Matemática da previdência

Cartões de incentivos são alvo de cálculos previdenciários ilegais

Autor

  • Leonardo Mazzillo

    é advogado em São Paulo sócio do escritório WFaria Advocacia pós-graduado em Direito Tributário e pós-graduando em Direito do Trabalho.

23 de novembro de 2007, 23h00

Verifica-se que, em parcela significativa das autuações realizadas pela fiscalização previdenciária, especialmente em razão de pagamentos feitos pelas empresas através de cartões de incentivo (incentive house), os agentes fiscais se utilizam de sistemáticas de cálculo manifestamente ilegais, tanto na apuração da “parte empresa” — alíquotas superiores a 20% para os pagamentos feitos a segurados contribuintes individuais — quanto na constituição da “parte empregado” — inobservância dos descontos já efetuados e do teto do salário-de-contribuição em cada competência.

A partir de 2002, se intensificou a utilização, pelas empresas, de cartões de incentivo para premiar empregados e terceiros, seja em razão de liberalidade, seja como estímulo para o cumprimento de metas de produção.

O pagamento do benefício, também chamado de incentive house (por metonímia), é feito por intermédio de empresas de “marketing de relacionamento”, as quais recebem os recursos dos empregadores ou tomadores de serviço e os repassam aos beneficiários através de cartões magnéticos. Com esses cartões, os beneficiários podem, até o limite do prêmio com que foram agraciados, adquirir os bens ou serviços que desejarem.

Em razão de sua maciça popularização, os pagamentos feitos via cartão de incentivo entraram na mira da fiscalização previdenciária, antes levada a cabo pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e, atualmente, conduzida pela Receita Federal. Isso porque, sob a ótica fazendária, a utilização do “marketing de incentivo” corresponde, em grande parte das vezes, a uma forma de ocultar a natureza salarial dos pagamentos e, por conseguinte, de exonerar a empresa dos respectivos encargos tributários.

Nossa análise, doravante, não terá por objetivo afirmar ou infirmar a juridicidade — sob o ponto de vista previdenciário ou trabalhista — da utilização desse meio de pagamento. Pretendemos de outra feita apontar as diversas ilegalidades que vêm sendo cometidas pelos órgãos fiscalizadores, especialmente quando da lavratura de notificações fiscais de lançamento de débitos (NFLD) e de autos de infração (AI).

Parte empresa — aplicação indevida de alíquotas majoradas

Como dito, muitas empresas se utilizam do marketing de incentivo para fomentar sua produção, conferindo prêmios não apenas a seus próprios empregados, mas também a pessoas físicas enquadradas no conceito de segurado contribuinte individual, tais como os autônomos e os administradores não celetistas.

A remuneração dessa categoria de segurados, em geral, impõe duas ordens de obrigação previdenciária às empresas contratantes, a saber: (i) recolhimento de contribuição previdenciária à alíquota de 20% sobre os montantes pagos, devidos ou creditados (parte empresa) e (ii) retenção de 11% da remuneração (parte trabalhador) com seu posterior repasse ao fisco.

Ocorre que, quando a fiscalização previdenciária vislumbra natureza salarial nos pagamentos de incentive house, suas autuações relativas às contribuições devidas pela empresa não diferenciam empregados de contribuintes individuais, sendo aplicada, em todos os casos, a alíquota de 20%, acrescida de todos os encargos que, pela lei, são devidos apenas em relação aos empregados, vale dizer, da contribuição para o seguro contra acidente do trabalho (SAT — de 1% a 3%), da contribuição para o salário educação (2,5%), da contribuição para o Incra (0,2%) e das contribuições devidas ao denominado Sistema “S” (Sesc, Senac, Sesi, Senai, Sebrae, etc. —até 2,7%).

Em outras palavras, a fiscalização não diferencia os pagamentos feitos a empregados e a não empregados, aplicando a esses últimos, ilegalmente, alíquotas que muitas vezes superam os 27%, quando o correto seria aplicar a alíquota de 20%, devida quando do pagamento feito pela empresa a segurados contribuintes individuais.

Na prática, esse procedimento pode redundar em aumento de mais de 30% no valor das autuações, em flagrante ofensa aos princípios da legalidade, da vedação ao enriquecimento ilícito e, em última análise, da moralidade administrativa.

Nessas hipóteses, pois, o contribuinte tem o direito de, administrativamente, valer-se dos instrumentos de defesa cabíveis para que haja o recálculo dos valores lançados, ou, quando menos, de recorrer ao Judiciário para que sua obrigação tributária seja compatível com aquilo que dispõe a lei.

Parte empregado — desconsideração das retenções efetuadas e dos tetos no mês de competência

Em relação às contribuições devidas pelos empregados, as quais devem ser mensalmente retidas e repassadas à RFB pela fonte pagadora, outra ilegalidade é costumeiramente verificada nos autos de infração lavrados pela fiscalização previdenciária.

De fato, incumbe ao empregado participar do custeio da seguridade social por meio de contribuições que variam, progressivamente, de 7,65% a 11% de sua remuneração.

A partir disso, pode-se chegar a duas conclusões, a saber: (i) o empregado, qualquer que seja o valor de sua remuneração, terá contribuído com alguma quantia para a seguridade social, por meio de desconto feito pelo empregador e repassado aos cofres públicos, e (ii) o teto do salário-de-contribuição do empregado é de R$ 2,8 mil, razão pela qual o valor máximo da contribuição a pagar, relativa à parte empregado, não superará os R$ 318,3

Não obstante, a fiscalização previdenciária comumente ignora essas duas óbvias conclusões a que chegamos e, ao efetuar os lançamentos da “parte empregado”, sobre os pagamentos via cartão de incentivo, os fiscais simplesmente aplicam a alíquota de 11% sobre todo o montante pago pela empresa, sem individualizar os valores e as competências relativas a cada beneficiário. Daí decorre que a autuação desconsidera (i) os valores já descontados, em cada competência, dos empregados, (ii) o teto do salário-de-contribuição para cada empregado a quem o benefício foi concedido e (iii) a progressividade de alíquotas.

Em números, citemos como exemplo a situação em que o empregado recebeu, num determinado mês, salário de R$ 6 mil e prêmio incentivo no valor de R$ 4 mil. Naquela competência, o desconto da parte empregado já foi feito pelo teto (R$ 318,3), razão pela qual nada seria devido à RFB em caso de autuação. Não obstante, considerando o procedimento comumente adotado pelos Auditores Fiscais da RFB, eventual autuação redundaria na aplicação da alíquota de 11% sobre tudo quanto foi pago pela empresa a título de prêmio-incentivo, inclusive sobre os R$ 4 mil pagos naquele mês àquele empregado, constituindo-se, indevidamente, crédito tributário de R$ 440, acrescido de juros e multa.

Em hipótese menos extrema, suponha-se que o empregado tenha rercebido, em determinado mês, salário de R$ 900 e prêmio, via cartão de incentivo, no montante de R$ 2,5 mil. Quando do pagamento do salário, suponhamos que tenha ocorrido o regular desconto de R$ 77,8, equivalente a 8,65% da remuneração. Nesse caso, se o Agente Fiscal não individualizar os pagamentos, será constituído crédito tributário de R$ 275, equivalente a 11% dos R$ 2,5 mil desembolsados via “marketing” de incentivo. Como conseqüência, os pagamentos feitos a esse empregado terão gerado créditos previdenciários na ordem de R$ 352,8 (2), quando o teto mensal seria de R$ 318,3. (3). Houve, pois, a constituição indevida de R$ 34,4, o que representa mais de 12% do valor da autuação.

Em suma, tais procedimentos adotados pela fiscalização têm, muitas vezes, dobrado o valor das autuações, o que se afigura flagrantemente ilegal. Nesses casos, igualmente, os contribuintes não apenas podem, mas devem pleitear a revisão das NFLDs e dos AIs pelas instâncias administrativas e judiciais, sob pena de enriquecimento ilícito do fisco.

Vale ressaltar, por fim, que o pedido de recálculo do lançamento em nada prejudica eventual argumentação de mérito articulada pelo contribuinte (v.g., da natureza não salarial dos pagamentos), bastando, nesse caso, que o pleito de recálculo seja feito de forma subsidiária.

Em conclusão, verifica-se que, em parcela significativa das autuações realizadas pela fiscalização previdenciária, especialmente em razão de pagamentos feitos pelas empresas através de cartões de incentivo (incentive house), os agentes fiscais se utilizam de sistemáticas de cálculo manifestamente ilegais, tanto na apuração da “parte empresa” — alíquotas superiores a 20% para os pagamentos feitos a segurados contribuintes individuais — quanto na constituição da “parte empregado” — inobservância dos descontos já efetuados e do teto do salário-de-contribuição em cada competência.

Os valores constituídos a maior podem representar parcelas significativas das autuações e devem ser cancelados pelos julgadores administrativos quando da apreciação de impugnações e recursos apresentados pelos contribuintes, ou mesmo anulados pelo Judiciário, em demandas que versem sobre o tema. Os pedidos de recálculo dos lançamentos não prejudicam eventuais alegações de mérito, podendo ser feitos de forma subsidiária a estas.

Notas de rodapé

1 – R$ 275,00 + R$ 77,85;

2 – 11% do teto do salário-de-contribuição, atualmente de R$ 2.894,28.

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