O calidoscópio jurídico de Euclides da Cunha (2)
14 de agosto de 2009, 9h43
Nada disso, porém, transforma o autor de A margem da história em jurista. Da mesma forma, Machado de Assis não foi guindado à posição de “doutor” apenas pela presença de personagens jurídicos em seus contos e romances ou porquê se utilizava da linguagem jurídica em suas criações literárias, inclusive na poesia. De outro lado, seria forçar a barra atribuir a Machado a função de diplomata só porque emitia opiniões sobre política internacional. Como seria demasia chamar de jogador de futebol ou piloto de Fórmula-1 o comentarista esportivo, ou de deputado o cronista político.
Machado de Assis, vale insistir no assunto, era jurista de fato porque atuou como advogado público (mesmo sem essa designação), elaborando anteprojetos de lei e redigindo pareceres jurídicos, como servidor*.
Pois bem. O fato é que Euclides era “doutor”, porque também foi advogado público de fato. Uma faceta que permanece praticamente (ou mesmo totalmente) inédita na biografia do engenheiro, historiador, geógrafo e portador de tantos outros títulos e habilidades, além, claro, de escritor estupendo.
Durante seus últimos anos de vida, Euclides da Cunha foi contratado pelo Barão do Rio Branco para assessorá-lo em atividades do Itamaraty.
Assim, em 1904-1905, o já consagrado autor de Os sertões partiu para uma expedição de reconhecimento do Alto Purus, participando de uma arriscadíssima empreitada conjunta Brasil-Peru para descrever e analisar os caracteres geográficos daquele rio amazônico. A viagem gerou o “Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus – notas complementares do comissário brasileiro”, escrito por Euclides e publicado pela Imprensa Nacional, em 1906. Viajando em embarcações precárias, que encalhavam diversas vezes; encarando a falta de víveres; enfim, enfrentando condições adversas, o escritor produz um extenso texto, que ficou conhecido como O rio Purus, misto de aventura e ciência, geologia, geografia e história, relatório detalhado sobre parte das hidrovias amazônicas. Não foi ainda aí que Euclides mostraria seus dotes de jurista, o que ocorreria logo em seguida.
Também trabalhando para o Ministério das Relações Exteriores, o engenheiro elabora um riquíssimo trabalho sobre o conflito de fronteiras envolvendo o Peru e a Bolívia. O interesse brasileiro no caso pautava-se pela relação da refrega com o território do Acre, recém-adquirido da Bolívia (em 1903). Publicado pela primeira vez em 1907, no Jornal do Commercio, o relatório, denominado Peru versus Bolívia, é, essencialmente, um parecer jurídico.
Algumas passagens do extenso relatório – melhor chamá-lo por seu verdadeiro nome… –, do extenso parecer jurídico, revelam doutor Euclides em plena forma. Vamos a elas:
“(…) o interesse que [o caso] desperta é [sobre] a legitimidade da sua discussão, ao menos durante a litispendência, antes da sentença do juiz soberano e inapelável. Além disto, a este mesmo árbitro não lhe bastará a massa formidável de documentos cartográficos e históricos fornecidos pelos Governos interessados, apequenando-se na tarefa medíocre e exaustiva de contrastar um sem-número de linhas embaralhadas, e datas no geral inexpressivas; ou derivando ao pecaminoso anacronismo de agitar – inteiriços, embaralhados e rígidos – alguns velhos documentos coloniais, diante das exigências mui outras e das fórmulas mais liberais do direito atual entre as nações”.
Quem lida hoje com o direito internacional ou com o direito imobiliário sabe da complexidade das questões geográficas e históricas muitas vezes envolvidas na solução de litígios de terras e fronteiras. Ao juiz, pois, como alerta o nosso percuciente parecerista, no caso em tela, cabe distinguir o direito no emaranhado de mapas e relatórios, tratados e documentos os mais diversos.
É assim que Euclides da Cunha vai construindo seu parecer: interpretando tratados internacionais e normas unilaterais baixadas ora pelo Império espanhol, ora por suas colônias sulamericanas. Tudo embasado em uma articulação multidisciplinar, envolvendo conhecimentos geográficos, históricos e jurídicos. Eis, aliás, um traço distintivo do nosso Euclides: rejeitava uma visão estanque do saber, compartimentado em disciplinas isoladas. Ao contrário, esmerava-se em obter uma compreensão global de seus objetos de estudo e criação artística (também aí, mesclando arte e ciência).
Estudando, amiúde, cartas régias e outras normas coloniais do mesmo jaez, Euclides da Cunha vai, passo a passo, desmontando – preclaro jurista! – a pretensão peruana sobre a área em litígio. Cito um exemplo, entre outros inúmeros:
“Esta carta régia, agitada, imprudentemente, como a prova capital dos direitos do Peru, contraproduz. É desastrosa para a República, que se proclama herdeira do regime condenado e extinto. É a prova preexcelente dos direitos da Bolívia”.
Ou, então:
“A posse peruana nas cabeceiras do Juruá e do Purus, nula, de direito, antes de 1810, não se realizou, de fato, nos anos subsequentes até os Tratados de 1851 e 1867.
Ao final do longo parecer jurídico, conclui:
“Não combatemos as pretensões. Denunciamos um erro.
Não defendemos os direitos da Bolívia.
Defendemos o Direito”.
Pena que a morte precoce de Euclides, com apenas 43 anos de idade, tenha privado seus leitores de outros muitos pareceres jurídicos que poderia ter produzido para a posteridade – sobre a qual, aliás, com jargão jurídico, escreveu: “A posteridade, o supremo júri das gentes, procede em seu julgamento de uma maneira sumária” (O Estado de São Paulo, em 2 de abril de 1892).
O supremo júri das gentes precisa decidir de maneira sumária que Euclides da Cunha é um jurista de mão cheia!
* A esse respeito, recomendo as leituras de Machado de Assis e a Administração Pública Federal, de Paulo Guedes e Elizabeth Hazin, Edições do Senado Federal, volume 68, Brasília, 2006, e também de Doutor Machado – o direito na vida e na obra de Machado de Assis, de Cássio Schubsky e Miguel Matos, Editora Lettera.doc e Migalhas, São Paulo, 2008.
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