A QUESTÃO JUDICIÁRIA

A proposta de reforma do presidente do STF (II)

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23 de abril de 1998, 0h00

Continuação

A LC n.º 73/93, em seu art. 4º, XII, atribui ao Advogado-Geral da União o poder de editar súmula, com fundamento em jurisprudência iterativa dos tribunais. Uma vez editada, a súmula da Advocacia Geral da União – que tem caráter obrigatório – aplica-se a todos os órgãos jurídicos tanto da União Federal (art. 2º da LC n.º 73/93) quanto das autarquias federais (art. 17 da LC n.º 73/93), consoante prescreve o art. 43 da Lei Complementar n.º 73/93, vinculando-os, assim no plano processual como na esfera administrativa, às diretrizes consubstanciadas nos enunciados sumulares formulados pelo Advogado-Geral da União e resultantes de prática jurisprudencial iterativa dos tribunais (STF, especialmente).

Veja-se, portanto, que o princípio da súmula vinculante para a administração pública já se acha devidamente instituído, no plano federal, pela LC 73/93 (arts. 4º, XII, e 43). É uma medida que, além de não comprometer a independência do magistrado, representa uma solução possível, imediatamente aplicável, destinada a permitir o descongestionamento do aparelho judiciário. Estou convencido de que a efetiva aplicação desse instrumento legal, além de contribuir para a celeridade da atividade jurisdicional dos magistrados e tribunais brasileiros, permitirá, ainda, que pretensões legitimamente manifestadas pela parte privada possam ser atendidas, desde logo, pelo Poder Público, até mesmo na própria instância administrativa.

Cabe, aqui, uma consideração sobre a instituição da súmula vinculante no contexto da proposta de reforma do Poder Judiciário, a partir do que se contém no substitutivo oferecido pelo ilustre Deputado Jairo Carneiro (PFL-BA). Tal substitutivo, ora em apreciação na Comissão Especial formada na Câmara dos Deputados, institui a punição do juiz que se insurgir contra a fórmula subordinante e impositiva constante do enunciado sumular, prescrevendo, para os casos de “rebeldia da consciência” do magistrado, a punição correspondente ao crime de responsabilidade.

Essa proposta, além de introduzir em nosso sistema jurídico inadmissível hermenêutica de submissão, revela-se inaceitável, porque, ao impor ao juiz a interdição do seu direito de pensar – e de refletir de maneira crítica sobre as questões submetidas à sua apreciação jurisdicional – busca incriminá-lo e puni-lo pelo fato de haver agido com liberdade e independência.

O gesto independente de pensar com liberdade não pode conduzir à punição do magistrado. O efeito perverso gerado pela aplicação do princípio da súmula vinculante consistirá na indesejável aniquilação da consciência crítica dos Juízes, em claro antagonismo com os postulados que devem informar a concepção democrática do Estado de Direito.

Entendo que, no âmbito do Judiciário, a súmula – enquanto método de trabalho e instrumento veiculador de mera proposição jurídica, destituída, conseqüentemente, de caráter prescritivo e normativo – deve ser valorizada processualmente, para que dela possam ser extraídas diversas conseqüências de ordem formal, sem, contudo, jamais inibir a livre atividade jurisdicional dos demais juízes e tribunais.

Proponho que se busquem meios de valorização da súmula no plano processual, de modo a restringir o acesso à via recursal extraordinária, mediante adequado sistema de filtragem ou de seleção de recursos excepcionais, quando o acórdão se achar fundamentado na súmula. Ou, então, o reconhecimento, em lei, da possibilidade de os tribunais aplicarem, sempre em favor do ex adverso, pena de multa à parte recorrente (mesmo que se trate do Poder Público), que, sem fundamentação consistente ou com objetivos procrastinatórios, impugnar decisões proferidas com apoio na súmula. Ou, então, que se exija, nos casos de recurso contra decisão fundamentada na súmula, a efetivação de depósito preparatório equivalente ao valor da condenação ou a determinado percentual sobre o valor da causa, subordinando-se, dessa maneira, a cognoscibilidade recursal, à realização desse ato processual. Ou, ainda, que se dê efetiva aplicação ao princípio da súmula administrativa vinculante, nos termos já previstos pela Lei Complementar federal n.º 73/93.

Na verdade, as medidas preconizadas destinam-se a tornar efetivo o direito público subjetivo, que, titularizado por qualquer pessoa, consiste no reconhecimento de seu direito à prestação jurisdicional do Estado, sem indevidas dilações. Trata-se de direito que, instituído em favor de todos os membros da coletividade, vem proclamado em importantes instrumentos internacionais de proteção aos direitos básicos da pessoa humana (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8º, 1; Convenção Européia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, art. 6º, 1, v.g.).

Outras idéias podem – e devem – ser apresentadas no curso dos debates em torno da reforma judiciária, com o objetivo de permitir ampla reflexão sobre temas diversos pertinentes à questão em exame, tais como (a) a introdução do controle normativo abstrato preventivo de constitucionalidade, que permitirá a fiscalização prévia e em tese da legitimidade constitucional de projetos de lei, de propostas de emenda à Constituição e de tratados ou convenções internacionais sujeitos à apreciação do Congresso Nacional ou à ratificação do Presidente da República; (b) a instituição do sistema de contencioso administrativo em sentido próprio, com função jurisdicional, destinado a resolver, em caráter definitivo, situações de litígio entre pessoas políticas (União, Estados, DF e Municípios) e respectivas entidades autárquicas e paraestatais, ou entre umas e outras, desde que situadas na mesma esfera institucional de governo; (c) a valorização e o estímulo à utilização da mediação e da arbitragem, como instrumentos eficazes de resolução de conflitos referentes a direitos patrimoniais disponíveis.

No contexto da reforma judiciária, torna-se importante valorizar um outro tema, que, historicamente, tem sido relegado a plano injustamente secundário.

Refiro-me à necessidade de discutir o processo de modernização, aparelhamento e reorganização institucional da Justiça brasileira sob a perspectiva dos problemas e dos fatores de ordem estrutural que tanto agravam a situação de crise a que se acha exposta, hoje, no Brasil, a primeira instância judiciária.

É certo que se deu um passo muito importante com a previsão constitucional dos Juizados especiais. A experiência desses órgãos colegiados, no plano da organização judiciária local de primeira instância, tem sido altamente positiva, notadamente porque os Juizados especiais – além de darem conseqüência real ao processo de democratização da Justiça – apóiam-se em fundamentos que valorizam os postulados da oralidade, da informalidade, da economia processual e da celeridade.

É por essa razão que o Presidente da República, em data recente, encaminhou ao Congresso Nacional proposta de emenda à Constituição com a finalidade de estender essa importante experiência institucional ao âmbito da Justiça Federal.

Torna-se essencial destacar neste ponto – tal como o fez o eminente Ministro Evandro Lins – que o verdadeiro núcleo embrionário da reforma judiciária reside, certamente, na valorização e na experiência dos Juizados especiais, cuja previsão, no Direito luso-brasileiro, decorre de norma inscrita na Constituição Portuguesa de 1822, cujo art. 181 – em notável antecipação do que viria a constar do art. 98, I, da Constituição brasileira de 1988 – assim dispunha:

As atribuições dos Juízes electivos são:

I – Julgar sem recurso as causas cíveis de pequena importância designadas na lei, e as criminais em que se tratar de delitos leves, que também serão declarados pela lei.

Em todas estas causas procederão verbalmente, ouvindo as partes, e mandando reduzir o resultado a auto público;

II – Exercitar os juízos de conciliação de que trata o artigo 195º; (…).”

É preciso recuperar o tempo perdido e dispensar aos órgãos judiciários situados no primeiro grau de jurisdição a atenção de que tanto necessitam e da qual se fazem dignos merecedores. A questão judiciária – é preciso enfatizar – não se resume, não se esgota e nem se identifica, unicamente, com a crise que afeta a cúpula do sistema de administração da justiça em nosso País. Não hesito, por isso mesmo, em proclamar que, no Brasil, hoje, o processo de reorganização do Poder Judiciário há de iniciar-se por sua base fundamental, que reside na primeira instância judiciária.

É também chegado o momento de intensificar a discussão em torno da reforma do Poder Judiciário, ampliando o círculo dos protagonistas centrais desse debate, para, nele, incluir, democraticamente, todos os segmentos da sociedade civil, em ordem a conferir, às decisões que venham a ser tomadas pelo Congresso Nacional (que é a instância formal de poder competente para a adoção de tais medidas), o necessário coeficiente de legitimidade político-social.

A questão do Poder Judiciário, que se revela impregnada de forte componente político-institucional, é demasiadamente importante para ser apenas discutida pelos operadores do Direito. É por tal razão que se impõe a ativa participação de todos os cidadãos nesse debate, pois a possibilidade de ampla reflexão social em torno da questão judiciária – que hoje constitui dado revelador da própria crise do Estado -, além de dar significado real à fórmula democrática, terá a virtude de atribuir plena e essencial legitimação ao processo decisório instaurado perante o Congresso Nacional.

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