Lei do Abuso de Autoridade

A proposta de alteração da Lei do Abuso de Autoridade

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4 de abril de 1999, 0h00

A Constituição Federal de 1988 lançou as bases do Estado Democrático de Direito, instituiu um Poder Judiciário forte e um Ministério Público autônomo e independente. Estabeleceu, em outros termos, os mecanismos de preservação do regime democrático então adotado; montou a estrutura e firmou as suas bases.

No entanto, sendo recente o fenômeno, procura a democracia sedimentar-se no Brasil, daí porque é alvo de contínuas investidas do próprio poder público, talvez em razão da consciência de alguns políticos, ainda não desprendida dos tempos de antanho.

Exemplo dessas investidas perniciosas é o projeto de lei de autoria do Chefe do Executivo Federal, cujo objeto é a inserção de duas alíneas ao artigo 4o da Lei 4.898/65 (Lei do Abuso de Autoridade).

Pretende o projeto alterar a redação do aludido artigo, para incriminar a conduta da autoridade que “instaurar inquérito civil, policial ou administrativo ou propor ação de natureza civil, criminal ou de improbidade, com propósito de perseguição, ou para satisfazer simples sentimento pessoal ou convicção política”, além de punir o magistrado, membro do Ministério Público, membro de Tribunal de Contas, e a autoridade policial ou a administrativa que manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre investigação, inquérito ou processo, ou revelar ou permitir que cheguem ao conhecimento de terceiros fatos ou informação de que tenha ciência em razão do cargo e que violem o interesse público e o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.

É evidente o propósito de atacar as instituições, precipuamente o Ministério Público, coarctando o exercício de sua função institucional, no que concerne à sua essência, haja vista ser este o órgão incumbido pelo Constituinte originário da defesa da ordem jurídica e do regime democrático.

Contraria, pois sim, o princípio da independência funcional do Ministério Público, pretendendo tolher suas atividades incutindo a seus membros o temor de responder a processo criminal. E temor fundado, porque o expediente utilizado consubstancia-se na criação de tipos penais abertos, vagos, imprecisos, a permitir ampla interpretação, de molde a agasalhar em seu bojo ampla diversidade de comportamentos que visem a discutir a forma de atuação de determinado agente público. Viola, por conseguinte, o princípio da reserva legal e o da segurança jurídica, tão necessários à sobrevivência do próprio regime democrático.

Diante do que se propõe, a atuação do Ministério Público ficaria praticamente reduzida a zero, porquanto sofreria limitações em aspectos quase sempre vinculados a essa mesma atuação.

Ora, a instauração de um inquérito ou de uma ação, civil ou criminal, jamais se verá desvinculada de um propósito de perseguição, de um sentimento pessoal ou convicção política.

A perseguição sempre estará presente, bastando que se atente à própria finalidade de um procedimento daquela natureza – justamente “perseguir” o responsável, alcançá-lo e aplicar-lhe a punição devida – tudo nos mais estreitos laços com a legalidade e moralidade. E não há medida mais democraticamente salutar do que essa – perseguir os ofensores da ordem jurídica e puni-los.

O sentimento pessoal, figura inerente a todo ser humano, também afigurar-se-á impossível de ausência. Dizer que o agente público deve atuar sem aplicar ao seu trabalho o sentimento pessoal é o mesmo que exigir a atuação do corpo sem a necessária sustentação psicológica. É querer separar o corpo da alma.

Por fim, não há exercício de atividade pública sem que esta se revista de conotação política. Política, nos dizeres de Hely L. Meirelles, é uma forma de atuação do homem público, quando voltada ao interesse comum. Nestes termos, não há propositura de inquérito ou de ação civil ou penal que não tenha cunho político, entendido este no sentido de busca do bem comum, de restauração da ordem jurídica violada. Portanto, como desvencilhar a convicção política da atuação da autoridade, quando esta legitimamente investe contra os “podres” de outros agentes políticos?

Daí o ingente perigo representado pelo grotesco método de limitação do exercício da cidadania, inserido no projeto de lei em comento, pelo qual ficaria ao alvedrio do intérprete o ajustamento da conduta do agente público ao tipo penal, todas as vezes em que este se aventurasse em promover a responsabilização do outro.

Por isso, repita-se, o projeto não encontra fundamento de validade na Constituição, em face do letal confronto com os princípios da reserva legal e da independência do Ministério Público.

De qualquer modo, não se pretende dizer que as autoridades públicas não possam sofrer limitações na sua atuação, ou que possam simplesmente instaurar inquéritos ou propor ações levianamente, a seu puro e exclusivo arbítrio. Pelo contrário, restrições devem existir, para o fim de procurar manter sempre o exercício das funções públicas dentro dos limites do interesse público. Para tanto, porém, já existem de sobra mecanismos de contenção, sendo absolutamente desnecessários quaisquer outros que venham apenas a complicar, confundir e obstar o seu funcionamento.

Quanto à segunda figura típica que se pretende incluir, consistente na proibição de o agente manifestar opinião sobre investigação, inquérito ou processo, tal figura apresenta-se, do mesmo modo, incabível. Primeiro, porque é inconstitucional, violando o princípio da publicidade dos atos do poder público, imprescindível num regime democrático, para tornar efetivo o controle dos atos do governo e da administração pelos jurisdicionados. Segundo, porque se procura, com esse expediente, regrar condutas já previstas, perfeitamente solucionáveis à luz do ordenamento jurídico em vigor. A Constituição já garante o sigilo para a salvaguarda da intimidade e do interesse público, e a legislação penal já traz figuras atinentes à divulgação de segredo, aptas a punir todas as condutas que efetivamente impliquem em violação do aludido bem jurídico.

Por todo o exposto, forçoso concluir que referido projeto de lei configura um atentado à ordem jurídica; na verdade, uma tentativa de se lesionar a própria democracia, devendo sequer ser introduzido no sistema legal. Caso venha a sê-lo, caberá ao Judiciário, no exercício de seu papel defensor da Constituição, expurgá-lo do ordenamento jurídico.

E não se pode deixar de afirmar que tal atitude do Executivo federal reveste-se de forte intuito persecutório, de sentimento pessoal e de convicção política, tudo para o fim de se ver livre das amarras do controle legítimo de seus atos, perpetrado pelos demais agentes públicos, mais especificamente, pelos demais agentes políticos. Trata-se de um verdadeiro retrocesso às agruras do regime autoritário.

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