Atos de bravura: Justiça do RJ devolve gratificação a bombeiros.
3 de outubro de 2000, 0h00
Direitos individuais do servidor não podem ser suprimidos por decretos de caráter geral. Com esse entendimento, o Órgão Especial do TJ fluminense mandou que o governo do Estado do Rio restabelecesse a gratificação por atos de bravura, suspensa em maio deste ano.
A premiação foi instituída em 1995, destinada aos policiais civis e militares e aos bombeiros. Provocou polêmica à época e chegou a ser apontada como um incentivo à violência. Esse foi um dos argumentos usado em maio para suspender a gratificação.
No caso dos bombeiros militares, porém, o relator Miguel Pachá repeliu a tese, uma vez que a missão desses soldados é a de proteger vidas e bens, e não a prática de qualquer ato violento.
O Mandado de Segurança foi impetrado por um grupo de bombeiros contra o governador do Estado, o secretário da Administração e contra o comandante-geral do Corpo de Bombeiros.
Os desembargadores excluíram do pólo passivo o secretário e o comandante por falta de competência das autoridades para corrigir a ilegalidade apontada.
Sob a Presidência do desembargador Humberto Manes, o julgamento teve os votos vencidos dos juízes Marcus Faver e Raul Quental.
Leia a íntegra do Acórdão
“Órgão Especial
Mandado de Segurança nº 402/2000
Impetrantes: Gilberto Carlos Holtz e Outros
Impetrado (1): Exmo. Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro
Impetrado (2): Exmo. Sr. Secretario de Estado de Administração e Reestruturação do Estado do Rio de Janeiro
Impetrado (3): Ilmo. Sr. Comandante Geral do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro – CBMERJ
Relator: Desembargador Miguel Pachá
Ementa: Mandado de Segurança – Incabível contra autoridade que não disponha de competência para corrigir a ilegalidade apontada – Somente pode figurar no polo passivo a autoridade que detém o poder de decisão e possua competência para praticar atos administrativos decisórios, não aquela que apenas os executa – Extinção do processo em relação ao segundo e terceiro Impetrados – Direito adquirido – Vantagem funcional reconhecida pela Administração, em ato formal perfeito e emanado de autoridade competente – Benefício concedido a integrantes do Corpo de Bombeiros, individualmente, por mérito especial de bravura – Gratificação “pro labore facto” e não “pro labore faciendo” – A cessação do pagamento há de obedecer, também, procedimento individual, em que a motivação deve dizer respeito aos mesmos fatos que geraram o benefício – Impossibilidade de revogação da gratificação com cessação de seu pagamento, através de Decreto de caráter geral – Interpretação do artigo 4º, do Decreto n.º 21.753/95, que concedeu o benefício – Concessão da ordem.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos do Mandado de Segurança n.º 402/2000, em que são Impetrantes Gilberto Carlos Holtz e Outros e Impetrados o Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro, o Exmo. Sr. Secretario de Estado de Administração e Reestruturação do Estado do Rio de Janeiro e o Ilmo. Sr. Comandante Geral do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro – CBMERJ.
Acordam, por unanimidade de votos os Desembargadores que compõem o Egrégio Órgão Especial deste Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, integrado neste o relatório de fls. 91/93, em julgar extinto o processo, sem apreciação do mérito, relativamente ao segundo e terceiro Impetrados e, por maioria, conceder a ordem, vencidos os Desembargadores, Marcus Faver e Raul Quental, que a denegaram.
Rio de Janeiro, 11 de setembro de 2000.
Desembargador Humberto Manes
Presidente
Desembargador Miguel Pachá
Relator
Desembargador Marcus Faver
Vencido
Desembargador Raul Quental
Vencido
VOTO
Inicialmente é de se acolher a preliminar de ilegitimidade passiva, argüida pelos segundo e terceiro Impetrados, respectivamente, o Sr. Secretário de Estado de Administração e Reestruturação do Estado e o Comandante Geral do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro, por não haverem praticado o ato impugnado, não podendo sequer impedi-lo ou revogá-lo.
A segurança, como temos entendido, é incabível contra autoridade que não disponha de competência para corrigir a ilegalidade apontada.
Somente deve figurar no polo passivo a autoridade que detém o poder de decisão e possui competência para praticar atos administrativos decisórios, estes suscetíveis de impugnação caso sejam abusivos ou ilegais, ferindo direito líquido e certo.
Impossível, por conseguinte, como ensina Hely Lopes Meireles a impetração contra a autoridade que apenas executa os mencionados atos impugnados.
Por tais fundamentos, na forma do artigo 267, VI, do Código de Processo Civil, extingo o processo, sem apreciação do mérito, relativamente ao segundo e terceiro Impetrados.
Os Impetrantes, todos militares do Corpo de Bombeiros, vinham percebendo como parte integrante de seus vencimentos a premiação em pecúnia, por mérito especial, que lhes foi deferida, individualmente, por força do Decreto n.º 21.753, de 8 de novembro de 1995.
Ocorre, todavia, que o Exmo. Sr. Governador do Estado editou o Decreto n.º 26.249, de 2 de maio de 2000, revogando, expressamente o Decreto suso mencionado, interrompendo para todos os beneficiários do pagamento da referida premiação.
Não se discute acerca da possibilidade que tem o administrador de revogar ou anular atos anteriores, desde que assim o exija o interesse público, o que deve ser perquerido, em cada caso, são os efeitos da nova legislação, relativamente àqueles que foram beneficiados pela disposição anterior, igualmente editada pelo Chefe do Poder Executivo.
Sustentam os Impetrantes que a premiação, decorria do Decreto 21.753/95, e que sua revogação implica na desconstituição de situações jurídicas já efetivadas em sua vigência.
Asseveram, também, que o ato administrativo, que lhes concedeu o benefício, foi editado de acordo com a Lei vigente, sendo, portanto perfeito, consumado e não podendo ser atingido pelo novo Decreto, sob pena de afrontar-se o disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
A autoridade impetrada, ao contrário, afirma que a premiação auferida, por sua própria natureza, tem caráter provisório e precário, não se incorporando aos vencimentos dos Impetrantes e, ainda, que a revogação da premiação por mérito obedeceu aos critérios legais, inexistindo qualquer direito líquido e certo à manutenção do benefício.
Assim posta a questão, data vênia, das opiniões em contrário, inclusive das Procuradorias do Estado e da Justiça, impõem-se a concessão do writ, para restabelecer aos Impetrantes o pagamento dos valores devidos, pela prática de atos de bravura.
O Decreto n.º 21.753/95, que instituiu a premiação, denominada pelos Requerentes “De Mérito Especial de Bravura” e que o segundo Impetrado, fls. 67, entende que se constituía em “incentivo à violência”, estabelecia:
Art. 1º – “Fica instituída a premiação em pecúnia, por Mérito Especial, tendo por destinatário o Policial Civil, Policial Militar e Bombeiro Militar.”
Já o Parágrafo Único, determinava:
“O prêmio será concedido, em caráter individual, por chefe do Poder Executivo – após o devido reconhecimento e declaração oficial, realizados através dos procedimentos regulamentares, ordenados pelo Secretário de Estado de Segurança Pública.”
Vê-se, assim, que a premiação só poderia ser concedida, individualmente, através de procedimento regulamentar, onde se analisava a conduta do beneficiário e seu procedimento, o que já demonstra ser impossível que se constituísse em incentivo à violência, argumento que é repelido também, pela circunstância de que os bombeiros, também beneficiários em potencial, têm como missão precípua a salvaguarda de vidas e bens, e não de prática de qualquer ato violento.
A gratificação concedida, à todas as luzes, decorria de um “pro labore facto”, pois derivava da prática de um determinado ato, de bravura, que, por não se repetir diuturnamente, gerava para aquele que assim procedesse uma gratificação, um prêmio por ato determinado.
Celso Ribeiro Bastos, citado na impetração, em sua obra “Curso de Direito Constitucional”, Ed. Saraiva, 13º edição, página 200, sustenta que em certos casos a gratificação concedida se insere dentre aquelas de caráter pessoal, incorporável ao patrimônio do agraciado e regulada por ato normativo, como se vê, a seguir:
“O Estado pode suprimir uma vantagem pecuniária, ainda não incorporada, porque tal proceder é uma manifestação da prerrogativa ampla de dar nova substância aos direitos e deveres que ela concede ou impõe aos seus servidores, em razão das mutações das próprias conveniências e necessidades públicas.
Acontece, entretanto que em outras hipóteses o Estado concede certos direitos que já não nutrem qualquer relação com um fato atual. Por exemplo: uma vantagem pecuniária para quem tenha praticado ato de bravura em guerra, ou mesmo uma vantagem pecuniária em decorrência de alguém ter cumprido algo no passado, mas a que se não mais encontra sujeito no presente.
Fica patente que nesses casos já não comparecem aquelas razões de conveniência e oportunidade – de molde a justificar a permanente mutabilidade das situações normativas. Adversamente, o que existe é o implícito propósito da Lei em ser permanente no tempo, ao menos para aqueles por ela já colhidos.
Em outras palavras, não se nega o direito de o Estado revogar dita Lei. O que se veda é a possibilidade de ver-se o indivíduo desprotegido da Lei que o beneficiou. Noutro falar, nesses casos a Lei vigente se protrai no tempo para continuar disciplinando certas situações jurídicas mesmo após a sua revogação.
Dos exemplos dados se extrai que as vantagens criadas não têm sentido lógico senão a admitir-se que o seu beneficiário a elas tenha direito adquirido. O que adiantaria o Estado dar uma pensão ou gratificação por ato de bravura se a ele lhe fosse dado revogar tal ato no mês seguinte? É óbvio que isto seria uma farsa. O Estado estaria gratuita e injustificadamente retirando o que havia definitivamente concedido, visto que tal concessão independe de qualquer redefinição dos termos do relacionamento indivíduo/Estado. É dizer, o gesto de bravura tornou-se apto a ser causa determinante de uma vantagem que não pode ser suprimida, pois que o próprio fato que a gerou também é insuscetível de ser eliminado.
Em síntese, o direito adquirido no campo publicístico surge toda vez que o legislador isola um fato (gesto de bravura, tempo de serviço, etc.) e o considera, de per si, apto para ser a fonte geradora de um direito. Nestas hipóteses, o direito não pode ser senão da natureza dos adquiridos. Seria um contra-senso lógico inadmitir-se tal postulação.”
Sustenta o Impetrado que a gratificação em pecúnia por Mérito Especial tem caráter provisório e precário, alicerçando tal assertiva no que dispunha o próprio artigo 4º, do Decreto n.º 21.753/95, verbis:
“A premiação de que trata o presente decreto poderá ser interrompida, quando se venha apurar conduta inadequada de parte do servidor ou, ainda, quando resultado de ato de Chefe do Poder Executivo, revestido de motivação suficiente.”
A cessação do pagamento, conforme acentuado nas informações, fls. 75, ocorreu por força da verificação da segunda hipótese, pela edição de ato motivado, por parte do Chefe do Poder Executivo.
Justifica-se a legalidade do ato, afirmando-se que a ocorrência de prévio procedimento de processo administrativo, só seria exigível quando fosse caso de prática de “conduta inadequada”, quando se deveria dar ampla defesa, em conformidade com o princípio constitucional, e não na hipótese do exercício da prerrogativa do Chefe do Poder Executivo de interromper o pagamento, por conveniência administrativa.
Assim não entendo, data vênia, e isto porque os Impetrantes obtiveram a gratificação, em processo individual, onde lhes foi reconhecido o direito a gratificação, decorrente de atos de bravura, ou de méritos especiais e, assim, a cassação do benefício, a cessação dos pagamentos, só poderia ocorrer através de um procedimento individual, onde a motivação para tal só poderia se referir aos mesmos fatos que geraram o benefício.
Um Decreto de caráter geral, fundado em motivação de caráter econômico, não pode suprimir direitos concedidos, individualmente, em decorrência do preenchimento de pressupostos legais, à época exigíveis.
O juízo de valor, cassando a gratificação por questão econômica, não pode ser admitido, eis que isto não se enquadra na hipótese final do artigo 4º, do Decreto n.º 21.753.
A interrupção dos pagamentos por despacho motivado suficientemente, tem que ser individual e relativamente a cada servidor, o que inocorreu na espécie.
Por tais fundamentos, concedo a segurança, para manter o pagamento da premiação em pecúnia aos Impetrantes.
Desembargador Miguel Pachá
Relator”
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