Vida da empresa

Quem tem que decidir sobre sócio incapaz é o Judiciário

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22 de outubro de 2007, 23h01

Antes de ingressarmos na divergência existente acerca da constitucionalidade do artigo 1.030 do Código Civil, faz-se mister distinguir as sociedades de pessoas das sociedades de capitais.

Esse critério de classificação das sociedades empresárias leva em conta o grau de dependência da sociedade em relação às qualidades dos sujeitos a integram.

Capitais e pessoas são elementos sem os quais inexiste uma sociedade, porém a diferenciação das sociedades de pessoas das de capitais leva em conta a preponderância de um deles sobre o outro. Enquanto que em algumas sociedades os atributos individuais dos sócios são fundamentais, noutras a contribuição material dispensada por cada participante é o mais importante, pois o sucesso do empreendimento não depende das habilidades, da personalidade, do caráter de seus sócios.

A sociedade anônima, como o próprio nome indica (anônima = identidade desconhecida), é uma espécie de sociedade de capital, de modo que as ações são negociadas livremente. Todas as sociedades por quotas, por outro lado (salvo algumas LTDAS), são de pessoas, possuindo os sócios, por tal motivo, preferência de compra, tanto por tanto, exatamente porque o ingresso de pessoa indesejada numa sociedade poderia romper com a affectio societatis.

Feitas essas considerações, cumpre esclarecer que o artigo 1.030 do Código Civil está inserido na Seção “Da Resolução da Sociedade em Relação a um Sócio”, no capítulo dedicado às sociedades simples, ou seja, às sociedades de pessoas.

Eis o teor:

“Art. 1.030. Ressalvado o disposto no art. 1.004 e seu parágrafo único, pode o sócio ser excluído judicialmente, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios, por falta grave no cumprimento de suas obrigações, ou, ainda, por incapacidade superveniente.”

Cuida-se de hipótese em que o sócio, plenamente capaz quando da constituição da sociedade, tornou-se incapaz para a prática dos atos da vida civil, seja qual for a causa.

Explico: A regra autoriza a resolução de uma sociedade em relação a um sócio incapaz, seja relativa (art. 4º do C.C.) ou absolutamente (art. 3º, do C.C.), tendo em vista que o dispositivo legal não fez distinção, mas desde que a sociedade seja de pessoas. É que em tais casos, participaria da sociedade, ainda que em nome do incapaz ou assistindo-o, pessoa não escolhida pelos demais membros, tampouco detentora das mesmas qualidades que foram decisivas para a união dos sócios e formação de uma pessoa jurídica realizadora de atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

As sociedades simples, bem como todas as sociedades por quotas, são contratuais, ou seja, constituídas por um contrato, de modo são regidas pelo Princípio da Liberdade. Os indivíduos são livres para escolherem com quem contratar, pois essa opção reflete a confiança íntima que uma pessoa deposita em outra, não se mostrando razoável qualquer regra tendente a mitigar esse livre-arbítrio.

Em sendo assim, a regra é plenamente justificável, exatamente em função das características desse tipo de sociedade, que em oposição à de capital, há a necessidade de concordância dos demais sócios para o ingresso de outro ou de um representante ou assistente de algum deles.

“Nos casos de exclusão por incapacidade superveniente, onde o sócio perde a capacidade de agir por si, a exclusão é justificada pelo fato de que, em uma sociedade de pessoas, não se pode admitir a intromissão de um terceiro estranho, tutor ou curador do sócio incapaz” (Jones Figueirêdo Alves e Mario Luiz Delgado.Código Civil Anotado. São Paulo: Editora Método, 2005).

Dessarte, da mesma forma como os sócios podem rejeitar a entrada de um “estranho” na empresa, podem recusar a presença de um sócio que não guarda mais as condições pessoais que tinha inicialmente.

Um paralelo pode ser traçado com o casamento. O Código Civil prevê a possibilidade, após determinado período e constatado que o cônjuge acometido de doença mental grave não tem cura, de o outro cônjuge requerer o fim da sociedade conjugal.

“Art. 1.572. (…)

§ 2º O cônjuge pode ainda pedir a separação judicial quando o outro estiver acometido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de dois anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável”.

Ora. Se até mesmo uma sociedade conjugal pode ser dissolvida em função da doença mental de um dos cônjuges, com muito mais razão há que se possibilitar a exclusão, de uma sociedade empresária fundada nas qualidades de seus membros, de sócio atingido por incapacidade superveniente.

Veja-se que a exclusão não pode ocorrer tão-somente pela vontade dos sócios, de forma arbitrária, pois apenas em uma ação judicial de interdição seria possível a constatação da incapacidade. E isso só não basta para que o sócio seja afastado da sociedade. Decidindo, a maioria dos demais sócios, por exercer o direito que lhe assegura o artigo 1.030, do C.C., deverá ingressar em Juízo para expor os riscos que a atividade econômica sofre em função da participação de um civilmente incapaz nos negócios da sociedade.

O legislador foi muito feliz em delegar ao Judiciário a tarefa de decidir acerca da exclusão do sócio, pois, a contrario sensu, trouxe a possibilidade de o incapaz não ser afastado, levando-se em conta a manutenção da empresa e a situação do sócio perante a sociedade. Essa interpretação se faz possível porque, caso fosse vedada a manutenção do incapaz, desnecessária seria a transferência da decisão ao Poder Judiciário.

O magistrado, no caso concreto, fará um juízo de ponderação de interesses — da sociedade e do sócio a ser excluído —, e analisará os efetivos riscos que corre o empreendimento. A decisão do magistrado não poderá trazer graves prejuízos ao incapaz, sendo certo que se todo o seu patrimônio estiver resumido ao investimento empreendido na sociedade, esse fato deverá ser levado em consideração. O excluído, saliente-se, jamais poderá ser privado do necessário a sua subsistência.

Não há inconstitucionalidade no referido dispositivo, justamente porque a exclusão do sócio estará sujeita ao crivo judicial, restando assegurado o Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal). NELSON NERY JÚNIOR menciona que malgrado “o destinatário principal desta norma seja o legislador, o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão”.

Ademais, não existe direito adquirido a permanecer em uma sociedade empresária, especialmente quando há hipótese expressamente prevista para a exclusão do sócio em caso de incapacidade superveniente. Assim, a existência de cláusula contratual nesse sentido não afrontaria qualquer norma constitucional, sendo ilegal, todavia, se fizer previsão de exclusão de sócio independentemente de apreciação judicial.

Na maioria das hipóteses, sem dúvida, a melhor solução será a exclusão. A uma, porque o incapaz não poderia fiscalizar por si só as atividades da sociedade, permanecendo o rumo dos seus negócios ao talante dos demais sócios. A duas, porque dificilmente os sócios remanescentes aceitariam a participação, na tomada de decisões, de alguém que não aqueles por eles escolhidos para unirem esforços na constituição da sociedade empresária. A três, porque, via de regra, a atividade dos sócios nesse tipo de sociedade é comissiva, implicando em injustiça que apenas alguns sócios laborem e outro apenas usufrua dos lucros, em manifesta quebra do dever de colaborar.

Desde a promulgação da Constituição Federal e mais recentemente do Código Civil de 2002, a função social da empresa adquiriu forte status jurídico, tendo em vista o novo panorama ideológico, político e econômico introduzido por estes estatutos jurídicos, bem como sua respectiva relevância para o ordenamento jurídico brasileiro, cujo caráter subsidiário abastece os demais ramos do Direito.

Ressalte-se que a função social da empresa decorre da função social da propriedade, vez que as atividades econômicas organizadas são instrumentos de obtenção de patrimônio, de propriedade. Neste aspecto, necessário alertar que as regras criadas com o escopo de preservar a empresa, de manter a affectio societatis, os empregos etc., não podem levar a pecha de inconstitucionais. Ao revés, devem ser respeitadas e interpretadas sistematicamente, sempre à luz da Carta Magna.

Nessa linha de raciocínio, Marlon Tomazette assevera que o artigo 1.030, do C.C., baseia-se “no princípio da preservação da atividade exercida pela sociedade, isto é, por razões de ordem econômica que impõem a manutenção da atividade produtora de riquezas, em virtude dos interesses de trabalhadores, do fisco e da comunidade. O ordenamento jurídico deve assegurar os meios capazes de expurgar todos os elementos perturbadores da vida da sociedade, uma vez que a sua extinção pode afetar os interesses sociais na manutenção da atividade produtiva. A exclusão do sócio é um direito da própria sociedade de se defender contra aqueles que põem em risco sua existência e sua atividade. É um direito inerente à finalidade comum do contrato da sociedade, independentemente de previsão contratual ou legal”.

Cumpre salientar que de forma alguma buscamos, neste ensaio, defender a exclusão do sócio incapaz quando a situação no caso concreto indicar que esta não é a melhor opção, seja porque prejudicial àquele que supervenientemente passou a não deter mais a integral direção de sua vida, seja porque algumas sociedades, ainda que classificadas como de pessoas, não exigem atividades comissivas de todos os seus sócios.

Concluímos, enfim, pela legalidade e constitucionalidade do artigo 1.030, do Código Civil, bem como por sua compatibilidade com o sistema normativo regulador da matéria e com os Princípios Constitucionais da Inafastabilidade, do Devido Processo Legal e da Função Social da Empresa, afora constatarmos a sua contribuição para a Preservação da Empresa, Princípio vetor do Direito Empresarial e recentemente reavivado com a novel Lei de Recuperação Judicial e Falência.

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