CPMF - A prorrogação do nada
16 de junho de 1999, 0h00
Como sociedade politicamente organizada, instituição necessária ao convívio e desenvolvimento humano, o Estado recebe atribuições de que se deve desincumbir sempre visando ao bem-estar social, em última análise, aos indivíduos que o criaram. Estes, por conseguinte, devem contribuir para os encargos da coletividade por força da solidariedade social que preside o relacionamento interpessoal.
O tributo é o instituto engendrado pelo Homem, que permite, num clima de liberdade, racionalizar juridicamente o esforço de cooperação individual em prol da comunidade: ao mesmo tempo em que representa uma contribuição, constitui uma obrigação, permitindo ao seu destinatário exigi-lo daqueles que, por uma razão ou outra, deixem de prestá-lo ou o façam em desconformidade com a norma vigente.
Tal é a concepção ético-jurídica do tributo, baseada no interesse social, resultante da possibilidade que tem o indivíduo, componente do grupo, de concorrer para o sustento deste; possibilidade que, se efetiva, transforma-se em dever, pois, do contrário, estar-se-ia determinando ou, pelo menos, ensejando o locupletamento de uns à custa de outros e a própria inviabilização da forma social.
Ora, essa possibilidade-dever de cada um contribuir para o custeio do Estado determinará, de conseqüência, a medida do sacrifício individual que este poderá legitimamente reivindicar, sob pena de pôr em risco a continuidade do influxo dos meios de que necessita, pela destruição da célula produtora desses recursos, e, também aqui, frustrar a sua manutenção.
Lamentavelmente isto parece ser tudo o que não se vê na atualidade da tributação brasileira, quando não se percebe o que há de novo, pelo menos nessa matéria, onde o velho recurso fácil à bolsa do contribuinte é tão constante como dantes…
A Cidadania não se pode convencer da justiça da tributação a que se vê submetida porque não encontra racionalidade no sistema tributário nacional, que não tem raízes em estudos estatísticos sérios quanto à sua base econômica, nem teve os seus estabelecimento e implantação precedidos de uma razoável distribuição da competência político-administrativa entre os entes da Federação.
Registra-se grande imoralidade fiscal no País. O Estado, a quem cabe o exemplar cumprimento da Carta Magna e das Leis, comete um sem-número de inconstitucionalidades e ilegalidades. O assunto é conexo aos direitos humanos, pois que as ilegitimidades apontadas, patrocinadas pelo Legislador e pela Administração (algumas recebendo até o epíteto cínico de inconstitucionalidades úteis- é de se indagar: úteis a quê?!), afetam o nível de vida da população, especialmente através da deletéria regressividade da carga tributária, que se vem agravando exatamente na proporção da concentração da tributação nos chamados impostos indiretos (contra a letra do # 1º do artigo 145 da Constituição, que preconiza a personalização dos impostos).
A moralidade fiscal começa a ser abordada por alguns poucos autores nacionais, tais como Regina Helena Costa (Moralidade Administrativa e Tributação, in Informativo dos Juízes Federais, São Paulo, 1997) e Ricardo Lobo Torres (Moralidade Fiscal, in Estudos em Homenagem ao Professor Caio Tácito, coord. Carlos Alberto Direito, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1998).
As contribuições (inclusive a CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, sucessora do falecido IPMF – Imposto Provisório Sobre Movimentação Financeira, uma vez dito cogitado imposto único) são o terreno prioritariamente eleito para o exercício da insaciável voracidade fiscal e da pré-falada imoralidade fiscal do Estado. Dada a falta de sistematização do tema, os Tribunais pátrios, data venia, ao influxo de um excessivo e já a esta altura rançoso positivismo, não têm avançado, em sede tributária, na interpretação de um texto constitucional casuístico e não raro incoerente.
No dia 19/3/99, o Diário Oficial da União publicou a Emenda Constitucional nº 21/99, de 18 de março de 1999, cujo artigo 1°, incluiu o artigo 75, no Ato da Disposições Constitucionais Transitórias, outorgando competência à União Federal, no sentido de prorrogar a cobrança da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, instituída originalmente por competência do artigo 74 do ADCT e criada pela Lei nº 9.311, de 24 de outubro de 1996, modificada pela Lei nº 9.539, de 12 de dezembro de 1997.
Ocorre que à época da promulgação da Emenda Constitucional 21/99, as Leis 9.311/96 e 9.539/97, já tinham perdido a sua eficácia, ou seja, não estavam mais em vigência. A Lei 9.311/96, esteve em vigor desde 23.01.97 até 23.02.98 e a Lei 9.539/97, vigeu de 23/1/97 até 23/1/99, quando a cobrança da CPMF foi suspensa.
Em razão disso, totalmente incabível, inconstitucional, inaceitável e ilegal a prorrogação das mesmas na forma determinada pela Emenda Constitucional nº 21/99.
No intuito de aclarar o assunto, julgamos necessário dizer, estribados nas lições de Paulo de Barros Carvalho (Fundamentos Jurídicos da Incidência Tributária, Tese de Cátedra, SP, 1996, inédita, pg. 67), que estar em vigor é ter força para regular os comportamentos intersubjetivos, sobre os quais a norma jurídica incide. Vigência, portanto, é uma propriedade da regra jurídica que está apta a propagar efeitos tão logo aconteçam no mundo em que vivemos os fatos nela abstratamente referidos.
Eficácia jurídica, de seu turno, é o processo mediante o qual, ocorrendo o fato descrito no antecedente da norma jurídica desencadeiam-se os efeitos prescritos em seu conseqüente. É o fenômeno que acontece com as normas vigentes, sempre e quando os fatos jurídicos se instalam.
Toda norma jurídica (ou regra jurídica) é composta de dois elementos: um antecedente (ou hipótese) e um conseqüente (ou mandamento). O antecedente é uma mera descrição de um fato. Já o conseqüente prevê a instauração de uma relação jurídica, sempre que ocorrer o fato apontado no antecedente. O conseqüente traça o dever jurídico cujo conteúdo é sempre um dar, um fazer, um não-fazer ou um suportar.
Na norma jurídica (inclusive na norma jurídica tributária) a, pois, a imputação de um certo conseqüente a um dado antecedente. Deste modo, o direito não passa da previsão de conseqüentes, que se desencadeiam no mesmo instante em que ocorrer, no mundo social o antecedente.
Do que acima foi exposto, chegamos uma inarredável e cristalina conclusão:
A) AS LEIS N°S 9.311/96 E 9.539/97, TIVERAM SUA EFICÁCIA PLENAMENTE EXAURIDA EM DATA DE 23 DE FEVEREIRO DE 1998 E 23 DE JANEIRO DE 1999, RESPECTIVAMENTE;
B) EM RAZÃO DISSO, TOTALMENTE INCABÍVEL, INCONSTITUCIONAL, INACEITÁVEL E ILEGAL A PRORROGAÇÃO DAS MESMAS NA FORMA DETERMINADA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL N° 21/99;
C) A EMENDA CONSTITUCIONAL N° 21/99 PRORROGOU O NADA, OU SEJA, PRORROGOU AQUILO QUE NÃO EXISTIA MAIS NO MUNDO JURÍDICO, DAÍ CHEGARMOS À CONCLUSÃO DE QUE A COBRANÇA DA CPMF ATRAVÉS DA EDIÇÃO DA EC N° 21/99 É TOTALMENTE INCONSTITUCIONAL E DEVE SER REPUDIADA VEEMENTEMENTE PELO PODER JUDICIÁRIO.
Sintetizando: A Emenda Constitucional nº 21/99, prorrogou o nada, ou seja, prorrogou o que já não mais existia no mundo jurídico, daí chegarmos à conclusão inarredável de que a cobrança da CPMF, através da edição da Emenda Constitucional 21/99, que começará a ser cobrada no dia 17 de junho próximo é cabalmente inconstitucional e deve ser repudiada pelo Poder Judiciário, aliás fato que já vem ocorrendo conforme liminares concedidas em Mandados de Segurança pelos Juízes Federais da 1ª Vara Federal de São Paulo, Dra. Alda Maria Basto Caminha Ansaldi, da 17ª Vara Federal de São Paulo, Dra. Cláudia Arruga Novoa y Novoa e pela Juíza Federal da 23ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Dra. Maria do Carmo Freitas Ribeiro.
A Justiça como sempre dará a última palavra sobre mais essa inconstitucionalidade que está ameaçando o contribuinte brasileiro.
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