Criminalidade, advogado e CF

Criminalidade, advogado criminalista e Constituição da República

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19 de novembro de 1997, 23h00

Vive-se hoje, praticamente em todos os quadrantes dos país e, em especial, nos grandes centros urbanos, sob a atmosfera de vertiginosa multiplicação de exacerbadas idiossincrasias sobre a criminalidade, muitas das quais forjadas na trilha de informações e conceitos imprecisos ou – mais grave – manipulados; tudo, enfim, a projetar, na opinião pública, o pensamento, entre outros, de que ao direito de defesa dos acusados talvez se deva debitar boa parcela de responsabilidade pelo alargamento dos números da estatística criminal.

Aos advogados – particularmente, os criminalistas, nessa perspectiva, impede combater, com redobrado vigor e pelos meios e formas que lhes franqueia a ordem jurídico-constitucional, toda e qualquer tentativa de infundir, na consciência social, a falsa, mas nefasta concepção de que na defesa dos acusados reside um dos propulsores da distorcidamente propalada impunidade.

A defesa, disse-o lapidarmente o inexcedível Rui Barbosa, “não quer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz de seus direitos legais”.

O direito da sociedade somente se afirma racionalmente – faz muito já advertia, em passagem antológica, o notável Malatesta – como direito de punir o verdadeiro réu, condição cuja aferição, em qualquer sistema jurídico-processual civilizado, não prescinde, não pode prescindir – antes e ao contrário, sempre o pressupõe – do efetivo exercício, com a amplitude que a Constituição proclama e assegura, do direito de defesa, direito, de resto, em larga medida condicionado, na forma e na substância, na liturgia da lei e na prática judiciária, à situação do advogado, ao concreto desempenho do relevante mister da advocacia na sua precípua função, pontualmente assinalada por Raimundo Faoro, “de lutar pelo império do Direito e das Leis, de pelejar contra as injustiças sociais, de suprimir o arbítrio, de promover a paz como fruto da Justiça”.

Aos advogados criminais impõe-se, também e em linha de conseqüência, cobrar a incondicional observância, entre outros, do preceito constitucional que outorga ao cidadão preso e atuado em flagrante e, por irretorquível extensão lógico-jurídica, aos indiciados em geral, o direito à assistência de advogado, assistência, aos demais, que à toda evidência não se limita à mera presença física do profissional da advocacia, como se fora simples espectador dos atos da fase pré-processual da persecução penal, mas que consiste e concretamente deve consistir, mesmo porque somente como tal é que reclamaria sublimação constitucional, em ativa participação técnico-jurídica com vistas à preservação de todos os direitos e garantias individuais fundamentais, facultando-se, pois, ao advogado entrevistar-se, antecipada e reservadamente, com o autuado ou indiciado, orientá-lo, inclusive sobre a possibilidade de optar por permanecer caldo, acompanhar os depoimentos e zelar pela respectiva regularidade, praticar, enfim, todos os atos necessários à realização das regras constitucionais de proteção ao cidadão submetido à atuação estatal persecutória.

Urge e é imperativo propugnar, outrossim, o reconhecimento de que o inquérito policial, por abrigar não apenas mera investigação, mas também, e ineludivelmente, atos instrutórios definitivos de efeitos judiciários impostergáveis, verdadeira formação de culpa desprovida de qualquer provisoriedade – como o evidenciam, verbi gratia, o exame de corpo de delito, as perícias em geral e a juntada de documentos – , não se pode desenvolver à margem da contraditoriedade, da possibilidade de participação do indiciado na realização dos atos que, para além de simples investigação, traduzam a produção de elementos de convicção potencialmente definitivos e, nessa contextura, denotativos de autêntica instrução criminal.

De fato, a menos que se pudesse sustentar destinar-se o inquérito policial, não a reconstituir, na medida do possível e seja ela qual for, a verdade concreta acerca do fato virtualmente criminoso, mas apenas a desvelar realidade necessariamente delituosa para viabilizar o oferecimento de acusação, a instauração do processo e a condenação do cidadão, razão jurídica alguma haveria, como não há, em ordem a obstar o exercício da contraditoriedade nessa primeira etapa da persecução penal, especialmente no que concerne aos atos que guardem a feição e a função de instrução criminal defensiva.

Afirme-se, pois – e já agora na esteira do percuciente magistério de Jacinto Nelson Miranda Coutinho, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade do Paraná – que “… a assistência do advogado referida na regra constitucional não é – e não pode ser – meramente passiva. O próprio CPP já contemplava regras (como a do art. 14, por exemplo) que estavam a permitir uma participação ativa do advogado, requerendo, como mandatário do indiciado, qualquer diligência, ainda que ela pudesse ser deferida, ou não, a juízo da autoridade. O art. 5º, LXIII, por evidente, oferece algo mais: a efetiva possibilidade de participação do advogado em qualquer ato de produção de prova no inquérito policial, inclusive pericial, nos termos da lei, ou seja, formulando quesitos e, eventualmente, oferecendo assistente técnico. Com isso, pode haver controle da prova produzida; e é, inclusive, uma garantia à autoridade policial que bem atua” 1. Mas, o que estaria, então, a fomentar, verdadeiramente, substancialmente, a sintomática oposição à admissibilidade do contraditório no inquérito policial?

Por que tantos com ela tanto se incomodam?

Por que, enfim, temer a possibilidade de participação do indiciado, não na investigação policial propriamente dita e considerada, mas nos atos do inquérito policial que, como exteriorização do resultado das pesquisas que a constituem, consubstanciam “operações informativas que pessoalmente hão de atingi-lo, para o bem ou para o mal, pouco importa, mas diretamente na sua liberdade individual, arriscada a sofrer todos os constrangimentos materiais e morais de um processo criminal” (Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida?

Em pleno alvorecer do terceiro milênio, que papel, afina, atribuir ao inquérito policial? O de reconstituir, objetivamente, realidade concreta? Ou o de constituir verdades abstratamente preconcebidas na trilha de conveniências ideológicas ou em atenção a interesses inconfessáveis?

A opção, deixemo-la, todavia, à consciência do certo, do jurídico, do justo. E, também, à história da humanidade na perspectiva dos sugestivos passos da persecução criminal ao longo dos tempos…

Depois, é só apostar, e apostar firme e forte, em que decepção nenhuma sofrerão quantos, repudiando o arbítrio e a injustiça, cultuem a verdade e a dignidade da pessoa humana como valores e vetores fundamentais da cidadania, do Estado Democrático de Direito e, portanto, da atuação persecutória criminal.

1. “O sigilo do inquérito policial e os advogados”, parecer emitido para o Conselho Seccional do Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil e publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 18, abril/junho de 1997, págs. 123/134.

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