Vontade do povo

Supremo, Habeas Corpus, súmula, sorrisos

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27 de outubro de 2005, 14h25

Não assisti à sessão do Supremo Tribunal Federal em que se concedeu Habeas Corpus ao filho de Paulo Maluf. O benefício foi logo estendido ao pai, no cumprimento da regra jurídica, segundo a qual, quando duas ou mais pessoas são processadas em conjunto, o recurso de uma delas beneficia as demais (a ação de Habeas Corpus não constitui, tecnicamente, um recurso, mas atua como se fosse). Também não li, porque ainda não publicados, os votos favoráveis e contrários aos dois pacientes (denomina-se paciente ― do latim pati, sofrer ― a pessoa em cujo favor se requer o Habeas Corpus porque ela sofre a restrição, atual ou iminente, da liberdade de locomover-se).

A imprensa noticiou o resultado do julgamento em manchetes barulhentas. Algumas reportagens estranharam e reprovaram a libertação dos dois detentos, pai e filho, já condenados pela opinião pública. Na página 13 da edição deste sábado, 22, “O Globo” (por que dizer “um certo jornal”, como habitualmente se faz?), sob o título “Justiça dos ricos”, chega a dizer que “ao mandar libertar Paulo e Flávio Maluf, sem levar em conta a própria súmula, o Supremo Tribunal Federal degradou a percepção que a sociedade tem do Poder Judiciário”. Segue o jornal atirando, quando afirma que o julgamento “ajuda a disseminar a corrosiva idéia de que a Justiça trata ricos e influentes de forma diferente da maneira com que cuida de pobres e marginalizados”. Na mesma página, o jornal noticia a crítica do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil ao julgamento do STF. Conforme a reportagem, ele considera perigosa a concessão do Habeas Corpus, “contrariando súmula do próprio tribunal”.

Cabe ao Supremo Tribunal Federal julgar os processos que lhe chegam, mediante a aplicação da Constituição Federal, cuja guarda é a sua principal função (Constituição, artigo 102) e das demais leis. No exercício da sua função, ele não pode cortejar a opinião pública, nem preocupar-se com o juízo que se fará acerca das suas decisões. Como intérprete da Constituição e das leis, o Supremo Tribunal julga, indiferente às reações da nação e da mídia porque ele se degradaria, cometendo erros de vontade, se não procedesse assim. Se esperasse a aprovação popular a cada decisão, ele se vergaria à oscilante opinião das ruas e dos meios de comunicação. Submetendo-se a ela desse modo, não estaria atendendo a vontade do povo. Na verdade, ele obedece essa vontade, quando cumpre a Constituição, que lhe ordena julgar submisso à lei e à consciência dos seus juízes.

Existe uma diferença, nada sutil, entre a vontade permanente do povo, encerrada na Constituição, e a vontade ocasional, fugaz, perfunctória da opinião pública. Veja-se a Suprema Corte americana, modelo do Supremo Tribunal Federal também nisto: insensível a protestos, pressões, passeatas, movimentos pelo impeachment dos seus juízes, críticas da mídia, a Corte Suprema dos Estados Unidos profere os seus julgamentos, e só neles próprios justifica as suas decisões. As duas cortes de justiça são tribunais políticos, por isso atentos às circunstâncias envolvendo muitos dos seus casos, o que, contudo, não significa julgar para agradar.

Nunca tive, nem tenho, qualquer relação pessoal ou profissional com o ex-prefeito de São Paulo, ou com a sua família. Não conheço nenhum dos Maluf. Nutro invencível aversão aos métodos daquele político e creio que, apurada a sua culpa num processo judicial, ele deva ser exemplarmente punido. Pergunto, entretanto, por que o mais alto tribunal do Brasil pode mudar o seu entendimento quanto à admissibilidade de um Habeas Corpus, e concedê-lo a João da Silva, mas fica proibido de outorgar a medida a Paulo Maluf e seu filho. Se não se tolera o tratamento desigual em favor dos ricos contra os pobres, também não se pode concordar com o tratamento desigual que dê aos pobres o que nega aos ricos, postos nas mesmas condições. O velho ensinamento de Rui Barbosa, segundo quem a regra suprema da igualdade consiste em quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam, não se aplica no caso em que um milionário e um miserável sofrem ambos os dois uma sanção ilegal.

Vamos agora ao alegado desrespeito do Supremo Tribunal Federal à sua própria súmula. O que é a súmula da jurisprudência dominante naquele tribunal, ou em qualquer outra corte de justiça do Brasil? Uma proposição que resume o conteúdo de decisões uniformes do tribunal acerca da mesma matéria. Exemplo: depois de decidir, reiteradamente, que não cabe o recurso extraordinário, da sua competência, para simples interpretação de cláusulas contratuais, o STF condensou o seu entendimento na súmula 454: “simples interpretação de cláusulas contratuais não dá lugar a recurso extraordinário”. No mesmo sentido, a súmula 5 do Superior Tribunal de Justiça, quanto à admissibilidade do recurso especial que para ele se interpõe.

A súmula, idealizada por Victor Nunes Leal, um dos maiores juízes do Supremo Tribunal, mostra aos jurisdicionados a jurisprudência do Supremo. Norteia, orienta. Tem a vantagem de dispensar referência a cada um dos julgados em que adotou o entendimento nela retratado. Entretanto, a súmula não engessa o STF, nem o STJ, os quais, a qualquer tempo, podem revê-la, ou modificá-la. Nem esses tribunais, nem qualquer outro estão obrigados à obediência da súmula. O §1º do artigo 102 do regimento interno do STF e o artigo 125 do regimento do STJ prevêem a revisão da súmula. Isto, efetivamente, acontece, de quando em vez.

A Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, enxertou, na Constituição, o artigo 103-A. Ele permite ao Supremo Tribunal, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que lhes resuma o conteúdo. Essas súmulas, ditas súmulas vinculantes, obrigam os demais órgãos do Judiciário a decidir no sentido do que nelas se contém. Mas mesmo a súmula vinculante pode ser revista ou cancelada, como previsto no §2º do artigo 103-A. Não tem a natureza de vinculante a súmula que se alega desrespeitada pelo STF, no julgamento dos Maluf. Podia, então, o tribunal decidir diferentemente dela, sem que com isso houvesse violado qualquer norma ou princípio.

A propósito, a revogação da súmula 691 tem sido reclamada pelos advogados. A jurisprudência nela condensada não permite a impetração de Habeas Corpus ao STF contra ato singular do relator que, noutro tribunal, indeferir o pedido de concessão liminar da medida. Basta, então, que o relator, por qualquer motivo, retenha o pedido de Habeas Corpus e não o inclua em pauta, a fim de ser julgado por ele e por seus pares para que o paciente permaneça na cadeia. Esse excesso de poder, decorrente da orientação dominante, precisa ser contido, mediante decisões que não acatem a súmula.

Sorrisos: escapou ao tradicional bom gosto de “O Globo” e de “O Estado de S. Paulo”, nas suas edições da sexta-feira, 21, a publicação destacada da foto em que, sorridentes, prestes a se apertarem as mãos, aparecem o Ministro CARLOS VELLOSO, relator do Habeas Corpus concedido aos Maluf, e o ex-presidente da OAB, JOSÉ ROBERTO BATOCHIO, advogado dos pacientes. Cochilaram os dois jornais, publicando a fotografia, que pode inspirar a suspeita de algum compadrio entre o juiz e o causídico.

Esclareça-se, entretanto, que, na cultura jurisdicional brasileira, é comum a amizade, ou a troca de afabilidades, entre juízes e advogados, trabalhadores da mesma seara, incumbidos ambos da administração da justiça. A ligação de camaradagem entre eles é irrelevante. Não haverá advogado experiente sem a lembrança de haver perdido causa julgada por um ou mais amigos. Durante um mês, viajei pela Europa na companhia de um desembargador. Logo após o regresso, ele julgou importantíssima causa minha e rejeitou, enfaticamente, todas as minhas razões, uma ou duas com indevida acrimônia. Na hora de recorrer, baixei o porrete no seu julgamento. Continuamos até hoje muito amigos.

Dario de Almeida Magalhães conta que o seu pai, RAPHAEL, desembargador no Tribunal de Justiça de Minas, tinha, na pessoa do advogado JAIR LINS, o seu melhor amigo. Conversavam, diariamente, no muro limítrofe dos seus quintais. Iam juntos ao cinema. Jamais comentaram um com o outro os seus julgamentos ou petições. SOBRAL PINTO, em Brasília, hospedava-se na residência de VICTOR NUNES LEAL, ainda quando estivesse na capital para defender, no STF, causa de que o seu hospedeiro era relator. Derrotado, SOBRAL só se permitia recolher-se a um silêncio denso, no automóvel de volta à casa do ministro.

O direito brasileiro compreende que advogados e juízes, atuantes no mundo forense, se tornem amigos, ou, ocasionalmente, inimigos. Ainda assim, o Código de Processo Civil, no art. 135, I, e o Código de Processo Penal, no art. 254, I, só reputam fundada a suspeita de parcialidade do juiz, quando amigo íntimo ou inimigo capital da parte; só da parte; nunca do seu advogado. A presunção é a de que, pela estatura moral deles exigida, os sentimentos de uns pelos outros, bons ou maus, não perturbarão nem a postulação, nem o julgamento. A tal fotografia, nem sei se tirada na sessão de julgamento do Habeas Corpus, retrata a simpatia congênita do ministro; a invariável cordialidade do advogado. Nada mais.

Artigo publicado no site nomínimo

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