Ditadura democrática

Ações do governo Lula frustram esperança dos operadores de Direito

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29 de agosto de 2004, 15h32

O mês de janeiro de 1972 ainda estava no seu sexto dia quando desembarquei na Rodoviária de Brasília. Trazia a pequena família e uma mala cheia de sonhos e esperanças. A ditadura Médici imperava, mas, nos bastidores da advocacia, ecoavam os lamentos silenciosos da resistência democrática.

Recém-formado, fui acolhido no escritório do doutor Victor Nunes Leal, reduto de luta contra o arbítrio. O ministro Victor Nunes havia sido aposentado compulsoriamente por ato institucional como ministro do Supremo Tribunal. Com ele, no escritório, estavam o advogado Cláudio Lacombe, que renunciou ao Tribunal Superior Eleitoral, e os ex-promotores de Justiça José Paulo Sepúlveda Pertence e José Gerardo Grossi, também atingidos pelo ato discricionário.

Os atos que atingiram os advogados eram conseqüência do pedido de aposentadoria do ministro Adauto Lúcio Cardoso, que saiu do Supremo Tribunal Federal em protesto contra a decisão que não acolheu a representação de decretação de inconstitucionalidade do Decreto-Lei 1077, que instituía a censura prévia a livros e periódicos.

Esses advogados incentivavam os jovens para que lutassem e se posicionassem politicamente e não esmorecessem na busca do restabelecimento da democracia e do Estado de Direito. O discurso do ministro Adauto Lúcio Cardoso servia de alento e esperança para os que se iniciavam na dura missão de fazer imperar a Justiça.

Apesar da ditadura, os tribunais funcionavam, e os direitos dos cidadãos, nas questões entre partes, precisavam ser defendidos. Assim trabalhávamos, como é na China e em Cuba; se os direitos requeridos não forem contra o governo, todos são livres para advogar.

A chegada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder gerou nova esperança dentre os operadores do Direito. Imaginou-se que as ações que guilhotinaram os direitos dos trabalhadores, dos idosos, dos aposentados e dos menos favorecidos seriam reconhecidas imediatamente.

Não foi isso o que aconteceu: as ações de recuperação dos prejuízos causados por planos econômicos no FGTS estão sendo levadas para os inventários de seus falecidos interessados; o minguado salário mínimo pouco basta para os aposentados e pensionistas prolongarem a vida comprando os remédios que garantem mais alguns dias de sobrevivência e esperança de receber os atrasados; a não correção da tabela do Imposto de Renda, impondo carga insuportável sobre os trabalhadores; e, afinal, as taxações que incidirão sobre os ganhos dos servidores públicos aposentados — decisão mais recente do Supremo Tribunal Federal — é que causam desencanto e revolta.

A confiança depositada na independência dos juízes é resumida no conto de François-Guillaume-Jean-Stansislas-Andrieux, O Moleiro de Sans-Souci. O poeta narra que, quando o rei da Prússia resolveu mandar construir o castelo de Sans-Souci, o seu intendente tudo fez para afastar da vizinhança um modesto moleiro, cujo moinho daria uma nota prosaica a tão belo sítio. O moleiro, porém, não aceitou nenhuma proposta para sair do local e permitir a demolição de seu moinho. Ameaçado com a expulsão violenta, não se deu por vencido e gritou, decidido a ir lutar com o rei na Justiça: “Il y a des juges à Berlin” (Há juízes em Berlim).

A decisão do Supremo Tribunal Federal, impaciente com a lentidão do processo legislativo, deve ser examinada com atenção, respeito e sem medo, como o fez o professor Paulo Bonavides; ou, brevemente, veremos ministro renunciando e se mudando para Berlim em protesto contra a nova modalidade de ditadura.

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