A QUESTÃO JUDICIÁRIA

A proposta de reforma do presidente do STF (I)

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23 de abril de 1998, 0h00

Os dados estatísticos acentuam, de maneira dramática, o crescente congestionamento do aparelho judiciário em nosso País, situação essa que vem afetando, sensivelmente, o regular desenvolvimento dos trabalhos no Supremo Tribunal Federal.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o aumento progressivo de causas julgadas e em curso perante o Supremo Tribunal Federal tem constituído impressionante dado revelador do excesso de litigiosidade instaurado perante a Corte, a traduzir a existência de uma anômala situação responsável pela crise de funcionalidade que vem afetando, de maneira sensível, a normalidade dos trabalhos desenvolvidos pelo Tribunal, hoje assoberbado por um volumoso índice de processos e de recursos. A gravidade dessa situação de crise constitui um dos tópicos de reflexão concernentes à presente agenda política nacional, em cujo contexto se busca introduzir profunda reformulação institucional do Poder Judiciário brasileiro, fundada em amplo debate com os operadores do Direito e com o conjunto da sociedade civil.

A reforma judiciária, na realidade, traduz justa reivindicação dos próprios cidadãos brasileiros, pois a questão do Poder Judiciário – mais do que um simples problema de ordem técnica ou de caráter burocrático – representa, no plano político-institucional, um fator decisivo para o pleno exercício da cidadania em nosso País.

O quadro abaixo demonstra, objetivamente, a situação de congestionamento que, neste momento, atinge o Supremo Tribunal Federal:

Processos recebidos:

1989 – 09.632

1990 – 18.549

1991 – 18.407

1992 – 24.537

1993 – 24.160

1994 – 26.662

1995 – 25.838

1996 – 25.600

1997 – 36.426

Julgamentos proferidos:

1989 – 06.637

1990 – 16.598

1991 – 14.622

1992 – 18.536

1993 – 22.046

1994 – 28.725

1995 – 34.806

1996 – 31.635

1997 – 40.823

A extrema gravidade dessa situação, que está a comprometer – e, até mesmo, a inviabilizar – a atuação do Supremo Tribunal Federal, provocada pelo volume excessivo de recursos e de processos, evidencia-se, de maneira bastante expressiva, por um dado comparativo com o funcionamento da Suprema Corte norte-americana.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, que encerrou, agora, no início do verão setentrional, o seu ano judiciário (outono/96 – primavera/97), recebeu, nesse período, não mais do que 8.000 (oito mil) recursos, dos quais julgou, efetivamente, cerca de 2% (dois por cento) desse volume total. Isso se tornou possível, num país que, hoje, possui cerca de duzentos e sessenta milhões de habitantes, graças ao instrumento processual do writ of certiorari, que permite àquele alto Tribunal estabelecer um sistema de filtragem dos recursos, selecionando aqueles que versem temas revestidos de transcendência ou de relevância jurídica, política, econômica ou social, à semelhança do que já ocorre na República Argentina, cujo Código de Processo Civil (art. 280) – com a alteração introduzida pela Lei Federal n.º 23.774/90 – outorga, à Corte Suprema dessa vizinha república, o poder para “rechazar el recurso extraordinario“, sempre com fundamento em um juízo eminentemente discricionário, “cuando las cuestiones planteadas resultaren insustanciales o carentes de trascendencia”.

A discussão sobre a reforma judiciária brasileira vem propiciando o surgimento de diversas propostas que visam a superar a crise de funcionalidade em que hoje se debate, como órgão do Estado, o Poder Judiciário. Todos concordam: a reforma é necessária e é irreversível. Impõe-se, por isso mesmo, o aperfeiçoamento do sistema de administração da justiça, em ordem a torná-lo processualmente célere, tecnicamente eficiente, socialmente eficaz e politicamente independente.

O acesso à Justiça, nesse contexto, deve representar um claro movimento em favor da universalização da jurisdição, em ordem a permitir que todos, sem quaisquer restrições – notadamente aquelas que emergem da reduzida capacidade financeira das pessoas – possam ingressar em juízo, para que o Estado, em resolvendo de maneira efetiva e adequada os conflitos de interesses, viabilize o integral exercício dos direitos por parte daqueles que os titularizam.

Dentro dessa perspectiva, torna-se imperioso cumprir a Constituição (art. 134) e, em conseqüência, fortalecer e consolidar a Defensoria Pública como expressão orgânica e instrumento constitucional de realização do postulado segundo o qual a Justiça deve ser efetivamente acessível a todos, inclusive aos que sofrem o injusto estigma da exclusão social.

Na realidade, mais do que o simples acesso ao processo, impõe-se identificar, na perspectiva mais abrangente do acesso à Justiça, o reconhecimento da necessidade de formular e de implementar um decisivo programa de reforma que vise à remoção dos obstáculos jurídicos, sociais, econômicos e culturais que injustamente frustram ou inibem a utilização, por vastos contingentes da população brasileira, do sistema de administração da justiça.

Torna-se essencial adequar o Estado e o seu aparelho judiciário às exigências que emergem do novo contexto político, econômico e social que hoje caracteriza a experiência institucional e a organização da sociedade civil em nosso País, provendo o sistema estatal com meios que lhe permitam responder, de maneira idônea, adequada e integral, à intensa demanda de jurisdição, propiciando, desse modo, aos sujeitos da relação processual, o desejável acesso à ordem jurídica justa. Cumpre ter presente, por isso mesmo, a advertência exposta em lúcido magistério doutrinário: “o processo precisa ser apto a dar a quem tem um direito, na medida do que for praticamente possível, tudo aquilo a que tem direito e precisamente aquilo a que tem direito” (Cândido Rangel Dinamarco, “A Instrumentalidade do Processo”, pág. 426, 1987, RT).

Cabe apreciar, de outro lado, a crise de funcionalidade que hoje incide sobre o aparelho judiciário brasileiro. Trata-se de situação extremamente grave, que, além de comprometer a regularidade do funcionamento dos corpos judiciários, pode propiciar a formação de condições objetivas que culminem por afetar – ausente a necessária base de credibilidade institucional – o próprio coeficiente de legitimidade político-social do Poder Judiciário.

Antes de mais nada, cumpre identificar os fatores reais de congestionamento que atingem o Poder Judiciário. E o principal deles reside, inquestionavelmente, na oposição (muitas vezes infundada) e na resistência estatal (nem sempre justificável) a pretensões legítimas manifestadas por cidadãos de boa-fé que se vêem constrangidos, em face desse inaceitável comportamento governamental, a ingressar em juízo, gerando, desse modo, uma desnecessária multiplicação de demandas contra o Poder Público.

O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o postulado ético-jurídico da lealdade processual. Na realidade, o processo deve ser visto, em sua expressão instrumental, como um importante meio destinado a viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, achando-se impregnado, por isso mesmo, de valores básicos que lhe ressaltam os fins eminentes a que se acha vinculado.

O processo não pode ser manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das partes. O litigante de má-fé – trate-se de parte pública ou de parte privada – deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional dos juízes e dos tribunais, que não podem tolerar o dolo e a fraude processuais como instrumentos deformadores da essência ética do processo.

É preciso reconhecer – e lamentar – que o Poder Público, muitas vezes, tem assumido, em alguns casos, a inaceitável posição de improbus litigator, incidindo, com essa inadequada conduta processual, em atitudes caracterizadoras de litigância temerária, intensificando, de maneira verdadeiramente compulsiva, o volume das demandas múltiplas que hoje afetam, gravemente, a regularidade e a celeridade na efetivação da prestação jurisdicional pelo próprio Estado.

Cumpre ressaltar que já existe meio para neutralizar esse tipo de comportamento processual, sem prejuízo da adoção de outras soluções processuais cabíveis. Reside no efetivo cumprimento das disposições da Lei Complementar federal n.º 73/93, aplicáveis à União Federal e às suas autarquias, que, na maior parte dos casos, são diretamente responsáveis pelo excesso de litigiosidade recursal que hoje afeta e virtualmente paralisa o trabalho do Supremo Tribunal Federal.

Continua…

Leia também “A proposta de reforma do presidente do STF (II)” na seção COMUNIDADE JURÍDICA

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