Entrevista exclusiva com o ministro Sepulveda Pertence
8 de abril de 1999, 0h00
Ao contrário do que afirma o senador Antonio Carlos Magalhães, na opinião do ex-presidente e atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, o Judiciário é “o menos impuro dos Poderes”. Para o ministro, existem muitas “meias verdades” nas críticas do Legislativo à Justiça.
Pertence admite que “o Poder Judiciário não é nenhuma congregação de anjos”. Ele afirma que uma certa dose de corrupção e vícios como nepotismo, obras suntuosas, se manifestam nesse Poder, como nos demais e em qualquer sociedade humana.
O que o ministro considera inadmissível, é que se misture críticas a desvios administrativos com censura a sentenças judiciais, como teria feito o presidente do Senado. Leia a entrevista exclusiva, onde o ministro Sepúlveda Pertence avalia as críticas do Legislativo e a real situação do Judiciário atualmente.
Entrevista
Como o senhor vê as críticas do Congresso ao Judiciário e as notícias sobre a CPI?
Ministro Sepúlveda Pertence – Acho preocupante esta tendência que se está generalizando, de atingir a credibilidade do Judiciário; e o Judiciário vive de sua credibilidade. Embora com as ressalvas de sempre quanto a essa verdade que, de boa fé, ninguém pode negar: a imensa maioria dos juízes, particularmente os mais indefesos e anônimos servidores da Justiça espalhados por todo esse país, são homens e mulheres da maior honorabilidade. O certo é que esse desencadear de acusações tópicas e muitas vezes indeterminadas acaba por atingir a todos perante de uma opinião pública mal informada por meias verdades que têm sido veiculadas com extrema ligeireza.
A Justiça sofreu mudanças significativas após a Constituição de 1988? Não estariam aí as raízes dessa polêmica atual?
Pertence – Apenas a título de exemplo, tem-se dado como se fosse um pecado capital da Justiça do Trabalho que ela consuma cerca de 50% do orçamento do Poder Judiciário. E tem-se também criticado todo o Judiciário pelo fato de que suas despesas de pessoal tenham crescido mais que o crescimento (relativo) do orçamento de outros Poderes após a Constituição de 1988. Agora, o que não se diz é que não partiu da Justiça do Trabalho essa decisão. Ela foi da Constituinte, que decidiu instalar um TRT em cada Estado, mesmo nos menores Estados, onde o movimento talvez não justificasse. E que num movimento inevitável da Justiça do Trabalho, pela própria urbanização, o número de juntas de conciliação e julgamento venha crescendo, espalhando-se e multiplicando-se. Por isso, a Justiça do trabalho tem hoje mais de 2 mil juízes togados. Enquanto o corpo da justiça da União e a Justiça federal ordinária de primeiro grau tem cerca de 700 juízes de primeiro grau.
Mas também a chamada prestação jurisdicional vem crescendo muito, não ministro?
Pertence – Quando se compara os gastos do Legislativo com os do Poder Judiciário é preciso dizer à opinião pública porque cresceram as despesas do Judiciário. Cresceram porque se criaram todos esses corpos. A Constituição de 88 investiu muito na ampliação do Judiciário e, apesar de tudo isso, o que se tem é um congestionamento brutal, a mostrar que a solução está numa discussão sem paixão da racionalização do sistema. Porque a máquina está se multiplicando, qualquer solução que fique centrada no aumento dessa máquina é irreal. Então é preciso racionalizar o sistema. Como ele está, faliu. As estatísticas do STF e do STJ mostram que esse sistema faliu. O prisma mais dramático dessa crise no Judiciário é a ameaça à sua confiabilidade e, com ela, à sua legitimidade. É que estamos vivendo uma frustração de expectativas. A Constituição apostou como em nenhum outro lugar do mundo na solução jurisdicional de conflitos mas, seja por defeitos do sistema processual, seja pela pobreza da máquina, a frustração era inevitável. Houve aquele momento inicial de descoberta da Justiça como espaço de cidadania, mas a frustração era inevitável porque a máquina era a mesma: velha, viciada, formalista.
O lado novo parece ser o potencial e a tendências de crescimento dos juizados da Justiça Especial, não?
Pertence – Esta é uma coisa da qual não é bom falar, porque depõe a favor do Judiciário (risos). A revolução que está acontecendo, por exemplo, está no juizado de pequenas causas. Em algumas grandes cidades brasileiras, essas varas já começam a responder por quase metade do movimento forense.
Os juizados de pequenas causas seriam então a saída para desafogar a Justiça?
Pertence – Na base, para os problemas do dia-a-dia, a solução está aí. Por isso, mesmo na esfera da Justiça do Trabalho, eu vejo com grande esperança, apesar de toda a tempestade das últimas semanas, a aprovação da emenda constitucional 22 que permite a criação de juizados especiais na área da Justiça Federal e, consequentemente, da Justiça do Trabalho. A emenda já foi promulgada e possibilita a criação desse juizado na Justiça do Trabalho. Mas vai ainda depender de leis e inclusive de adaptação do processo trabalhista a um instrumento extremamente fértil, que pode ser o mecanismo informal, rápido e barato que tem sido os juizados especiais.
O senhor não vê também interesses contrariados nessas críticas do Legislativo ao Judiciário?
Pertence – O Judiciário está sempre numa confluência de críticas da sociedade. De um lado, a crítica justa da sociedade, pela incapacidade da máquina de responder a uma demanda que cresce, e cresce numa manifestação da democratização do País. De outro, haverá sempre um problema: o Judiciário é um freio ao poder e, ainda que funcionando mal, incomoda. Então haverá sempre aqueles que, incomodados não porque o Judiciário não funciona, mas porque ele funciona, se sirvam desse caldo de cultura que é a insatisfação social para enfraquecer e para, enfim, gerar essa erosão da credibilidade do Judiciário. Não estou dizendo que não haja abusos nem que somos uma congregação de anjos. Nenhuma instituição humana deixa de ter vícios ou uma dose inevitável de corrupção. No entanto, ninguém de boa fé poderá desmentir, como eu tenho dito, que ele não é um poder puro, mas é o menos impuro dos poderes. Agora isso tem que ser enfrentado, tem. Creio que um órgão central de planejamento, de administração geral e até de disciplina.
E a tão falada proposta do controle externo, como o senhor vê?
Pertence – Esse problema do controle externo, eu não fecho a discussão. Mas, primeiro, o controle vem sendo pregado como um primado da maravilha, como solução para tudo, o que não será. Segundo, vem com um ar policialesco, quando o mais importante é um órgão que racionalize a administração judiciária até no aspecto disciplinar. Na realidade, a visão atomizada que a Constituição teve da autonomia do Poder Judiciário, distribuindo poder a cada tribunal, tem mostrado falhas evidentes e desgastantes para a imagem do Poder. Muitas vezes as contradições dos tribunais na interpretação das mesmas leis, em matéria de pessoal e vantagens de pessoal tem se mostrado efetivamente desgastante.
O senhor tem uma idéia de que como deveria funcionar esse órgão?
Pertence – Em que medida haverá participação dos advogados, se convém que eles participem do órgão decisório ou se será possível que tenham amplo acesso a esse órgão, são questões a que estou aberto à discussão. Agora, é preciso tirar a visão policialesca desse questão. Sempre que se começam as críticas ao Judiciário, elas misturam assuntos puramente administrativos, como saber se tal obra é suntuosa ou se outra teve superfaturamento, com tal ou qual sentença. Ora, o dia em que houver o órgão externo, seja ele permanente ou não, seja ele até o Congresso Nacional, para criticar ou censurar decisões dos tribunais, aí terá resolvido o problema financeiro dos tribunais. Aí será melhor fechar os tribunais.
Quanto ao futuro de toda essa discussão, da instalação da CPI etc., o que o senhor espera?
Pertence Basicamente, vamos aguardar, com preocupação e expectativa, o desenrolar dessa discussão. E esperar que venha a gerar a única coisa positiva que, acreditamos, possa surgir daí: o estímulo a uma discussão concreta, serena e equilibrada sobre a reforma no Judiciário.
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