Ilustre desconhecida

Não há como separar arquitetura da Justiça da sua evolução

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22 de março de 2007, 0h01

Com o intuito de estabelecer o significado da arquitetura destinada ao Judiciário, reportaremos-nos à definição clássica sobre arquitetura feita por William Morris, arquiteto e artista inglês do século XIX: “A arquitetura abrange o exame de todo o ambiente físico que circunda a vida humana; não podemos subtrair-nos a ela, até que façamos parte da sociedade urbana, porque a arquitetura é o conjunto das modificações e das alterações introduzidas sobre a superfície terrestre, em vista das necessidades humanas, excetuando somente o puro deserto”.

O arquiteto americano Robin Evans assinalou que “se alguma coisa é descrita pela planta arquitetônica é a natureza das relações humanas, desde os elementos cujos traços registram paredes, portas, janelas e escadas, que são empregados primeiramente para dividir, e depois seletivamente reúne o espaço habitado”.

A arquitetura congrega diferentes elementos ao mesmo tempo sejam eles sociais, tecnológicos, artísticos ou culturais. Porém, as relações humanas são a base e a essência da sua existência. A arquitetura judiciária, portanto, deve ser pensada pelas relações sociais estabelecidas no âmbito da Justiça, resultantes do contato direto ou mesmo indireto entre os seus atores, quais sejam: magistrados, servidores, profissionais da carreira jurídica e a população em geral. O valor social dessas relações é materializado pelos espaços que as encerram, pelos prédios destinados à Justiça, incorporando, assim, a importância simbólica e cívica dessas edificações.

Poucos edifícios públicos têm um significado tão forte quanto os que abrigam a Justiça. Sejam as sedes dos tribunais superiores ou as instalações dos juizados de pequenas causas, o Poder Judiciário é sempre uma referência dentro da sociedade. Caso essa referência venha acompanhada de um diferencial arquitetônico que a registre como sendo parte da Justiça, agrega-se ao significado social o significado cívico.

Dignidade, tradição, equilíbrio, imparcialidade, hierarquia, seriedade e confiança são imagens a ele associadas. A arquitetura judiciária, assim, é a concretização espacial dessas imagens. O projeto arquitetônico para a Justiça deve indicar em seu desenho o respeito incondicional à igualdade e à dignidade de todos os cidadãos. Para tanto, os ambientes devem ser apropriados ao atendimento das necessidades gerais e particulares de cada indivíduo. O seu funcionamento pleno e adequado deve atender aos servidores e aos usuários externos. A questão a ser colocada é: a arquitetura judiciária desenvolvida hoje atende a todos esses requisitos? E de que maneira ela é feita?

A aproximação entre os órgãos judiciais e a população tem sido a tônica em todas as instâncias da Justiça. Dentro dessa perspectiva, questiona-se sobre o que seria preciso para que essa nova representação estivesse, de fato, refletida pelos edifícios destinados ao Judiciário, tanto com relação à proposta de uma Justiça mais acessível, ágil e em sintonia com as necessidades reais de seus usuários, como à materialização condizente com a função primeira do Judiciário.

No Brasil, não há qualquer registro ou levantamento sobre a arquitetura judiciária aqui desenvolvida. Somadas às dificuldades diárias que as áreas de arquitetura e engenharia enfrentam no desenvolvimento de suas atribuições, observa-se a inexistência de dados comparativos entre projetos e obras que sejam voltados à avaliação criteriosa quanto à apreciação dos princípios adotados no desenho e, principalmente, quanto à verificação dos gastos despendidos para a sua execução. Outro fator importante, e que jamais deve ser esquecido, refere-se à manutenção dos imóveis, seu custo e sua operacionalização.

Ademais, grande parte dos problemas ocorre pela falta de pessoal especializado e pelo desconhecimento desses profissionais sobre o funcionamento e as atividades desempenhadas pelos diferentes órgãos judicantes. A constante necessidade de atualização dos conhecimentos quanto a sistemas tecnológicos, materiais de construção, normas técnicas, orçamento de obras e serviços, processos de licitação e contratação entre outras questões, nem sempre é tratada com o devido empenho e raramente é vista pela administração como prioridade para o desenvolvimento adequado dos trabalhos.

Não há a devida formação por parte dos profissionais no entendimento da estrutura do Judiciário, das suas atividades, das relações sociais que lá se estabelecem e do que a população, efetivamente, busca em seus edifícios. É necessário, portanto, parar, observar, pensar e entender o que a Justiça necessita para a sua casa.

A relevância oferecida ao aparelhamento da Justiça nos últimos anos não tem evitado o surgimento de obstáculos para a viabilização de grande parte dos projetos voltados para a melhoria da prestação jurisdicional. Para a sua implantação, muitos desses projetos esbarram no elemento comum que freqüentemente passa desapercebido: o espaço físico.

A qualidade do espaço a ser ocupado pode, muitas vezes, determinar o sucesso ou fracasso de muitos planos a serem realizados. Como aumentar o número de varas sem um planejamento do espaço que elas ocuparão? Como efetivar a eficácia dos juizados especiais, por exemplo, sem um estudo do seu funcionamento quanto à sua localização, acessibilidade ou à adequação de mobiliário específico aos seus usuários? Como pensar em programas de excelência desconsiderando-se a qualidade espacial? De que forma utilizar as ferramentas disponíveis pelos sistemas tecnológicos sem a atualização e a adequação das instalações prediais? Sem tais ferramentas, como engajar os órgãos judiciários em ações voltadas para a gestão ambiental?

Não há, por conseguinte, como desvincular a arquitetura judiciária dos processos de evolução que acompanham a Justiça, sendo ela própria a tradução e a referência espaciais dos valores que estão sendo modificados. Impensável seria, então, desligá-la da administração da Justiça , tanto no seu aspecto organizacional como no seu aspecto prático por meio da elaboração de projetos, execução de obras e manutenção predial.

Poucos são os documentos existentes sobre a arquitetura judiciária desenvolvida em nosso país. A falta da consciência devida quanto a sua importância dificulta o reconhecimento da arquitetura judiciária como parte integrante da estrutura administrativa do Judiciário. Como resultado, sua prática e seus resultados têm sido pontuais, imediatistas e restritos.

Sistemas de organização administrativa adotados em outros países, a despeito de estruturas políticas e culturais diferenciadas das nossas, podem servir como referência para harmonizar o engajamento da arquitetura judiciária à administração judiciária brasileira. Desde 1992, os Estados Unidos e o Canadá têm promovido conferências internacionais sobre projetos de fóruns com a participação de diversos países e com o apoio integral do American Institute of Architects (AIA — Instituto Americano de Arquitetos), ao qual pertence o Committee on Architecture for Justice (CAJ – Comitê de Arquitetura para a Justiça), cujo principal objetivo é a promoção da troca de informações e o conhecimento sobre a Arquitetura Judiciária.

Nossa vizinha, a Argentina, em seu Programa Integral de Reforma Judicial promovido pelo Ministério da Justiça, Segurança e Direitos Humanos, desenvolveu o Programa de Arquitetura Judicial, com a realização do 1º Encontro “Diálogo de Ação e Participação entre Arquitetos e Juízes”. Um dos resultados do Programa de Arquitetura Judicial foi a produção do documento que se converteu num capítulo do Plano Nacional de Reforma Judicial que trata, especificamente, da análise de diversos temas pertinentes aos edifícios que abrigam as atividades judiciais daquele país.

Da mesma forma, vários outros países têm dedicado à arquitetura judiciária especial atenção, inserindo o tema em programas de melhoria e modernização da Justiça, nos projetos de Reforma do Judiciário e interagindo com outros setores pertinentes à administração da Justiça.

Os espaços expressam-se, comunicam-se. Quem deles usufrui, conscientemente ou não, percebe as mensagens por eles transmitidas. É urgente e necessária a reestruturação da prática da arquitetura judiciária para que a arquitetura ande em compasso com a Justiça, principalmente na sua proposta de acessibilidade e transparência para todos os cidadãos. É imprescindível a compreensão de que a melhoria dos espaços físicos pode realçar e reforçar as relações sociais estabelecidas nas casas de Justiça.

A reforma da arquitetura judiciária inicia-se a partir do reconhecimento, por parte dos membros integrantes do Poder Judiciário, da sua relevância para a efetivação da Justiça. A adoção e o registro de princípios e critérios para orientação e avaliação de projetos e obras pode representar um primeiro passo para esse processo.

É nesse contexto que introduzimos a arquitetura judiciária. Indissociável de qualquer relação humana, representante de símbolos e referenciais cívicos, presente em todas as instâncias, multidisciplinar, “vilã” dos gastos públicos, solução para muitos problemas, a arquitetura judiciária ainda não é totalmente distinguida e assimilada pelos seus atores. Esperamos que este seja um primeiro passo para seu conhecimento e reconhecimento na efetividade da Justiça.

Notas de rodapé

1 – MORRIS, William. “The Prospects of Architecture in Civilization”. Conferência proferida na London Institution em 10 de março de 1881. In: On Art and Socialism, Londres, 1947;

2 – EVANS, Robin. (1978). “Figures Doors and Passages”. In: Architectural Design, Abril 1978;

3 – VELLOSO, Carlos Mário “Do Poder Judiciário: Como Torná-lo Mais Ágil e Dinâmico: Efeito Vinculante e Outros Temas”. In Revista da AJUFE, Ano 17, Nº 59, out-dez, 1998.

4 – FREITAS, Vladimir Passos de. “Eficiência em Pauta – Considerações sobre a Administração da Justiça” In: Revista Consultor Jurídico, 8 de novembro de 2006. (http://www.conjur.com.br/static/text/49944,1).

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