Continuação: A responsabilidade pela transmissão do HIV em união estáv
21 de setembro de 1999, 0h00
IV – A necessária diversidade da aplicação da teoria objetiva e subjetiva, de acordo com a situação dos conviventes. a) Na união estável e aos casados; b) No concubinato impuro
De outro lado, é necessário distinguirmos a situação dos iguais e a situação dos desiguais. Explica-se. Na união estável e no casamento existe o dever de fidelidade e honorabilidade, bem como respeito mútuo, etc., enquanto o mesmo já não ocorre quanto aos namoros ou nas relações consideradas como concubinato impuro, tais como a do separado de fato ou judicialmente. Importante frisar, que no nosso entender, que entende-se concubinato impuro aquela união entre pessoas, na qual pelo menos uma delas está impedida para um novo
matrimônio, uma vez que está separado de fato ou judicialmente, ou ainda, quando existe grau de parentesco. Com efeito, necessita o separado judicialmente da extinção do vínculo matrimonial para constituir um novo matrimônio, e tal ocorre com o morte de um dos cônjuges ou com o divórcio. Portanto, não se pode reconhecer como união estável, nos termos do parágrafo terceiro do artigo 226 da Constituição Federal aquele que se encontra impedido para o casamento, logo, não podendo ser considerado como entidade familiar, mas tão-só, regendo-se a relação jurídica entre ambos pelo direito obrigacional, a fim de dirimir o enriquecimento ilícito.
Portanto, somente nestes últimos casos é que se poderia em cogitar
na responsabilidade subjetiva, onde buscar-se-ia como fundamento da
responsabilidade o dolo, ou a culpa em sentido strito sensu, à evidência, possibilitar-se-ia a busca da culpa concorrente, como aquele que tem comportamento promíscuo, constantes namoros, e até àquele que busca relações com garotas de programa.
Ora, não se pode falar em dever de fidelidade e honorabilidade para aqueles que vivem apenas numa situação de relação amorosa, como um efêmero namoro, ou ainda, àqueles que mantém relações amorosas com uma variedade de pessoas em diminuto lapso temporal. É claro que, é necessário a averiguação de cada caso concreto pelo magistrado, a fim de buscar a responsabilização de acordo com os costumes de determinada coletividade. Mas, enfim, este mesmo dever jurídico necessita de um impulso e avaliação de modo diverso para aqueles que já convivem numa relação de união estável ou até mesmo quando casados, onde o fundamento da responsabilidade civil deveria ser a da teoria do risco da atividade criada. Com efeito, é verdade que aquele que vive em constantes namoros com diversos parceiros também está praticando uma atividade de risco de dano em potencial, para si e para outrem, ainda que se utilizasse de preservativo. Todavia, este não se encontra numa relação de união estável, onde inexiste os deveres de fidelidade e honorabilidade, e, portanto, o parceiro que se dispõem a praticar relação com o mesmo, tem conhecimento da recente união, bem como dos riscos de transmissão de moléstia, face à ampla divulgação da doença fatal nos meios de comunicação de massa. Daí porque é preciso considerar, nestes casos, a teoria subjetiva para analisar também a culpa concorrente, sendo esta um fator de mitigação do quantum indenizatório por dano moral, como aliás, fundamentou o v. aresto aqui tratado.
Mas, cousa diversa deverá ocorrer quando há união estável ou até união matrimonial, posto que o convivente tem, em seu âmago, a expectativa de união única e duradoura, entregando-se à confiança mútua, na qual retirar tal sentimento de um dos conviventes, seria o mesmo que lhe retirar os alicerces de apoio da construção amorosa.
Razão pela qual, é que aos casados e aos conviventes em união estável existe o caráter de vulnerabilidade entre si, onde o ato lesivo que é oriundo de uma relação com terceiro, reflete necessariamente, em danos com relação à integridade moral, e, em outras, face ao dano em potencial, no risco da violação à integridade física do seu convivente. Portanto, o fundamento da responsabilidade civil para conviventes em união estável ou ainda para os casados, deverá ser a da teoria da responsabilidade objetiva, fundada no risco da atividade criada.
Convêm acrescentar, que também é necessário verificar se o convivente que sofreu o contágio da doença desconhecia que o outro era separado de fato ou judicialmente, e estando de boa-fé, o fundamento da responsabilidade do outro (que traiu) deve ser a objetiva. É aquela situação na qual o convivente crê estar vivenciando uma união estável, quando em verdade, ela é putativa. Ou seja, não importa que o lesante tivesse desconhecimento que o parceiro temporário era portador de moléstia ou de que desconhecia ter sido contaminado, bastou a relação sexual com terceiro para a configuração do dever reparatório. A situação dessa relação já está à margem da lei (concubinato impuro), além disso este omitia sua situação de impedido para o casamento, e portanto, a imposição legal do dever de reparar o dano deve atingir de forma mais intensa.
Porém, se o convivente tinha conhecimento da situação, qual seja, a de que se encontrava em concubinato impuro, posto que não fora dissolvido o vínculo matrimonial, tal fato não exime do dever reparatório em caso de contaminação, porém, entendemos que a responsabilidade há que ser a subjetiva, devendo demonstrar a culpa latu sensu do agente, onde o convivente desleal tinha conhecimento da doença.
Aliás, poderá também, nesta situação, enquadrá-lo nas penalidades da seara penal, nos termos do artigo 130 do Código Penal, pois, se o sujeito, portador de AIDS e consciente da natureza mortal da moléstia, realiza ato de libidinagem com a vítima, com intenção de transmitir o mal e lhe causar a morte, vindo ela a falecer, responde por homicídio doloso consumado.
Se bem que, o conhecimento mortal da doença é de tão ampla difusão coletiva, que tal caráter subjetivo para nós é desnecessário ante o conhecimento geral da moléstia, face a sua divulgação pelos meios de comunicação.
Da avaliação do quantum moral para cada situação entre conviventes – Critérios norteadores
Adotando-se os critérios da doutrina, verificamos que a fixação do quantum competirá ao prudente arbítrio do magistrado de acordo com o estabelecido em lei, e nos casos de dano moral não contemplado legalmente será fixada por arbitramento. É da competência jurisdicional o estabelecimento do modo como o lesante deve reparar o dano moral, baseado em critérios subjetivos (posição social ou política do ofendido, intensidade do ânimo de ofender: culpa ou dolo) ou objetivos (situação econômica do ofensor, risco criado, gravidade e repercussão da ofensa). Na avaliação do dano moral o órgão judicante deverá estabelecer uma reparação eqüitativa, baseada na culpa do agente, na extensão do prejuízo causado e na capacidade econômica do responsável.
Assim, poder-se-á considerar como posição social, para efeitos de quantificação do dano moral, a situação dos conviventes, se estão em união estável ou até casados, ou ainda, em situação de concubinato impuro quando ambos têm conhecimento da situação em que se encontram. Estes são elementos que justificam a maior ou menor apreciação do valor pecuniário para ser um lenitivo da dor. Assim, por exemplo, se demonstrado perante o Judiciário que o convivente – vítima vivia em união estável de modo exemplar de comportamento, na qual, através de testemunhas, v. g., demonstrava-se a confiança e dedicação ao seu convivente, estes são critérios a serem observados para avaliação do dano moral causado pelo convivente transgressor, como forma de maior quantificação do valor pecuniário a fim de ressarcir os prejuízos morais. De outro lado, a intensidade do ânimo de ofender, culpa ou dolo, deverá ser considerada não como um pressuposto da responsabilidade civil para os conviventes em união estável ou casados, mas como um fator de quantificação do dano moral, pois que ainda que não demonstrado o dolo do lesante no sentido de contaminar seu parceiro, a reparação será aplicada pela teoria do risco. À evidência, se conseguida a demonstração do dolo do agente, é certo que a valoração do quantum reparatório poderá exceder, face a tal agravante, porém, não é pressuposto quando ausente, para não ensejar o dever reparatório.
E, quanto aos aspectos objetivos, como a situação econômica do ofensor, a gravidade, a repercussão da ofensa e o risco criado são fatores que não impedem a adoção da teoria da responsabilidade objetiva, aliás, ao contrário, na medida em que, o risco criado pela atividade sexual que contaminou seu convivente ou cônjuge será sempre fator de valoração do quantum ressarcitório do prejuízo.
Daí porque, entendemos a necessidade da adoção da teoria da responsabilidade objetiva do risco, para o fim de tratar os que vivem em situação igual, de forma igualitária, e os que vivem em situação desigual, em desigualdade. Não seria justo, verbi gratia, exigir do lesado a demonstração do dolo do agente transmissor da doença, para o que vive em união estável, ou da mesma forma, para o que contaminou terceiro por uma única e primeira relação sexual. Até porque, quanto a esta última situação afigura-se, em tese, a configuração da culpa concorrente, enquanto que, na primeira hipótese, tem-se a criação de um fato potencialmente lesivo, mergulhada sob o prisma da confiabilidade mútua violada, e mais, ferindo-se deveres de honorabilidade e lealdade entre conviventes e/ou cônjuges, já que são reconhecidas pela Carta Magna, como entidades familiares, e em último, família.
VI – Das conclusões
O objetivo dos comentários ora trazidos com o presente artigo, busca preocupar-se com uma maior aplicabilidade da teoria do risco da atividade, porém, do risco criado pela atitude do ser humano, na qual, devem ser analisados sob diferentes enfoques, diante da situação compromissada em que vivem os companheiros ou até cônjuges. É claro que, se um dos conviventes é contaminado pelo vírus por erro escusável, invencível e de situação não condenada moralmente, como a transfusão de sangue, cirurgia, etc, tem-se que, nestes casos, a responsabilidade é subjetiva, dependendo da averiguação de culpa e dolo. Esta ainda é a “regra geral” do nosso ordenamento jurídico. O convivente contaminado pelo outro teria que provar que este sabia que fora contaminado no hospital, e mesmo assim praticou relação, ou seja, deverá demonstrar o dolo. Caso tal não ocorra, a única possível reparação é entre o terceiro, verbia gratia, o hospital, devendo este reparar ambos os cônjuges ou conviventes de união estável, posto que ambos foram os lesados. Ora, não é um só dos conviventes que foi lesado pelo contágio do vírus, o seu convivente, que, juridicamente, não tinha dever de zelo ou cuidado no ato sexual, face à honorabilidade e fidelidade existente com o outro, é, pois, o lesado indireto, diante do ato gerador do dano: a contaminação via hospital.
Daí porque neste caso, apresenta-se a responsabilidade objetiva da atividade hospitalar, calcada na teoria do risco da atividade, onde com muita propriedade o prof. Limongi França denomina de responsabilidade institucional, isto é, a configurável em face da suficiente relação de causa e efeito, entre a pessoa jurídica responsável e a efetividade dos prejuízos.
De outro lado, é preciso distinguir o joio do trigo. Nas relações sexuais que ocorrem por pessoas momentaneamente atraídas, em que não vivem em situação de união estável ou até casados não poderiam ser tratados como hiposuficientes, ou melhor, vulneráveis, na medida em que o dever jurídico de honorabilidade e fidelidade inexiste, haja vista a união temporária, recente e descompromissada entre ambos. Portanto, o ato sexual não deixaria de ser uma atividade de risco, porém, este risco está sendo assumido pelo praticante do coito, sabedores estes da ampla difusão da doença no seio da coletividade. O mesmo sentido deve ser entendido àqueles que vivem em concubinato impuro, pois estes estão em situação juridicamente diversa, pois as pessoas em união estável ou ainda casados, tem a necessidade da confiança com seu convivente, e estes estão vulneráveis, e o direito não poderia exigir uma conduta obrigatória de cautela a estes, de modo que o seu convivente ou cônjuge impusesse o uso de preservativo, em virtude do risco de transmissão da doença.
Ora, se vivem na forma de união estável ou se casados, é mister reconhecer que a fidelidade e honorabilidade entre ambos é presumida, e portanto, não haveria que se falar em necessidades de cautela, àqueles que vivem momentos íntimos somente entre si.
Razão pela qual, quando este dever é quebrado por um dos conviventes, e principalmente, quando desta quebra de fidelidade e honorabilidade gerem prejuízos, mormente, quando gerem danos à integridade física, é que deve-se verificar apenas a conduta e o nexo de causalidade como fundamentos da responsabilidade civil, e não mais o dolo ou culpa em sentido stricto sensu do agente causador do dano. Pois, diametralmente oposto, não existe dever de honorabilidade e fidelidade entre concubinos impuros, afinal, estes estão em verdade numa relação ilícita, haja vista a não dissolução do matrimônio de um ou ambos os conviventes. E é por tal razão que somente a responsabilidade subjetiva seria a aplicável, haja vista a concorrência, em tese, de culpa em sentido stricto sensu dos mesmos. Ora, aquele que vive em concubinato impuro não tem o dever jurídico de honorabilidade, pois que não é reconhecido como entidade familiar por força da Constituição Federal, sendo assim considerado somente àqueles que estariam desimpedidos para o matrimônio. Não se deve equipará-los nos mesmos privilégios àqueles que convivem em união estável ou casados, pois a vulnerabilidade existente a estes não se apresenta tão clara quanto àqueles. Daí porque a necessidade da adoção da teoria objetiva pelo risco criado àqueles que vivem em matrimônio ou em situação de união estável.
Ora, a teoria objetiva veio ao longo do tempo tomando espaço e sendo admitida, principalmente, diante da revolução industrial e tecnológica, onde os seres humanos colocavam-se em situações maiores de risco e a partir de então, começou-se a notar a insuficiência da teoria subjetiva. O mesmo ocorre com o nascimento da AIDS. Na década de 1.960 passou a ocorrer a liberação sexual e a liberdade de conduta, gerando verdadeiros grupos de incentivos, como os hippies, e principalmente, quando criou-se os anticoncepcionais, onde a liberação sexual cresceu progressivamente. A partir da década de 1980, com o surgimento da doença, que antes acreditava-se ser doença apenas de homossexuais e de usuários de drogas injetáveis, ocorreu uma necessária e nova revolução, porém desta vez, uma revolução do comportamento humano, onde passou a ser necessário uma maior contenção dos libidos, que, ao que parece, esta somente passou a ocorrer a partir do fim da década de 80 e início de 90.
Daí porque, nota-se a revolução do comportamento humano, no sentido de manter relações constantes com um(a) único(a) parceiro(a), diante dos riscos de transmissão frente à doença. Vê-se, assim, que esta revolução sexual é ainda necessária, pois passa por um processo de conscientização incipiente, mas, inegavelmente, percebe-se que existe uma nova conjuntura na sociedade, na qual o comportamento sexual, hoje, é uma atividade de risco. A importância do tema se dá, infelizmente, pelo caráter mortal da doença, e é claro, diante da facilidade de contágio, que pode ocorrer até de uma simples injeção ou transfusão de sangue, e por isto, é necessário maior tutela e atenção aos direitos envolvidos que na moléstia rodeiam. Mas, é principalmente nas relações sexuais, que envolvem sentimentos e confianças, à evidência, quando vive-se em união estável ou quando casado, é que a AIDS penetra no campo mais vulnerável do ser humano: o amor, onde o direito não pode fechar os olhos quando este é ameaçado e lesado pelas mazelas do abuso daquele que é amado(a).
VII – Bibliografia
Diniz, Maria Helena, Revista Literária de Direito, Ano II, número 09,
Janeiro/Fevereiro de 1.996.
França, Rubens Limongi. “Direitos da personalidade: coordenadas fundamentais”. Revista do Advogado, São Paulo, n. 38, dez. 1.992 e “Revista dos Tribunais”, n. 661/14
Gonçalves, Carlos Roberto. “Responsabilidade Civil”, Editora Saraiva, 1.995.
Jesus. Damásio Evangelista de. “Direito Penal”, 2o Volume, Parte Especial, Editora Saraiva, 1.995 e “Código Penal Anotado”, 5a Edição, Editora Saraiva, 1.995.
Matos, Cecília. “O ônus da Prova no Código de Defesa do Consumidor”, inédito, pág. 195 e 196, dissertação de mestrado, USP
Pereira, Caio Mário da Silva. “Instituições de Direito Civil”, Vol. I.
Rodrigues, Marcelo Abelha, “Dano à Imagem da Pessoa Jurídica”, Monografia apresentada em 1.994, PUC-SP.
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