Direito internacional

Caso Battisti: da mesa de bar à sala de aula

Autor

  • Carmen Tiburcio

    é professora -Adjunto de Direito internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ. Mestre e Doutora em Direito pela Universidade e Virginia EUA

4 de junho de 2009, 19h11

A extradição de Cesare Battisti mais uma vez levou o Direito internacional ao centro dos debates. Especialistas e leigos opinam sobre o provável desfecho do julgamento, em curso no Supremo Tribunal Federal. Da mesa do bar à sala de aula, todos têm algo a dizer sobre o caso. Parece útil, portanto, aproveitar o interesse pela matéria e prestar alguns esclarecimentos ao público sobre os conceitos jurídicos envolvidos e principalmente sobre a concessão de refúgio a Battisti, pelo Brasil.

Primeiramente, algumas observações sobre as figuras do refúgio e do asilo. Ambas decorrem de uma decisão soberana do Estado concedente, se destinam à proteção internacional de direitos humanos e impedem a extradição do indivíduo para o país que praticou ou pratica a perseguição. Quais as diferenças?

O asilo tem origem mais remota, sendo previsto já no século XIX. Em 1954 foram firmados dois tratados versando o tema: um cuidando do asilo territorial, concedido pelo Estado no qual o indivíduo se encontra, e o outro disciplinando o asilo diplomático, concedido temporariamente por embaixador para permitir que o asilado deixe o país onde se vê ameaçado. Ambos os tratados foram ratificados pelo Brasil.

Já o refúgio tem origem mais recente. Após a criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados — ACNUR, o esforço da ONU na matéria prosseguiu e em 1951 foi elaborada a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Em sua redação original, a convenção considerava refugiado toda pessoa que, como resultado de acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, era ou temia ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. O limite temporal foi eliminado por um Protocolo de 1967.

Os documentos internacionais foram ratificados pelo Brasil e, na sua essência, reproduzidos na Lei do Refúgio brasileira, editada em 1997. Apenas uma distinção entre a disciplina da Convenção e a consagrada pela lei brasileira merece registro.

A convenção veda o refúgio na hipótese de crimes comuns, ao passo que a lei brasileira, que é posterior, ao tratar do ponto, impede o refúgio no caso de crimes hediondos. A distinção acaba por não ter repercussão tão relevante pois a prática internacional reconhece que as imputações criminais devem ser analisadas no contexto da eventual suspeita de perseguição. E isso porque a acusação da prática de crime comum é justamente um dos veículos de que a perseguição pode se valer na tentativa de despir o indivíduo da proteção a que faria jus. O ACNUR e a jurisprudência de vários países (Canadá, México e Austrália) destacam que a acusação de crimes comuns, ainda que graves, não exclui por si só a possibilidade de concessão do refúgio.

No caso específico de Cesare Battisti, a decisão do Ministro da Justiça — autoridade competente na matéria — analisou os fatos e registrou de forma expressa que nenhum dos impedimentos legais à concessão de refúgio estava presente. A questão do crime hediondo sequer se colocava não só por sua impertinência, tendo em conta os fatos do caso, como também porque o crime hediondo passou a existir no Brasil apenas a partir de legislação de 1990, e o último dos crimes de que Battisti foi acusado ocorreu em 1979. O direito brasileiro e o direito internacional não admitiriam a retroação da lei penal em prejuízo do indivíduo para qualificar como hediondo fato ocorrido antes da edição da legislação que criou essa categoria.

Uma outra distinção teórica entre asilo e refúgio envolve as situações que justificam a concessão de um ou outro. O refúgio pode ser concedido em razão de efetiva perseguição ou do temor fundado de que ela ocorra, por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. As normas sobre asilo, por sua vez, fazem referência a efetiva perseguição — não bastando o temor —, sendo igualmente mais restritivas quanto às suas causas, que só podem ser crenças, opiniões e filiação ou delitos de natureza política. Como se percebe, a proteção conferida pelo status de refugiado é mais abrangente do que o do asilado. Ademais, o asilo envolve somente o Estado concedente, ao passo que o refúgio diz respeito também ao ACNUR.

Para além das diferenças pontuais, a verdade é que asilo e refúgio apresentam um conjunto expressivo de pontos de contato. Em ambos se destaca a intenção de proteger o indivíduo perseguido por motivos ou delitos políticos e a discricionariedade na sua concessão, de modo que a decisão caberá exclusivamente à autoridade a que seja atribuída competência nos termos da legislação do Estado concedente.

Outro ponto em comum — de fundamental importância — é que em ambos os casos, refúgio ou asilo, proíbe-se a extradição do indivíduo para o país que praticou ou pratica a perseguição. A proibição é prevista de forma expressa pelos tratados respectivos, bem como pela lei brasileira sobre refúgio. Do ponto de vista prático, portanto, ambas as figuras conduzem ao mesmo resultado. Por conta dessa identidade essencial, nos Estados Unidos e na Europa tem sido comum que os dois termos sejam utilizados como sinônimos. Acima de tudo, a tendência é de respeito à decisão estatal de conferir a proteção, e não de deferência litúrgica a conceitos doutrinários.

Por fim, vale destacar que o refúgio e o asilo são figuras tradicionais no direito internacional, sendo sua concessão relativamente comum, não gerando, via de regra, qualquer incidente diplomático entre os países envolvidos. Diversos cidadãos brasileiros obtiveram a concessão de refúgio no exterior, sem que se tenha cogitado de afronta à soberania brasileira. A título de exemplo, Bruno Daniel, irmão do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, supostamente assassinado por motivos políticos — encontra-se refugiado na França desde o final de 2006, circunstância que nada interferiu com as relações cordiais entre os dois países. Há ainda pelo menos seis casos recentes de brasileiros que receberam refúgio nos Estados Unidos por alegada perseguição em razão de sua orientação sexual.

Ou seja, a França e os Estados Unidos, discricionariamente, consideraram os requerentes dignos de proteção, sem que isso tenha causado qualquer tipo de constrangimento em suas relações com o Brasil. Em breve, o Supremo Tribunal Federal decidirá sobre a legalidade ou não da extradição de Cesare Battisti solicitada pela Itália. Enquanto aguardamos a conclusão do caso, podemos continuar a discuti-lo. Espera-se que os esclarecimentos feitos acima sejam úteis para a melhor compreensão do tema e contribuam, afinal, para um debate sério — e livre de pré-julgamentos — acerca do caso.

Professora -Adjuntode direito internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre e Doutora em Direito pela Universidade e Virginia, EUA

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    é professora -Adjunto de Direito internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ. Mestre e Doutora em Direito pela Universidade e Virginia, EUA

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