Eleições 2002

Estadão diz que Ciro Gomes flerta com o fascismo

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31 de julho de 2002, 20h32

No mesmo ritmo em que a arquitetura econômica do país mostra sua fragilidade, com a rápida desvalorização da moeda, sobe a temperatura eleitoral.

A nítida preferência das principais empresas jornalísticas pela candidatura de José Serra não tem sido suficiente para fazer decolar a candidatura governista. Mas os severos ataques aos demais concorrentes têm provocado abalos consideráveis nas campanhas de Lula, Ciro Gomes e Garotinho.

Nesta quarta-feira (31/7), o jornal O Estado de S.Paulo, em editorial, fez uma crítica de fundo e uma grave análise do programa de Ciro Gomes. Na visão do jornal, a eventual vitória do candidato é um risco para o país.

Leia o editorial

Flertando com o fascismo

Se há um texto de leitura obrigatória no atual momento brasileiro é o do programa de governo de Ciro Gomes – sobretudo as passagens que descrevem os seus planos de reforma das instituições políticas, que não poupam nem o regime federativo. A obrigação é ditada pela sua ascensão nas pesquisas.

Pois, se as chances de Ciro fossem as de um Enéas em pleitos anteriores, essas propostas poderiam ser sossegadamente esquecidas como destrambelhadas fantasias autoritárias de concretização tão improvável como as aspirações de quem as sustentasse. Dadas as circunstâncias, porém, a reação a elas não pode ser de descaso – mas de profunda inquietação.

Esta página já analisou, domingo, dois motivos de sobressalto diante do cenário em que um aprendiz de feiticeiro, na chefia do governo, tente adaptar as instituições ao seu voluntarismo e aversão à negociação. São eles a “parlamentarização” do presidencialismo e a “democracia direta” com que sonha o candidato, inspirado em seu exótico mentor, Roberto Mangabeira Unger, baiano de sotaque ianque que leciona Filosofia do Direito na Universidade Harvard. A “parlamentarização” está assim “explicada” no programa do candidato: “Como maneira de dotar o regime presidencial de mecanismos para a resolução de impasses, parlamentarizando-o (sic!), propor que tanto o presidente quanto o Congresso possam unilateralmente (sic!) convocar eleições antecipadas para os dois poderes, quer diante de um impasse programático ou legislativo abrangente e persistente (sic!) quer em resposta à desintegração de uma base partidária capaz de sustentar um projeto forte de governo.” A proposta de “democracia direta”, de certa forma, redundante da anterior, remeteria ao eleitorado, na base do “sim” ou “não”, a decisão plebiscitária sobre projetos complexos e controvertidos.

Os disparates que o leitor acabou de ler têm complementação: o programa propõe também um “federalismo flexível”, mediante a instituição de “colegiados transfederais” para, nas áreas de educação e saúde, promover “a redistribuição de recursos dos Estados e municípios mais ricos, de acordo com critérios a negociar” (grifo nosso). Em primeiro lugar, o candidato parece ignorar que o atual governo, no que foi um dos seus maiores avanços, acabou com as transferências negociadas entre as diferentes esferas federativas – fonte histórica de barganhas clientelísticas. A alocação dos recursos está hoje subordinada a critérios estritamente objetivos, como os que regulam a distribuição de verbas do Fundef, na educação, e os repasses do SUS, na saúde. Na realidade, o que o candidato propõe serviria apenas para discriminar Estados e regiões e, assim, distribuir recursos de acordo com interesses políticos – o mais prioritário dos quais, como veremos em próximo editorial, é prejudicar São Paulo.

Segundo – e mais importante ainda, do ângulo da estabilidade institucional -, essa flexibilização viria no bojo de uma “repactuação da Federação”, seja lá o que isso possa representar, além de um fósforo aceso na mata seca. Não é difícil entender por quê. O próximo Congresso deixará saudade do atual, em matéria de estruturação e organicidade política. O dado talvez mais alarmante da disputa sucessória é a decomposição do sistema partidário de apoio – e de oposição – ao presidente Fernando Henrique. A forma como se agruparam as siglas nestes últimos oito anos parecerá um modelo de limpidez programática e coerência política, de fazer inveja a uma Grã-Bretanha, perto do que resultar, para a atividade legislativa, da absoluta mixórdia oportunista de alianças eleitorais que marca a campanha em curso e não promete nada de bom.

Ciro Gomes, para citar o exemplo mais notório, tem a seu lado Leonel Brizola, Antonio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen, a tropa de choque de Fernando Collor, o antigo Partido Comunista Brasileiro e a direita militar de pijama. Se eleito – e pretender cumprir as suas promessas – acabará fazendo aquilo a que Fernando Henrique, mesmo no auge da sua popularidade, sempre se recusou: entrar em conflito com o Congresso. Longe de ter ali qualquer coisa parecida com a base de sustentação que, a duras penas, o presidente soube manter, Ciro não conseguirá aprovar nem o presidencialismo-parlamentarista, nem a democracia plebiscitária, muito menos a repactuação federativa – porque nada polariza tanto os políticos como os interesses regionais.

Mas, enquanto perdurar a queda-de-braço com o Congresso – contra o qual, cedo ou tarde, Ciro será tentado a mobilizar as “maiorias desorganizadas” de que fala no programa -, o seu pendor bonapartista mergulhará o País em um torvelinho de incertezas institucionais, que reforçarão as crispações econômico-financeiras que já afetam o País e, por sinal, se agravaram com o crescimento de Ciro nas pesquisas. Nenhuma força comprometida com a democracia, a começar do PT de Lula, pode desconsiderar essa ameaça. E todas têm o dever de advertir o eleitorado para o perigo de uma candidatura que flerta com o fascismo.

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