Repercussão geral

Maior controle na primeira instância pode desafogar STF

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22 de junho de 2009, 8h26

A chamada “crise dos números” (1) atualmente enfrentada pelo Pretório Excelso não é recente na história jurídica nacional. Desde a criação do Supremo Tribunal Federal, pelo Decreto 848 de 1890, sua competência foi alvo de inúmeras alterações.

Vindo de uma recente ditadura militar, o Constituinte de 1988 preocupou-se em dar uma grande abertura democrática aos brasileiros, a qual incluiu um amplo acesso à justiça, sendo que coube ao Supremo Tribunal Federal a defesa da autoridade da constituição recém criada, quando provocado por meio do recurso extraordinário, além de outras atribuições.

Porém, devido às inúmeras matérias tratadas pelo texto constitucional, criou-se uma supercompetência. Dai a problemática. Como poderia uma corte composta por apenas onze ministros julgar tantas questões trazidas pelos milhares de causídicos vindos de todo o país. Apenas para lembrar, o Supremo Tribunal Federal julgou no ano de 1.904, 26 recursos. Agora, no ano de 2007, recebeu 91.087 recursos.

Nos estudos da Reforma do Judiciário chegou-se à conclusão de que o Supremo deveria filtrar melhor as questões que lhe eram trazidas, concentrando-se naquelas que afetassem a vida de um maior número de pessoas. A Emenda Constitucional 45 de 2004 trouxe em seu bojo alterações substanciais à constituição, sendo alvo de elogios e críticas pelos diversos setores da sociedade.

Em decorrência dessas alterações, a criação da preliminar de repercussão geral, como requisito de interposição e julgamento do recurso extraordinário, foi a solução apresentada pelo legislador para delimitar o campo do julgamento dos recursos levados ao Supremo Tribunal Federal. A questão trazida à baila é que se com estas alterações, especialmente o requisito da repercussão geral, não se estaria ofendendo as garantias conquistadas pelo povo, introduzidas pela nova constituição, no que se refere ao amplo acesso à justiça e, assim, afastando a população do judiciário, dificultado ou até impedindo a revisão de decisões, ou se a reforma veio para dar maior efetividade à jurisdição constitucional.

Inicialmente devemos lembrar que o mais famoso documento medieval que iniciou o sistema de garantias positivadas, indicado quase unanimemente pela doutrina, é a Magna Carta Inglesa (1215-1225). Mesmo assim, segundo Albert Noblet, citado pelo mestre José Afonso da Silva, “longe de ser a Carta das Liberdades nacionais, é, sobretudo, uma carta feudal, feita para proteger os privilégios dos barões e os direitos dos homens livres…” (2)

Na evolução dos direitos fundamentais positivados, o constitucionalismo ou o movimento constitucional, iniciado pela Constituição Norte-Americana de 1787, necessitou-se o que um dos poderes do Estado defendesse a constituição escrita, em sua última instância, com a última palavra. Este era o Poder Judiciário, e sua última instância, a Corte Constitucional ou, para os norte-americanos, a Suprema Corte, Tribunal Constitucional Federal na Alemanha, ou ainda, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal.

Ora, com a garantia de amplo acesso à Justiça, os países que elaboraram seus textos constitucionais começaram a receber inúmeros recursos dirigidos às suas Cortes Constitucionais, abarrotando os tribunais de processos, o que, praticamente, inviabilizou o sistema recursal feito para proteger a interpretação constitucional em sua instância final.

Para barrar o amplo acesso a esses tribunais foi criado, nos Estados Unidos, o writ of certiorari, que limitou sobremaneira o ingresso de novos recursos à Suprema Corte, sendo que, coube a esse mesmo tribunal estabelecer com discricionariedade, e com critérios políticos, o que seria julgado. (3) Já o Tribunal Constitucional Alemão passou a admitir este recurso somente com fundamento no valor da causa (acima de 60 mil marcos alemães) e fora destes casos, quando existisse “significação fundamental”, também com peso meramente político por parte do tribunal.

O Brasil, antes da Constituição de 1988, para reduzir o número de recursos que subiam ao Supremo Tribunal Federal, criou a muito criticada “arguição de relevância”, que veio com a Reforma de Poder Judiciário de 1977, introduzida pela Emenda Constitucional 7, no “Pacote de Abril”. Neste sistema, os recursos somente seriam admitidos pela análise de sua natureza, espécie ou valor da causa. Muito se falou em fechamento das portas do Supremo, pois o regimento interno do STF, que tinha força de lei, estabeleceu o que seria julgado, afastando o país do verdadeiro império da lei formado pela vontade popular.


A “arguição de relevância” não sobreviveu à nova constituição. Tinha em mente o Constituinte de 1988 assegurar o amplo acesso ao judiciário e, assim, deixou de transpor tal regra ao novo texto constitucional. Porém, com a ampla abertura do sistema recursal, o Supremo Tribunal Federal tornou-se congestionado devido à falta de barreiras jurídicas que impedissem a análise do recurso extraordinário e, somente com a Reforma do Judiciário, introduzida pela Emenda Constitucional 45, houve modificação do texto da Carta Magna a esse respeito. Assim, foi criada a súmula vinculante, alteradas as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário e exigida a preliminar de repercussão geral.

A lei editada para regulamentar a repercussão geral foi a 11.418, de 19 de dezembro de 2006 que, alterando os dispositivos do Código de Processo Civil, disciplinou o uso do recurso extraordinário. Portanto, agora, ele somente será conhecido quando, na questão constitucional nele versada, existir questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. Além disso, disciplinou que sempre haverá repercussão geral quando o recurso impugnar decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do próprio Supremo Tribunal Federal.

O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, estabelece que a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; o inciso LV garante que em qualquer processo judicial são assegurados os recursos inerentes à ampla defesa e, no inciso LXXVIII, restou assegurada a razoável duração do processo.

Pois bem, com a criação de um instrumento que possibilita a recusa de recebimento de recurso extraordinário, estaria o legislador criando negativa a direito ou garantia fundamental de acesso à ultima instância recursal? Porque, em tese, poderia ter o cidadão seu direito fundamental violado por uma decisão judicial e negada a apreciação de um recurso final pelo guardião supremo da nossa constituição.

Parece-nos que estamos diante de uma colisão de normas constitucionais, típica das constituições modernas, pois consagram bens jurídicos que se contrapõem, mas que devem ser equacionadas para dar estabilidade ao sistema e segurança jurídica ao povo.

O mestre Luis Roberto Barroso (4) ensina que, nestes casos, o constitucionalismo moderno aplica a técnica da ponderação, pois, a subsunção e os critérios tradicionais de solução de conflitos, não resolvem colisão de direitos fundamentais. Nessa técnica, primeiramente o intérprete fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo de cada um dos interesses em disputa. Posteriormente, escolherá o direito que deverá prevalecer, especialmente aquele que realiza mais adequadamente a vontade do Poder Constituinte. A razoabilidade servirá de guia mestra e fiel da balança nesta técnica, pois não se poderá chegar a uma conclusão que não seja aceitável, moderada ou racional em última análise, em termos práticos.

Se os direitos fundamentais devem ser considerados em seu conjunto, e tendo em vista que a maioria da doutrina entende que não há no mundo jurídico direito absoluto, mesmo os fundamentais, qual garantia deveremos minimizar, e qual dar maior peso, para considerar razoável ou não esta restrição ao ingresso de novos recursos ao Supremo.

Avaliemos, de início, que o acesso à justiça é direito fundamental que praticamente não comporta restrições em vista de inúmeras impropriedades históricas que já ocorreram por falta de um Poder Judiciário forte e atuante. Já a limitação de ingresso de recursos meramente procrastinatórios ou irrelevantes do ponto de vista nacional em nossa Corte Constitucional, assegura o pleno e efetivo funcionamento da Corte, por isso também elevado a direito fundamental, e que visa assegurar outro direito fundamental, o da duração razoável do processo.

Assim, ponderando os valores atingidos pela Emenda Constitucional 45, entendemos ser razoável e, consequentemente, constitucional a restrição do direito de acesso à última instância recursal quando não se vislumbra ocorrência de “repercussão geral”, uma vez que o Supremo Tribunal Federal foi criado assegurar a autoridade da vontade do povo consubstanciada na nossa Carta Maior de 1988 e para analisar recursos que ultrapassem interesses particulares, que atinjam um maior número de pessoas que estejam na mesma situação, questões que realmente se apresentem como relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, dando efetividade à jurisdição.


De todo o exposto neste sucinto trabalho, concluímos que o legislador constituinte reformador acertou ao criar limites ao ingresso de recursos extraordinários ao Supremo Tribunal Federal, pois caminhávamos ao trancamento do tribunal, devido ao excesso de questões ali analisadas muitas vezes irrelevantes ao país.

A garantia da tutela jurisdicional célere, efetiva e eficiente, precisa ser defendida, evitando-se distorções pelo caminho, com recursos meramente protelatórios, assegurando-se instrumentos que permitam ao judiciário o exercício pleno de sua função apaziguadora, pois um processo sem fim acentua a disputa, e é considerado a própria negação da prestação jurisdicional.

Portanto, briga de vizinhos não será mais apreciada pela Corte Constitucional, apenas as demandas de massa, e outras relevantes aos interesses na nação poderão ingressar na pauta de julgamento dos onze ministros escolhidos para interpretar e defender a Lei Maior.

Os resultados já são apresentados. Noticia o sítio do Supremo Tribunal Federal que de janeiro a setembro de 2008 houve a redução de 41% do volume dos processos distribuídos naquela Corte, se comparada a distribuição do mesmo período do ano de 2007. Porém, mesmo com esta redução, cada ministro recebeu em seu gabinete, por mês, a média de 546 processos, quantidade ainda considerável. (5)

Há muito a fazer. Para o recurso extraordinário, o uso da concentração de causas, separadas por assuntos relevantes, é o caminho que aponta para o futuro. Devemos deixar de lado o individualismo para pensar coletivamente, pois o amplo acesso à justiça deverá ser exercido nas instâncias inferiores, deixando para o Supremo as que são de alta indagação e que interessa a todos.

Referências
1. Cf. André Ramos Tavares (Reforma do Judiciário Analisada e Comentada, São Paulo: Ed. Método, 2005, p.209): “O volume excessivo de trabalho do Supremo Tribunal Federal sempre foi foco de atenção e preocupação por parte dos estudiosos e, particularmente do Congresso Nacional, tendo rendido recentes e constantes proposta e reformas, todas com o objetivo de reduzir-lhe a carga de atividade a patamares considerados sensatos e saudáveis”.
2. Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva, 29ª. Edição, Malheiros Editores, 2007, p.152.
3. Cf. André Ramos Tavares (Reforma do Judiciário Analisada e Comentada, São Paulo: Ed. Método, 2005, p.213): “Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, muito se ocupou a doutrina com o problema, grave, do volume de trabalho da Corte constitucional. O writ of certionari é o paradigma mais próximo da atual “repercussão geral”, sendo utilizado no direito norte-americano quanto à acessibilidade à Suprema Corte para resolver a grave crise de congestionamento desta. Consoante a práxis daquele país, há inquestionável discricionariedade desta Corte no conhecer ou não a questão que lhe seja submetida, no mencionado writ.”
4. Cf. Luis Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo – O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil, Revista Consultor Jurídico. Clique
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5. Cf. Instituto da Repercussão Geral reduz em quase 41% volume de processos no STF, Notícias do STF, publicada em 13 de outubro de 2008. Clique
aqui para acessar.

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