Força moral

Corte Interamericana luta para resgatar direitos humanos

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  • Eloísa de Sousa Arruda

    é mestre e doutora em Direito pela PUC-SP onde leciona Direito Processual Penal e Justiça Penal Internacional nos cursos de graduação e pós-graduação. Procuradora de Justiça aposentada.

28 de abril de 2006, 7h00

Chile, 1973. Na manhã de 15 de setembro, o professor Luís Almonacid Arellano, militante do Partido Comunista e lider sindical, foi retirado de sua casa por integrantes de uma patrulha militar com o fim de prestar declarações. Poucos metros depois, ainda sob as vistas de sua mulher, filhos e vizinhos, foi sumariamente executado com uma rajada de metralhadora disparada pelas costas. A justificativa apresentada para o inusitado ato foi de que o professor esboçou fuga.

Após anos de tentativa da família para responsabilização dos culpados pelo crime, veio a sentença da Corte Marcial Chilena, em março de 1998, aplicando a chamada Lei de Auto-Anistia (Decreto-lei 2.191/78) e isentando de punição os autores da barbárie. Referida lei, editada ainda sob o regime do general Augusto Pinochet, impede que sejam processadas pessoas implicadas em crimes, inclusive execuções sumárias, ocorridos entre 11 de setembro de 1973 e 10 de março de 1978. Com o pretexto de garantir uma transição pacífica e reconciliatória para a democracia, tal lei serviu, como hoje se admite, à consagração da impunidade de autores e cúmplices de crimes cometidos no período de uma das ditaduras mais cruéis da latino-américa.

Paraguai, 1989. O jovem soldado Gerardo Vargas Areca, alistado no serviço militar obrigatório aos 15 anos, deixou o quartel para as festividades de Natal juntos aos pais e dez irmãos. Atrasou-se um dia no retorno às funções. Tratado como desertor e acusado de insubmissão, foi torturado e morto.

Na véspera do ano novo, a família recebe do comando do Exército um caixão lacrado, com a recomendação de que o sepultamento ocorresse prontamente. Descumprindo a determinação, para que a mãe pudesse ver pela última vez o filho, o caixão foi aberto com a ajuda de um médico legista brasileiro que constatou sinais evidentes de tortura no jovem. Desde então, tem sido incessante a busca de Justiça por parte da família do soldado, que até o momento não se concretizou.

Estes são apenas dois dos emblemáticos casos submetidos à apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujo XXVII Período de Sessões Extraordinárias ocorreu nas dependências do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, de 28 a 31 de março. Participaram das sessões mais de 400 operadores do Direito, estudantes e integrantes de entidades não governamentais ligadas à proteção dos direitos humanos, vindos de diferentes países da América Latina.

O evento tem magnitude histórica, por ser a primeira vez que o Brasil sedia a instalação dos trabalhos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Integrada por sete juízes de diferentes países do continente americano, entre eles o jurista brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade, a corte é uma instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos, com sede permanente em San José da Costa Rica. Tem o objetivo de interpretar e aplicar a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica.

Exerce funções contenciosas e consultivas. A primeira objetiva solucionar casos em que se imputa a um Estado parte a violação da convenção. A segunda refere-se à faculdade que têm os Estados membros de consultar a corte sobre a interpretação da convenção e de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. Em casos de extrema gravidade e urgência, poderão ser adotadas medidas provisórias para evitar danos irreparáveis às pessoas, tanto em casos que estejam sob o conhecimento da corte, como em assuntos que ainda não tenham sido submetidos ao seu conhecimento.

Cabe à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, após proceder a juízo de admissibilidade um caso, requerer à corte sua apreciação e julgamento.

Para que a demanda seja apresentada à corte é necessário que haja indicativos claros de omissão ou ineficiência das autoridades incumbidas da apuração e responsabilização dos culpados no âmbito interno do Estados. Ou seja, a corte tem uma função adicional, coadjuvante e complementar das jurisdições internas.

As sentenças proferidas pela corte podem determinar o pagamento de indenizações às vítimas e também recomendar a implementação de políticas públicas de combate à violação aos direitos humanos. Estas decisões devem ser executadas internamente pelos Estados-membros no prazo de seis meses a um ano a contar da sua prolação e são irrecorríveis. O descumprimento das determinações emanadas das sentenças pode levar à condenação moral do Estado no âmbito internacional.

O Brasil, sendo um dos 21 países que reconheceu a competência litigiosa da corte, está sujeito às eventuais sanções que, após o devido processo, sejam por ela impostas. É bom lembrar que tramitam pela comissão e também pela corte inúmeros casos brasileiros envolvendo violações aos direitos humanos tais como racismo, tráfico de mulheres e crianças para fins sexuais, trabalho escravo e más condições carcerárias.

As decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos vinculam os Estados ao seu cumprimento e têm o sentido de romper com o ciclo de desamparo de vítimas e seus familiares diante da negligência estatal.

Mas, acima de tudo, do julgamento destes casos paradigmáticos emerge uma força moral, servindo de referência para fazer cessar a violação crônica aos direitos humanos e criando pouco a pouco uma consciência de respeito ao próximo.

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