'Código de barras deve ser adequado para informar consumidor'.
24 de julho de 2001, 19h05
1. Um falso problema
O título do presente ensaio é propositadamente um suposto conflito entre a etiquetagem de preços em produtos, notadamente em supermercados e outros estabelecimentos comerciais pelo moderno código de barras, e a etiquetagem de preços pelas notórias máquinas muito utilizadas durante o longo surto inflacionário que vivenciamos até 1994.
Na verdade, entretanto, esse conflito inexiste: a tecnologia, com efeito, pode e deve ser harmonizada com o suposto “antigo método”, em prol de um dos direitos mais importantes e básicos do consumidor que é o Direito de ser informado, sobretudo na oferta de produtos e serviços.
2. A Harmonização de Interesses
Ao cuidar da chamada “política nacional de relações de consumo, o art. 4º do Código de Defesa do Consumidor Brasileiro elenca princípios epistemológicos que, em absoluto, são conflitantes, nem guardam qualquer grau de hierarquia entre si, a saber: a) a vulnerabilidade do consumidor; b) a garantia dos produtos e serviços com padrões de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho etc.
E, mais particularmente no seu inciso III, figura o princípio que recomenda a busca da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo, consistente na Compatibilização da Proteção do Consumidor com a Necessidade de Desenvolvimento Econômico e Tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na Boa Fé e Equilíbrio nas Relações entre Consumidores e Fornecedores.
Ou seja, a defesa e proteção do consumidor devem ser compatíveis com os inventos e com a evolução tecnológica.
E, nesse ponto, é inegável que o desenvolvimento da informática, que propiciou a leitura ótica de símbolos, tais como o chamado “código de barras”, é um exemplo de avanço, tanto em benefício da rapidez dos negócios, como dos consumidores, que pouparão maior tempo nas compras e passagem pelos caixas dos estabelecimentos comerciais.
Do lado dos fornecedores, resta também evidente que referida utilização do código de barras facilita a racionalização de estoques, sua reposição, rapidez nos negócios etc.
3. Direito Indisponível à Informação
Isto tudo não quer dizer, entretanto, que o mencionado código de barras seja a solução para os problemas de informação dos consumidores. Muito ao contrário: como se trata de uma linguagem cifrada, capaz de ser lida somente pelos dispositivos eletrônicos, a cujos programas somente têm acessos os próprios fornecedores dos produtos ofertados à venda, há de se encontrar um meio para que o direito indisponível à informação notadamente sobre preços seja respeitado.
Com efeito, dentre os chamados “direitos básicos do consumidor”, estabelecidos pela própria Resolução 39/248 da ONU e pelo art. 6º do nosso Código de Defesa do Consumidor, está exatamente o da obtenção de “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e Preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.
E ao cuidar da oferta de produtos e serviços, o art. 31 do mesmo código diz, claramente, que “a oferta e apresentação de produtos e serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidade, quantidade, composição, PREÇO, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentem à saúde e segurança dos consumidores”.
4. Sanções pelo descumprimento do dever de informar na oferta
Independentemente de qualquer ato administrativo das autoridades competentes, portanto, o descumprimento, pelos fornecedores, do dever de informar na oferta sobre as referidas características de produtos, pode acarretar-lhes:
4.1 Sanções Administrativas – porquanto, conforme disposto pelo art. 13, inciso I do Decreto nº 2.181/97 (“Regulamento do Código de Defesa do Consumidor”), é considerado prática infrativa, e punida consoante seus artigos 18 a 28, “ofertar produtos ou serviços sem as informações corretas, claras, precisas e ostensivas, em língua portuguesa, sobre suas características, qualidade, quantidade, composição, Preço, condições de pagamento, juros, encargos, garantia, prazos de validade e origem, entre outros Dados Relevantes”;
4.2 Sanções Penais – dando cobro ao preceituado pelo artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor já citado linhas atrás, dispõe seu art. 66 que é Crime de oferta enganosa por omissão “fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, Preço ou garantia de produtos ou serviços. Pena – Detenção de três meses a um ano e multa. Par. 2º – Se o crime é culposo: Pena – Detenção de um a seis meses ou multa”;
4.3 Sanções Civis – consistentes em indenizações aos consumidores, individual ou coletivamente considerados, conforme o prejuízo experimentado, além de dano moral, arbitrado pelo juízo competente.
5. Da Possibilidade de Conciliação Técnica e Administrativa
Lê-se pelos jornais que tem havido uma verdadeira “queda de braço” entre as autoridades no âmbito da defesa do consumidor, sobretudo no plano federal, de um lado, e as entidades representativas dos fornecedores, notadamente no ramo de supermercados, de outro.
Nada mais falso e equivocado, a menos que não haja boa fé a imbuir esse embate, sobretudo quando os segundos ameaçam os consumidores com repasse de custos ditos astronômicos aos preços finais das mercadorias, o que também poderá acarretar abuso do poder econômico, à luz da Lei nº 8.884/94. Se não, vejamos.
Conforme etiquetas colhidas por nós em produtos adquiridos em quatro países (Reino Unido, França, Espanha e Portugal), ao ensejo de viagem realizada em 1998, por exemplo, lêem-se nelas, clara e perfeitamente, os respectivos preços, em libras, francos, pesetas e escudos, respectivamente, harmonicamente postados ao lado ou abaixo do código de barras.
Ora, longe de se exigirem custosos investimentos em aparelhos de leitura ótica a serem colocados ao lado das gôndolas ou prateleiras dos supermercados ou outros estabelecimentos, portanto — aparelhos esses que talvez sejam, afinal, úteis, mas não em número exagerado como se vocifera —, por que não se encomendarem dos fornecedores das etiquetas a impressão, além do código de barras, também o preço em reais, de forma inteligível pelos consumidores?
Não se poderá dizer, por certo, que o ramo de supermercados, por exemplo, no Brasil, esteja atrasado com relação ao dos países mencionados.
6. Conclusões
Desta forma, longe de se estar diante de um impasse, o que se deveria fazer, isto sim, é assinalar-se um prazo para a implementação desse Sistema Misto — código de barras aliado ao preço explícito nas embalagens auto-colantes.
Por outro lado, haverá pequenos estabelecimentos comerciais que, em face do modesto estoque de produtos, ainda manterão o sistema de anotação à mão dos preços nos próprios corpos das mercadorias ofertadas, ou então etiquetas auto-colantes.
O que se exige, e isto é necessário que fique bem claro, é que, uma vez adotado o código de barras que, repita-se ainda uma vez, é uma linguagem cifrada, ininteligível ao consumidor, esse sistema venha a conviver com o preço explícito ao lado do mesmo código de barras.
Nem se poderá exigir, por exemplo, nem código de barras, nem etiquetagem, de produtos vendidos a granel, ou por certo volume a ser apurado em balanças à vista do consumidor, até por uma questão fática e de lógica elementar.
Nem mesmo isso será necessário nas feiras livres, em que as bancadas ofertam produtos por peso ou então por dúzia e outros critérios de comercialização.
Enquanto isso, ou seja, enquanto não se tem o sistema misto, haveria a manutenção de aparelhos de checagem para os consumidores, além dos preços explicitamente colocados ao pé de cada estoque de produtos nas prateleiras ou gôndolas.
7. Manifestações Jurisprudenciais
Passados três anos da redação deste ensaio, no âmbito do Ministério Público do Estado de São Paulo, e encaminhado, à época ao Ministério da Justiça, à guisa de subsídio, constatamos, com satisfação, que decisões a respeito manifestadas pelo Superior Tribunal de Justiça, sufragaram esse entendimento, no sentido de que da etiquetagem de produtos expostos ä venda, notadamente em supermercados, além do código de barras, conste o preço de cada um deles.
Nesse sentido, aliás, o acórdão proferido no MS 6061-DF (Mandado de Segurança 1998/0077964-7), em 7.4.2000, tendo relator o Ministro Paulo Gallotti, a saber:
Mandado de Segurança. Direito do Consumidor. Preço/produtos. Supermercados. Exigência.
“Para atender o que estabelece o Código do Consumidor, além do código de barras e do preço nas prateleiras, devem os supermercados colocar o preço em cada produto” (MS nº 6010/DF, Relator o Ministro Garcia Vieira, DJU de 6.12.99), Precedentes. Segurança denegada. Medida liminar cassada.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, denegar a segurança e cassar a liminar, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Garcia Vieira, Francisco Peçanha Martins, Nilton Luiz Pereira e Eliana Calmon votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão, Franciulli Netto e José Delgado.
Igualmente decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no MS 6010-DF (Mandado de Segurança 1998/0076235-3), tendo como relator o Ministro Garcia Vieira (julgamento de 13.10.99, DJU de 6.12.99, pg. 62), por unanimidade que:
Direito do Consumidor. Preço. Produtos.Supermercados. Exigência.Código de Defesa do Consumidor.
Um dos princípios básicos em que se assenta a ordem econômica é a defesa do consumidor. A Lei nº 8.078/90, em seu artigo 6º, inciso III, relaciona entre os direitos básicos do consumidor: “A informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como, sobre os riscos que apresentam”. Os donos de supermercados devem fornecer ao Consumidor informações adequadas, claras, corretas, precisas e ostensivas sobre os preços de seus produtos à venda.
O fato de já existir, em cada produto, o código de barras não é suficiente para assegurar a todos os consumidores estas informações. Para atender realmente o que estabelece o Código do Consumidor, além do Código de barras e do preço nas prateleiras, devem os supermercados colocar o preço em cada produto. Segurança denegada.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Exmos. Srs. Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, denegar a segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Votaram com o Exmo. Sr. Ministro relator os Exmos. Srs. Ministros Hélio Mosimann, Demócrito Reinaldo, Humberto Gomes de Barros, Milton Luiz Pereira e José Delgado (voto-vista). Não participaram do julgamento o Exmos. Srs. Ministros Eliana Calmon, Paulo Gallotti e Francisco Fancão.
Ainda nesse sentido decidiu o acórdão proferido em sede de Mandado de Segurança (nº 5986-DF – 1998/0072799-0), por unanimidade, em 13.10.99 (DJU de 29.11.99), tendo como relator o Ministro Garcia Vieira.
Veja-se igualmente o que se decidiu no MS 5943-DF (Mandado de Segurança 1998/0063806-7), tendo como relatora a Ministra Nancy Andrighi, em julgamento de 29.2.2000 (DJU de 27.3.200, pág. 59):
Processo Civil. Constitucional. Direito Do Consumidor. Mandado De Segurança. Código De Defesa Do Consumidor. Art. 6º, Inciso Iii, E Art. 31. Decreto Nº 90.595/84. Portaria Super 02/96 Da Extinta Sunab. Sistema De Código De Barras Para Indicar Os Preços Das Mercadorias. Supermercados. Processo Administrativo Nº 08012.001556/98-18. Adoção Em Caráter Alternativo: De Afixação Direta, Nos Bens Expostos À Venda, Mediante Etiquetas Ou Similares, Do Respectivo Preço À Vista; Ou, Na Hipótese De Existência De Código De Barras (Dec. 90.595/84), Proceder À Informação Dos Preços Das Mercadorias Em Lista Aposta Em Local Visível Ao Consumidor. Ausência De Direito Líquido E Certo. Defesa Da Ordem Econômica. Direito Do Consumidor À Informação Adequada E Clara. Segurança Denegada.
I – É necessária a colocação de etiquetas em todos os produtos, mesmo se adotado mecanismo de código de barras com os esclarecimentos nas gôndolas correspondentes.
II – Por ser assegurado ao consumidor o direito de informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, não há que se falar em “intervenção abusiva no domínio econômico, com desrespeito aos arts. 1º, IV, 170 caput e inciso II e 174, caput, todos da C.F.-88, porque incensurável o despacho proferido pelo Excelentíssimo Ministro de Estado da Justiça, publicado no DO 1, de 14-08-98.
III – O poder hierárquico exercido pelo Ministro de Estado da Justiça teve por objetivo coordenar as atividades administrativas, no âmbito interno, e, assim o fez, na modalidade “revisão”, bem como no exercício de poder de polícia, limitando direitos individuais em benefício da coletividade.
IV – É inerente à natureza normativa do despacho a repercussão em casos análogos, sendo mero sofisma a conclusão de seu caráter erga omnes, porque o ato administrativo é ordinatório, sem invasão de competência legislativa da União. Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, denegar a segurança e cassar a liminar, nos termos do voto da Sra. Ministra-Relatora. Votaram com a Sra. Ministra-Relatora os Srs. Ministros Garcia Vieira, Francisco Peçanha Martins, Milton Luiz Pereira, José Delgado, Eliana Calmon, Paulo Gallotti e Franciulli Netto. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão.
Anotamos, por fim, que esse entendimento, à unanimidade, foi igualmente a que chegou o Superior Tribunal de Justiça, pela sua Primeira Seção, no julgamento do Mandado de Segurança 5982-DF (1998/0072479-6), tendo como relator o Ministro Paulo Gallotti, em julgamento de 22.11.2000, em discussão sobre litispendência.
* O artigo faz parte do arquivo pessoal do autor e do Cenacon – Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça do Consumidor do Ministério Público do Estado de São Paulo
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