Maus trabalhadores

Estabilidade de servidor a qualquer preço prejudica Judiciário

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13 de fevereiro de 2006, 18h06

Está em voga, depois da aprovação da Emenda Constitucional 45 e da criação/implantação do Conselho Nacional de Justiça, o tema “morosidade do Judiciário”. No dia 1º de fevereiro, o assunto pontuou o discurso de posse do desembargador Celso Limongi como presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Alguns creditam a ineficiência do poder público no atendimento das necessidades judiciais/jurídicas da população à escassez de funcionários e ao aparelhamento técnico e material insuficiente ao suprimento da demanda por Justiça, principalmente porque a população brasileira, mesmo aquela parcela que pouco ou nenhum acesso teve à educação formal, ao ensino básico, está cada vez mais consciente de seus direitos e tem buscado exercê-los na plenitude.

Outros crêem firmemente que a morosidade do Poder Judiciário no cumprimento de sua missão constitucional e democrática é conseqüência do excesso de prazos e recursos previstos na legislação pátria, o que possibilita a alguns estender de forma imoral o Direito Constitucional de “ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Outros tantos, com tanta razão, apostam que o motivo real da morosidade do Poder Judiciário é um misto das duas razões anteriores.

Nenhuma das correntes está errada. Os motivos são esses, mas a espinha dorsal da ineficiência está, em nossa opinião, na cultura equivocada da estabilidade do funcionário público a qualquer preço. É correto proteger o funcionário público das variações de humor dos governantes. É imprescindível que os servidores públicos não fiquem à mercê das constantes e aparentemente intermináveis oscilações políticas e da própria essência da democracia, configurada pela não-perpetuação dos detentores do poder.

Entretanto, alguns (poucos, é verdade, mas representativos) cidadãos que, em algum momento, superaram-se em eficiência, capacidade e dedicação e, concorrendo com milhares de outros tão-bem preparados quanto e conquistaram, merecidamente, o direito de serem investidos em um cargo ou função pública, ao assumi-lo, jogam fora toda aquela disposição e acomodam-se, seguros e estáveis.

Em outra parcela do funcionalismo, também pequena mas igualmente representativa, a mola propulsora da desmotivação, da ineficiência e do pouco-caso é a falta de perspectiva de crescimento na carreira, a falta de reconhecimento, a sujeição aos estrelismos e extremismos, à perseguição, à inveja e à falta de educação de superiores hierárquicos.

Tanto uns quanto os outros, dos citados exemplos, e — por que não? — todos os demais integrantes da categoria profissional, em seus vários níveis, com absoluta razão, tem como motivador da ineficiência a ridícula compensação financeira (salário) que o Estado lhes oferece.

Ao ingressar na carreira, o indivíduo crê cegamente que o salário é apenas um dos atrativos, mas o que conta mesmo, entre outras vantagens, é a estabilidade, a aposentadoria complementar, a assistência médica diferenciada — que, na maioria das vezes, possibilita a inclusão, como beneficiários, de parentes que normalmente não o seriam na iniciativa privada.

Com o passar do tempo, entretanto, esses (justos e imprescindíveis, registre-se) benefícios acabam se incorporando ao cotidiano dos servidores de tal forma que perdem seu valor inicial, deixando espaço para os anseios por bens materiais ou mesmo imateriais que só remuneração justa e adequada podem proporcionar.

E, nesse ponto, o poder público falha vergonhosamente. Governantes e autoridades (nem todos; sempre há uma parcela extremamente competente, eficiente e honesta) desde sempre gastam muito e gastam mal, “o meu, o seu, o nosso” rico dinheirinho — os recursos públicos. Rios, montanhas, mares de dinheiro público escorrem — desde sempre, repito — por valeriodutos, transamazônicas, ferrovias, estradas, avenidas, pontes, sedes imponentes de órgãos e empresas estatais, fundações, autarquias, bancos públicos, campanhas políticas e contas secretas em paraísos fiscais, e deixam de ser destinados ao atendimento das mais comezinhas necessidades da sociedade e da própria máquina pública.

Esse desprezo pela responsabilidade fiscal, pela honestidade, pelo bem comum que alguns (poucos, mas extremamente representativos) governantes e gestores da rês pública demonstram desde o descobrimento, por Pedro Álvares Cabral, em 1500, da Ilha de Vera Cruz, resultou na dívida pública (para falar da interna, somente) de pouco (??) mais de R$ 1 trilhão, segundo os dados oficiais consolidados de 2005.

Nos últimos 11 anos, temos de reconhecer, o governo federal fez um esforço hercúleo, não para pagar a dívida (creio que já se convenceram que ela é impagáve) mas para impedir que ela cresça de forma descontrolada. A fórmula se chama superávit fiscal, e consiste na economia do máximo possível de recursos para o pagamento de parte dos juros da dívida. Não sei se dará certo, mormente porque, como o único instrumento que o Conselho Monetário Nacional aparentemente demonstra haver para o controle da inflação é a própria taxa de juros, por razões meramente econômicas (os economistas que se encarreguem da explicação) a nossa é, há algum tempo, a maior do planeta.

Resultado: embora o superávit primário tenha sido recorde em 2005, superando a própria meta estipulada pelo governo em quase meio ponto porcentual, não foi suficiente para o pagamento integral dos juros da dívida que, consequentemente, cresceu alguns dígitos.

Toda essa divagação sobre economia e política monetária, entretanto, se deu face à necessidade de historiar e fundamentar a razão pela qual a remuneração do servidor público, de uma forma geral, está efetivamente aquém daquela que se poderia considerar justa. Isso porque, para fazer frente ao superávit fiscal — e, indiretamente, aos “dutos”, já citados, que escoam as verbas públicas — o Poder Executivo sempre opta pelo caminho mais fácil, qual seja, o de arrochar o salário de seus próprios servidores e represar ao máximo o orçamento do Legislativo e do Judiciário.

A história recente nos mostra que o Legislativo ainda encontra uma saída relativamente fácil — legisla em causa própria — e, “barganhando” com o Executivo, concede bons reajustes a seus funcionários. Já o Poder Judiciário, ao qual compete interpretar a Constituição e as leis e deve ser o primeiro a observá-las, precisa apresentar projeto de lei, negociar com o Congresso, aguardar a votação.

Mas nem a questão salarial, embora justíssima, justifica, de per si, a ineficiência e inoperância da máquina judiciária. E, acreditem, esse é o tema que nos propusemos a debater.

As questões financeiras, a (falta de) estrutura de carreira e mesmo de estrutura material que muito se observa nos vários níveis do Poder Judiciário podem e devem ser solucionadas mediante exaustiva negociação em que estejam envolvidos os funcionários públicos, os dirigentes da administração judiciária, os representantes do Legislativo e do Executivo e, quiçá, da própria sociedade constituída que, afinal, é a destinatária dos serviços e quem, em única e última instância, arca com os custos de manutenção desta estrutura.

Muito mais que a metade dos obstáculos que dificultam, senão impedem, uma Justiça rápida e eficiente como almejamos e merecemos é constituída pelo absoluto desprezo que aquela pequena (mas extremamente significativa) parcela do funcionalismo público demonstra para com os interesses da sociedade que representa, em desonra ao mandato público que lhe foi outorgado.

Em qualquer empresa privada, de qualquer nível — do boteco da esquina à maior mineradora do país, da pequena confecção de fundo de quintal ao grande conglomerado industrial, da casa lotérica aos maiores representantes do sistema financeiro nacional —, quando o empregado não preenche as expectativas do empregador, quando deixa de observar seus prazos e suas responsabilidades, quando macula a credibilidade da empresa perante o mercado em que atua, quando não labora com o espírito de equipe ou quando, por qualquer forma, causa prejuízos ao empregador, ele simplesmente é demitido, com ou sem justa causa, e indenizado, nos termos da lei.

Algumas empresas, socialmente responsáveis, promovem cursos de reciclagem e de aperfeiçoamento, viabilizam novas oportunidades e adotam tantas quantas forem necessárias as medidas que antecedam o rigor extremo da demissão. Mas, se nada der certo, simplesmente demitem. Os gestores das empresas privadas tem como objetivo principal a remuneração do capital do investidor, do acionista. Acessoriamente, tem que prestar contas ao poder público, pagando impostos, e à sociedade, investindo em ações sociais e na preservação ambiental, tudo com vistas à melhoria de sua marca, de sua imagem perante a sociedade, o que inevitavelmente resulta em novas oportunidades de negócio — e de lucros, naturalmente. Não podem, portanto, suportar o mau funcionário a qualquer preço.

Já o Estado tendeu a confundir a proteção natural que o funcionário público deve ter contra ações de cunho meramente político ou eleitoreiro, como dissemos no início, com premiação à incompetência, ao desmando, ao desprezo pelos interesses da sociedade.

Há vários exemplos dessa inversão de valores. Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça determinou que fosse prolatada a sentença em um inventário/arrolamento que, tendo condições de se encerrar, tramitava, se não me engano, há 18 anos em um estado do Sul do país. Em determinada capital do Nordeste, uma ação ordinária de cobrança, cumpridas as etapas iniciais, ficou três anos no aguardo do despacho saneador (impulso oficial, atividade de competência exclusiva do magistrado). Como ele não veio, o patrono da parte autora aviou representação, perante a Corregedoria do Tribunal de Justiça, em face da juíza titular da respectiva Vara Cível que, em informações que prestou, culpou a falta de funcionários e de equipamentos (o que é verdade) e, principalmente, a inoperância do advogado, que “não encostou a barriga no balcão” para fazer o processo tramitar!! Como punição por sua ineficiência, seu descaso, incompetência e inoperância, a magistrada foi promovida ao tribunal, tornando-se desembargadora, e o processo, dois anos depois, ainda está no aguardo do impulso oficial.

Basta que todos os funcionários do Poder Judiciário no país, hoje, se disponham a efetivamente trabalhar, a se organizar, a cumprir e respeitar as leis que lhes assinalam prazos e modos de conduta, que seguramente mais da metade dos processos que hoje tramitam (??) há vários anos encontrarão um desfecho justo, alicerçado nas disposições legais vigentes.

Basta que o desempenho funcional dessa pequena — porém extremamente significativa — parcela de servidores passe a ser analisada sob os mesmos critérios que balizam os interesses da iniciativa privada — eficiência, competência, agilidade, comprometimento, qualidade, presteza, dedicação, etc. —, reciclando, transferindo, reaproveitando ou mesmo demitindo os que não se adequarem às necessidades e exigências da sociedade, e recompensando os que o façam com justa contrapartida remuneratória e profissional, que os demais obstáculos à perfeita distribuição de Justiça se tornem menores e de menos complexidade em sua solução.

Em resumo: menos política, mais eficiência; mais eficiência, menos demora; menos demora, mais Justiça.

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