito.

Quanto à extensão e aplicação convêm mencionar que a citada teoria é aplicável em vários campos do direito, pois é exigível o bom comportamento, boa-fé, lealdade no convívio e mesmo nos litígios (vide art. 17, 18 CPC – litigância de má-fé) no direito civil, bem como nas relações de direito administrativo (nos tratos da administração pública com seus administrados ou servidores e vice-versa), direito penal, direito previdenciário, eleitoral, consumerista, enfim todos os ramos do direito incluindo-se o direito constitucional.


[1] Jordão, Eduardo. Repensando a Teoria do Abuso de Direito. Coleção Temas de Direito Civil em homenagem ao Teixeira de Freitas Coordenada por Rodrigo Mazzei. Vol. I, Salvador, Editora JusPODIVM, 2006, pg.102.

[2] Jordão, Eduardo. Opus citus, pág. 102.

[3] Jordão, Eduardo, op. Cit., pg.138.

[4] DIDIER JR., Fredie; DA CUNHA, Leonardo José Carneiro. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3, meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. Salvador, 2007, 4ª edição, editora JusPODIVM, pág. 100.

[5] MORAES, Alexandre. Op. Cit. pág. 84.

[6] STF – 1ª T. HC nº 70.814-5/SP, Rela. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 24 jun. 1994, p. 16.650 – RT 709/418.

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