A crise do Inquérito Policial

A crise do Inquérito Policial

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25 de agosto de 1999, 0h00

Com muito atraso, começa discutir-se no âmbito dos Estados, a regulamentação do controle externo da atividade policial, previsto pelo art. 129, VII da Constituição Federal. É um primeiro passo para debater um grave problema do processo penal brasileiro: a crise do inquérito policial e a necessidade do controle externo da atividade policial por parte do MP. O problema é antigo e a necessidade de uma modificação há muito vem sendo apontada pelos juristas. A investigação/instrução preliminar (no Brasil – inquérito policial) é fundamental para o processo penal, pois não se deve julgar de imediato. Primeiramente, deve-se preparar, investigar e reunir elementos que justifiquem o processo ou o não-processo.

O Brasil é um dos poucos países que ainda mantém o sistema de investigação preliminar policial, sem o controle pelo MP. Este modelo está completamente falido. É unânime o rechaço. Os juízes apontam para a demora e a pouca confiabilidade do material produzido pela polícia, não servindo como elemento de prova na fase processual. Os promotores reclamam da falta de coordenação entre a investigação e as necessidades de quem, em juízo, vai acusar. O inquérito demora excessivamente e nos casos mais complexos, é incompleto, necessitando novas diligências, com evidente prejuízo à celeridade e à eficácia da persecução. Por outro lado, os advogados insurgem-se, com muita propriedade, da forma inquisitiva como a polícia comanda as investigações, negando um mínimo de contraditório e direito de defesa, ainda que assegurados no art.5º, LV da Constituição, mas desconhecidos em muitas delegacias brasileiras.

No meio policial, ainda domina o equivocado entendimento de que a

Constituição é que deve ser interpretada restritivamente, para adaptar-se ao modelo previsto no CPP (de 1941), e não ao contrário, com o CPP adaptando-se a nova ordem constitucional.

Afastado o sistema de investigação policial, restam outros dois modelos: juiz instrutor e promotor investigador. O primeiro, ainda em vigor na Espanha e França, está sendo gradativamente abandonado por ser um modelo superado e relacionado com a histórica figura do juiz inquisidor. Concluiu-se, ao longo dos anos, que é um grave inconveniente que uma mesma pessoa decida sobre a necessidade de um ato de investigação e ainda valore a sua legalidade. Como diz a “Exposição de Motivos” do Código-Modelo de Processo Penal para Iberoamérica, o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor.

Chegamos assim ao modelo de instrução preliminar mais aceito na atualidade: promotor investigador. A investigação a cargo do MP vêm sendo adotada por países europeus com êxito. A reforma alemã de 1974 suprimiu a figura do juiz instrutor para dar lugar ao promotor investigador, sendo seguida por Itália (1988) e Portugal (1987/1995).

Espanha e França estão realizando mudanças gradativas no mesmo sentido. Em todos eles, está claramente definida uma subordinação funcional da polícia em relação ao MP.

Neste sistema, o promotor é o diretor da investigação, podendo praticar por si mesmo as diligências, bem como determinar que as realize a polícia, segundo os critérios que ele estabeleça. Assim, formará sua convicção e decidirá entre formular a acusação ou solicitar ao arquivamento. Continua dependendo (em maior ou menor grau, conforme o país) de autorização judicial (juiz de garantias) para realizar determinadas medidas limitativas de direitos fundamentais, como as cautelares, intervenção telefônica, etc.

As vantagens da atuação do MP são patentes. A própria natureza da instrução preliminar, como atividade preparatória ao exercício da ação penal deve estar, necessariamente, a cargo do titular da ação penal. Por isso, deve ser uma atividade administrativa dirigida por e para o Ministério Público, sendo ilógico que o juiz (ou a polícia em descompasso com o MP) investigue para o promotor acusar. Em resumo, melhor acusa quem, por si mesmo, investiga ou, ao menos, comanda a investigação.

No Brasil, o Ministério Público pode participar do inquérito policial conduzido pela polícia judiciária, como um assistente contingente, acompanhando a atividade. Ademais, poderá requerer a instauração, acompanhar e requisitar diligências no curso de um inquérito policial. Mas isso é pouco. É preciso definir claramente que o Ministério Público exercerá o controle externo da atividade policial, dando instruções gerais e específicas para melhor condução do inquérito.

Isso não significa que o promotor deva ficar 24h por dia na delegacia. Caberá ao MP definir instrumentos para um controle periódico das notícias-crimes recebidas, estabelecendo os delitos – que por sua gravidade ou complexidade – devam ser imediatamente levados ao seu conhecimento, para que ab initio controle toda a investigação. Nestes delitos graves, a presença do promotor será imprescindível e constante será a intervenção e o estrito controle da atividade policial. Nos demais casos, o promotor poderá definir uma espécie de procedimento padrão, estabelecendo que diligências devem ser realizadas e de que forma, assim como aquelas que não poderão ser realizadas sem a sua presença.

Desde um ponto de vista técnico, deixando de lado interesses políticos e corporativistas, o controle externo da atividade policial e do próprio inquérito, por parte do Ministério Público, representa uma grande evolução no combate eficaz da criminalidade e também, na proteção dos direitos e garantias individuais. A polícia judiciária deve ser um imprescindível órgão técnico, a serviço da administração da justiça e não o titular absoluto do poder de investigar. Afinal, se é uma “polícia judiciária” é porque está a serviço deste poder.

No que se refere a situação jurídica do sujeito passivo da investigação, entendemos que será beneficiada, pois devemos esperar e exigir que o MP respeite as garantias mínimas do suspeito, previstas na Constituição. Em última análise, como órgão imparcial, o MP está comprometido com o dever público de combater a criminalidade, mas também está obrigado a observar um outro dever igualmente importante: o respeito aos direitos e garantias individuais, tarefa esta muitas vezes “esquecida” pela polícia judiciária. A função de “filtro processual” do inquérito policial também será beneficiada, diminuindo elevadas “cifras da injustiça”, representadas pelos graves casos em que a denúncia é oferecida sem base suficiente. Nestes casos, ainda que no final o inocente seja absolvido, fica no rastro do processo uma vida estigmatizada e humilhada. A difamacio judicialis e a estigmatização social prévia ao processo penal tendem a diminuir com o comando pelo MP e a restrição da publicidade abusiva que a polícia costuma dar aos atos de investigação.

Muito do que se fala contra o controle externo da atividade policial está contaminado pelo verbo autoritário e interesses puramente corporativistas, revelando um medo por qualquer forma de controle democrático em relação a um órgão que, mais que nenhum outro, deve ser estritamente controlado.

Por fim, cumpre destacar, uma vez definido o controle externo, muitos outros problemas do inquérito continuarão intactos. Esperamos que a discussão continue aberta, para que se produzam futuras e profundas modificações na própria estrutura do inquérito, visando solucionar problemas como a duração da investigação e a necessidade de definir uma pena de inutilizzabilità; valor probatório e a produção antecipada de provas; forma dos atos (publicidade, segredo, etc.); conteúdo e forma da intervenção do sujeito passivo; direitos e cargas que assume com o indiciamento; momento e forma que deve revestir o indiciamento; função e intervenção do juiz de garantias, etc.

Um primeiro passo está sendo dado e vai ao encontro de um principio supremo da justiça: minimização do poder e maximização do saber judicial. Esperamos que não seja o último.

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