Juros extorsivos afrontam Constituição, diz advogado.
8 de junho de 2001, 0h00
Se num passado não muito distante a inflação era o grande “fantasma” do brasileiro, hoje em dia o grande vilão de nosso povo são as extorsivas e ilegais taxas de juros cobradas pelos agentes financeiros e, por absurdo, afrontando cabalmente o disposto em nossa Carta Magna. Proclama o parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal que:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:
(…).
parágrafo 3º. As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar. (Grifo nosso)
Até cerca de dois anos uma grande controvérsia girava sobre o tema. O cerne da questão era quanto à auto-aplicabilidade do artigo 192 da Carta Magna. Felizmente, hoje em dia os tribunais têm se voltado com maior atenção ao tema e conseqüentemente chegado a novas conclusões. E de outra forma não poderia ser em face ao melhor entendimento da matéria e ao relevante interesse social que tais decisões acarretam.
Baseavam-se as decisões contrárias a aplicabilidade do parágrafo 3º do art. 192, no disposto no caput do artigo que prevê a criação de uma Lei Complementar que regulasse a matéria acerca do Sistema Financeiro Nacional.
Ocorre que, após mais de dez anos da promulgação da Constituição Federal o Congresso Nacional continua em mora quanto à legislação requerida, o que acarreta tamanha confusão sobre a aplicabilidade do dispositivo.
Todavia, o legislador constituinte ao inserir este preceito na lei deixou clara a sua intenção de coibir a cobrança de juros acima de 12% ao ano. E note-se que àquela época nossa economia não era tão estável quanto hoje.
O exposto pode ser demonstrado por duas vias, primeiro por uma questão de interpretação textual da norma, pois a forma em que se inseriu o dispositivo em exame deixa clara a intenção do legislador em conferir-lhe a autonomia. De outra parte pode-se demonstrar sua validade através de um exame maior do pensamento do legislador constitucional e da eficácia da norma em si.
Acontece que, a forma que o legislador constituinte utilizou para a redação da norma em comento, data vênia, não foi a mais adequada, pois visou tratar de diferentes temas sobre o mesmo assunto em um único artigo, o que causou grande confusão na sua interpretação.
O artigo 192 ficou dividido em: caput, oito incisos e três parágrafos. Com isto tende-se a crer que todo o texto esteja diretamente relacionado ao caput e deste dependente, o que não se confirma.
Observe-se, que um exame mais minucioso do artigo irá demonstrar que apenas os incisos, de I à VIII, seguem uma linha lógica do texto do caput. Senão vejamos:
O final do caput estabelece que: “(…) disporá, inclusive, sobre:” e o início de cada inciso se inicia com uma determinação exemplificativa sobre o que a Lei Complementar deverá dispor, como por exemplo “I – a autorização para o funcionamento das instituições financeiras (…); IV – a organização, o funcionamento e as atribuições do Banco Central (…); VIII – o funcionamento das cooperativas de crédito (…). Podemos dizer então que o conteúdo de cada inciso é de eficácia contida, vez que apenas indica algo que deverá conter na Lei.
Por outro lado, os parágrafos 1º, 2º e 3º se iniciam de forma autônoma demonstrando a intenção do legislador de conferir-lhe auto-aplicabilidade. Em realidade cada parágrafo deveria estar redigido como um artigo, posto que não depende do texto do caput do art. 192, vez que trazem disposições inteligíveis por si só. O ocorrido se explica pelo descuido do legislador que no afã de diminuir o número de artigos, ou não permitir que esse fosse muito alto, transformou diversos artigos em parágrafos e não raras vezes em incisos, compilando normas diversas, independentes e autônomas, sob artigos que tratavam doe tema semelhante.
Esta técnica de redação, em especial sobre este artigo, já foi anteriormente discutida na necessária obra “Curso de Direito Constitucional Brasileiro” do professor José Afonso da Silva.
Por outro ângulo de análise, considerando-se que o constituinte nacional na elaboração da Carta Maior consagrou como juro real à taxa de 12% ao ano, demonstrando uma fundamentada preocupação com a excessiva remuneração do capital a desincentivar o investimento produtivo, tornando inviável a economia do país.
Levando-se em conta, ainda, que o constituinte representa os interesses de toda um nação, elevando a Constituição Federal ao patamar mais alto da legislação pátria, sem que qualquer Lei Ordinária possa ofuscar tal posição.
É inadmissível imaginar que uma norma infraconstitucional tenha maior força e importância que a Carta Magna e possa ir de encontro à determinação expressa desta.
No entanto é este o raciocínio de que se utilizam os que defendem que seria necessária uma Lei Complementar para regular a cobrança de juros. Se de outra forma, como admitir que a Constituição limite os juros em 12% ao ano, mas que uma Lei Complementar poderia estipula-los a maior? Caso não pudesse qual a falta que esta lei faria para o entendimento e aplicação do disposto no §3º do artigo 192?
Nas sempre sábias palavras do desembargador Régis Fernandes de Oliveira, “imaginar o contrário seria instituir um delimitador à eficácia da norma constitucional que representaria, em última análise, em atentada “a soberania do poder constituinte… porque lei complementar não poderia dispor de forma em contrário ao texto constitucional que, por si só é suficiente para ser aplicado… percebe-se, claramente, que a norma constitucional gerou direito exercitável no círculo do direito financeiro, criador de uma limitação. Está ela plenamente delimitada no corpo da norma constitucional, independente de qualquer Lei ou norma jurídica posterior” ( in RT 666/233)
Pelo demonstrado aufere-se que não há razão de direito para a não aplicação da limitação constitucional prevista no parágrafo 3º do art. 192, senão a de se enfrentar um tema polêmico como este, que vai de encontro a grandes interesses econômicos.
A Adin. nº 4-7, que versou, entre outros assuntos, sobre o tema em comento, tendo como defensores da auto-aplicabilidade do artigo 192, parágrafo 3º os Exmos. Srs. Ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso, Paulo Brossad e Néri da Silveira (não tendo participado do julgamento o Exmo. Sr. Ministro Sepúlveda Pertence, por encontrar-se impedido), foi nesta parte julgada a favor da não aplicação autônoma do artigo, e é por muitos utilizados para por fim a argumentação sobre a autonomia ou não do artigo.
Ora, apesar da importância e douta conceituação, o acórdão proferido na Adin. Não pode este ser encarado como resposta definitiva ao debate, sob pena de se engessar a doutrina e jurisprudência, sempre que uma decisão for proferida naquela digníssima Casa.
Nesta seara é que se volta a discutir, talvez agora ainda com mais vigor em função do atual momento econômico vivido pelo país, onde apesar das taxas de juros se manterem estáveis e a inflação em baixa, a recessão assola nosso povo. Este é o momento para novas vozes se fazerem ouvir e demonstrarem que por mais respeito que devamos ter ao nobre STF, e o temos, não podemos calar ao nos depararmos com uma decisão que, data máxima venia, vai de encontro à Carta Magna e ainda contra todo uma nação.
Devem os nobres magistrados fazer valer o seu juramento de defender acima de tudo a Constituição Federal, independentemente das decisões dos Tribunais de mais altas instâncias, e julgar de acordo com o seu convencimento, com o seu entendimento a respeito da matéria. Não se prega uma afronta às decisões dos Tribunais Superiores, casas de mais elevada reputação e sabedoria, mas sim uma possibilidade de reexame da matéria através da demonstração de mudança no pensamento majoritário.
Assim o fez, com o constante brilhantismo e erudição que lhe são peculiares, o Exmo. Sr. Min. Marco Aurélio em voto proferido no RE 222.068-1 e, humildemente, me utilizo de suas palavras para finalizar este breve comentário sobre à auto aplicabilidade do parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal:
“(…) aquele tomador de empréstimo – com juros extorsivos a conduzirem fatalmente, à morte civil – não conta com meio hábil a tornar prevalecente o direito assegurado constitucionalmente.
O resultado desta visão, distanciada dos interesses maiores do povo brasileiro, está aí mesmo, com o desemprego grassando, a economia paralisada e o País partindo para uma situação inconcebível. Por isso, resolvi reexaminar a matéria e, mesmo correndo o risco de ser mal compreendido, tornar claro e preciso meu entendimento sobre o que se contém na Carta da República. Dir-se-á que haverá, apenas, mais um voto vencido.
A mim isso não importa, porquanto devo cumprir o dever assumido de tornar eficaz a Carta Política da República, honrando a toga que tenho sobre os ombros até que me falte entusiasmo para tanto e a deixe em definitivo.
Vozes que calam são vozes coniventes, contribuindo para o que Barbara Tuchmam aponta como “a marcha da insensatez”. Destarte, até mesmo com algum lamento, porquanto silenciei, ressalvando o entendimento pessoal, nesses últimos oito anos, mas isto serve de alerta quanto a outras situações semelhantes, volto à posição primeira e o faço com a tranqüilidade de estar combatendo o bom combate.(…)”
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