Estado patrimonialista

No Brasil, a lei não é instrumento de viabilização de liberdades

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25 de fevereiro de 2006, 7h00

O Marquês do Paraná disse, uma vez a um ministro do Império: “Eu resisto a tudo, menos ao pedido de um amigo”. Roberto DaMatta..

O que é a lei para os donos do poder no Brasil? Nada. Como instrumento de igualdade, nada. Como meio de manutenção do poder, tudo. É o que se infere do agir dos donos do poder. Raymundo Faoro, em livro clássico, analisou estas raízes históricas, ao escrever sobre Os Donos do Poder, isto é, a formação do patronato político brasileiro1. Nada mais pertinente e atual nesta quadra da vida político-jurídica de nosso país.

Faoro, como homem de leis, lembra, em seu livro, o caráter do estamento burocrático, como grupo de interesses, que teve êxito historicamente na tarefa de manter o poder nas mãos de uma elite invariavelmente predatória. É o chamado estado patrimonial.

De fato, no Brasil, sob a égide de um Estado ainda de feições patrimonialistas, a lei não é instrumento de viabilização das liberdades de oportunidades. Muito pelo contrário. José Guilherme Merquior2 forte em Max Weber conceitua o patrimonialismo como uma estrutura de autoridade caracterizada pela indistinção entre as esferas públicas e a propriedade privada e, sob o ângulo sociológico, o estado patrimonial se singulariza pela ocorrência sistemática de formas de apropriação particular da máquina estatal.

Há exemplos aos borbotões na atualidade. O nepotismo no Judiciário em vários Estados contra a Resolução 14 do Conselho Nacional de Justiça. A conduta de prefeitos e secretários de Estado na condução da res pública, etc.. Por hoje, fiquemos com estes dois exemplos expressamente citados.

A luta pela manutenção de parentes em cargos comissionados, em vários tribunais no país, é deprimente e tão mesquinha que obrigou a AMB — Associação dos Magistrados Brasileiros a propor, no Supremo Tribunal Federal, uma Ação Declaratória de Constitucionalidade em face da resolução já citada. Enfim, um momento de lucidez.

Posturas como estas de alguns membros do Judiciário prejudicam a todos e dão ensejo a nossa afirmação de que a apropriação do público pelo particular ainda é uma constante no espaço político brasileiro e nas três esferas de poder. Daí porque bem indaga André Petry3: você confiaria num juiz que desse emprego em “seu” tribunal à mãe, à sogra, ao filho, ao primo, à tia e ao sobrinho? Você confiaria no senso de justiça desse juiz, no seu discernimento sobre ética, impessoalidade e moralidade administrativa? Você confiaria nesse juiz se, além de tudo isso, ele ainda se insurgisse raivosamente contra uma ordem de demitir toda a parentalha?

Podíamos ser poupados de tudo isto, sobretudo se o nosso Estado pugnasse pela liberdade de oportunidades, in casu, concurso público para todos estes cargos em comissão. Falta também transparência.

Já no Executivo, Elio Gaspari trouxe à tona dois casos pitorescos (em duas de nossas maiores capitais, São Paulo e Rio) de nossa imoral aplicação da lei, segundo a ótica de nossos governantes.

Segundo Gaspari4, o prefeito de São Paulo, José Serra, resolveu medir sua pressão arterial durante uma visita ao posto de saúde de Cidade Tiradentes, localidade habitada por 150 mil cidadãos de baixa renda. Trouxeram um aparelho daqueles com bolinha de mercúrio e, na hora H, cercado por jornalistas e fotógrafos, o aparelho pifou. Trouxeram outro desta vez para ser testado pela secretária de Saúde, Maria Cristina Cury, e nada de funcionar. Quando, então, o prefeito disse-lhe: “finge que funciona”. “12 por 8” disse a secretária.

Conclui Gaspari: “o prefeito e a doutora estavam num posto de saúde destinado a atender famílias de trabalhadores, dois aparelhos de medir pressão não funcionaram e, em vez de o céu desabar, privilegiou-se uma sessão de fotografias, simulando-se um tudo bem. Não ocorreu ao prefeito dizer que só sairia dali quando alguém conseguisse trazer um medidor de pressão capaz de medir pressão. (os aparelhos não funcionavam porque eram novos e continuavam lacrados. Continuavam lacrados porque não eram coisa do mundo da saúde pública de Cidade Tiradentes.)”

Veja, leitor, que a lei para os donos do poder é um mero instrumento legitimador do mando. Quem governa mente. Diz que o que “não funciona” funciona, e assim passa a ser, ainda que de forma virtual. Não há igualdade entre governantes e governados, não há sequer verdade no discurso democrático. Será democrático este falso discurso?

O outro exemplo citado por Elio Gaspari vem do Rio de Janeiro. O secretário municipal de Saúde, Ronaldo Cezar Coelho, acompanhava o ministro Saraiva Felipe numa visita ao Hospital Souza Aguiar, o maior pronto-socorro da cidade. Tudo uma maravilha. O ministro esteve num bonito e agradável auditório, refrigerado no padrão dos 20 graus. Caro leitor, foi tudo forjado. Diz Gaspari: “Tudo mentira. O ar dos doutores era falso, soprado por dez máquinas alugadas por quatro horas. Dezenas de metros adiante, na sala de espera do setor de emergência, a refrigeração deficiente levava algumas pessoas a refrescarem-se com panos úmidos”.

Veja, leitor, que o secretário justificou a decisão de alugar o tal aparelho de ar condicionado. “Não faz sentido receber o ministro da Saúde aqui e não ter ar condicionado. Isso é implicância de quinta categoria e não tem nada a ver com saúde. É uma bobagem. Não sei quanto custou e não vou discutir o preço de aluguel de ar-condicionado”.

Podíamos concluir, com as nossas palavras, mas, como acrescentar algo a esta maravilhosa conclusão do próprio Gaspari? “Se o secretário achava que não fazia sentido receber o ministro sem ar refrigerado, deveria recebê-lo em casa ou no seu gabinete. O que não faz sentido é associar a temperatura de um prédio à presença de maganos. (idéia: ministros e secretários com aparelhos portáteis, como os dos astronautas). A cobrança não deriva de implicância nem de bobagem. Deriva da falsificação deliberada da realidade. A resposta de Ronaldo Cezar Coelho reflete a arrogância do andar de cima, onde as pessoas habituam-se a achar que existe um Brasil onde não faz calor. Se faz, como fazia na emergência do Souza Aguiar, o problema é do brasileiro, que sempre vai para o país errado.”

Servidor público que falseia a realidade fere de morte, dentre outros preceitos jurídicos, os do artigo 1º, inciso III, dignidade da pessoa humana e 37, cabeça, moralidade e eficiência administrativa, ambos do texto constitucional.

O futuro de nossa democracia está condicionado a superação destas arraigadas contradições: de um lado, um Estado apropriado por privilegiados particulares que se intitulam “agentes públicos”, e de outro; a esmagadora maioria para os quais o Estado ainda é “o mais frios dos monstros” (Nietzche). Para os primeiros, as leis dependem de suas interpretações: “cada cabeça uma sentença”. Para os segundos, “a lei é dura mas é lei”.

Notas de rodapé

1 – Os donos do Poder. A Formação do patronato político brasileiro. 3º ed. Rio de Janeiro: Globo. 2001.

2 – A Natureza do Processo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 145-146.

3 – Tudo pela parentalha. Veja 1.942, ano 39, nº 5. 8/02/2006, p. 81

4 – O mundo encantado da enganação tucana. Rio de Janeiro. O Globo. 22/01/2006, p. 12.

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