Penhora administrativa e arrolamento de bens e direitos
7 de dezembro de 1997, 23h00
Tramita no Senado, gerando crescente discussão entre os tributaristas e os vários setores da administração tributária, o Projeto de Lei n.º 174, de 1996, que trata da instituição da penhora administrativa por órgão jurídico da Fazenda Pública interessada, após a inscrição em Dívida Ativa.
Em que pese o inegável propósito de contribuir para o aperfeiçoamento da realização dos créditos do Poder Público, antevemos óbices de duas categorias para que o projeto em tela possa prosperar. Primeiro, um obstáculo de ordem jurídica, relativo à natureza judicial do ato de penhora de bens do devedor. O segundo problema, de ordem operacional, relativo à significativa dificuldade de identificar os bens a serem penhorados, aspecto absolutamente desconsiderado no projeto cujo objetivo é justamente inverter – de forma revolucionária – a triste realidade da efetividade da execução fiscal.
O projeto está centrado, como demonstra a justificação, na natureza jurídica de ato administrativo atribuída a penhora de bens do devedor. Importa, pois, discutir os traços caracterizadores do ato administrativo e do ato jurisdicional, enquadrando a penhora numa das alternativas tratadas.
É clássica, e substancialmente escorreita, a formulação do esgotamento das funções estatais no tripéadministração-legislação-jurisdição. Grosso modo, legislar significa inovar originariamente a ordem jurídica, em suma, criar direitos e deveres anteriormente inexistentes. Administrar e julgar apresentam como traço comum justamente a faceta de serem formas de aplicar a lei preexistente (1).
A distinção básica e inafastável reside em que na função administrativa aplica-se a lei de ofício perseguindo as finalidades instituídas pelo legislador. Já na função jurisdicional aplica-se a lei, por provocação do interessado, ao caso concreto conflituoso. Portanto, a inserção de certo ato como componente decisivo e indispensável num procedimento tendente a solucionar em caráter definitivo um conflito, um litígio de interesses, denuncia a presença de um ato judicial ou jurisdicional (2).
Estas conclusões não são apriorísticas. Com efeito, ser ato jurisdicional, natureza jurídica atribuída a penhora, decorre do regime jurídico da mesma, conforme o ordenamento em vigor. Especialmente, as normas constitucionais inscritas no art. 5º, incisos XXXV (3) e LIV (4) sustentam as premissas anteriores e impossibilitam sua transposição para o âmbito do Executivo por intermédio de lei ordinária.
A regra esculpida no art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal delineia a abrangência da função jurisdicional na ordem jurídica em vigor. Não é mera regra de garantia de acesso ao Judiciário contra atos que eventualmente se pretendessem insusceptíveis de avaliação, como talvez pudesse ser advogado numa leitura ligeira. Isto porque, o recurso ao Poder Judiciário decorre necessariamente da existência do Estado Democrático de Direito, anunciado já no art. 1º da Carta Magna.
Neste sentido, o recurso ao Judiciário na busca do conhecimento do direito subjetivo (cognição), da cautela ou da execução, como formas de atuação jurídica do Estado nos conflitos de interesses, dão conteúdo concreto, palpável, visível aquele acesso. Seguramente, não podemos raciocinar com a busca pelo Judiciário como simples busca pelo Judiciário, divorciada de uma utilidade concreta a ser perseguida através do processo.
Assim, a alienação forçada de bens para satisfação do direito do credor, objetivo do processo de execução, pressupõe necessariamente a constrição representada pela penhora. Nesta medida, o ato que se pretende transpor para a seara do Executivo, por possuir íntima relação com a perda patrimonial – protegida pela cláusula constitucional do devido processo legal – não pode escapar das entranhas do processo judicial.
O devido processo legal, como posto na Carta de 1988, não impõe apenas um ritual ou caminho a ser seguido quando da subtração de bem ou direito da esfera patrimonial do cidadão. A garantia constitucional impõe também que a realização dos atos tendentes a alcançar tais objetivos sejam decididos e conformados por sujeito ou agente público imparcial e cercado das garantias necessárias para exercício desse poder, com a necessária distância de qualquer interesse em disputa. Admitir que os representantes dos interesses do credor possam praticar atos viabilizadores da subtração patrimonial não se compadece com discurso constitucional.
Ademais, utilizando o critério anteriormente exposto para identificação do ato jurisdicional – inserção como componente decisivo e indispensável num procedimento tendente a solucionar em caráter definitivo um conflito, um litígio de interesses – a penhora não pode escapar a tal qualificação. Afinal, consiste num elemento essencial, absolutamente indispensável, no conflito de interesses que se estabelece no processo de execução entre o credor e o devedor.
Subsiste, ainda, problema de ordem prática no concernente aos objetivos pretendidos pela proposição legislativa em tela. Imaginamos, a partir da realidade forense constatada nos processos de execução fiscal da Fazenda Nacional, que a aprovação do presente projeto de lei não alteraria substancialmente o triste quadro da realização judicial dos créditos públicos. Isto porque, o entrave básico nesse tipo de processo consiste na imensa dificuldade de localizar os bens do devedor, aspecto anterior à penhora dos mesmos. Assim, sem a identificação dos bens a serem gravados, pouco importa quem realizará a constrição ou o rito, expedito ou não, a ser seguido.
Nesta linha, entendemos muito mais eficiente o procedimento, ainda com desenvolvimento incipiente, denominado de arrolamento de bens e direitos (5).
Na forma aqui destacada, a título de exemplo, o arrolamento seria realizado tão-somente na fase de formalização ou constituição dos créditos tributários, e, mesmo assim, somente daqueles de porte considerável (6). Entendemos, diferentemente do proposto no Anteprojeto da Secretaria da Receita Federal, que a plena eficácia da medida só seria alcançável com o arrolamento realizado quando da constituição das pessoas jurídicas. A partir daí, todos os atos de transferência, alienação ou oneração de bens careceriam, para sua validade jurídica, de prévia notificação ao Erário. Neste sentido, porém, com raio de abrangência consideravelmente menor, identificamos o art. 47 da Lei n.º 8.212, de 24 de julho de 1991, com redação dada pela Lei n.º 9.032, de 28 de abril de 1995 (7).
Vislumbramos um papel de grande relevo para o arrolamento de bens e direitos, facilitando e viabilizando, em patamar qualitativamente superior, a realização dos créditos tributários. Porém, propugnamos por certas nuances distintas da sistemática preconizada na proposta original, veiculada pela Secretaria da Receita Federal.
Na forma posta inicialmente, o procedimento de arrolamento de bens só atinge certas situações – quando for lavrado auto de infração com crédito tributário superior a trinta por cento do patrimônio do devedor – e depende inapelavelmente da ação dos agentes fiscais do Tesouro, já sobrecarregados com a própria fiscalização e eventuais representações para fins penais e pela propositura de cautelar fiscal. Neste passo, inclusive, vale destacar a necessidade de ser analisada com maior cuidado a crescente profusão de atividades paralelas a ação fiscalizatória propriamente dita.
Advogamos a instituição do arrolamento de bens e direitos com outra feição. A premissa básica aproveita a característica mais marcante das obrigações tributárias modernas: o cumprimento espontâneo pelo contribuinte dos deveres de agir – principalmente pagar – e informar ao Fisco. Assim, os traços mais relevantes seriam:
(a) A obrigação de arrolar os bens e direitos relevantes seria do contribuinte no momento de inscrição do Cadastro Geral de Contribuintes – CGC e no momento de apresentar as declarações anuais para fins de imposto de renda.
(b) As cientificações relativas às alienações e aquisições de bens e direitos arroláveis poderiam aproveitar, como veículo, a Declaração de Contribuições e Tributos Federais – DCTF.
A sistemática aqui preconizada permite atingir os mesmos objetivos da proposta original com a vantagem de transferir para o contribuinte praticamente todos os encargos de efetivação da mesma. A atividade da fiscalização tributária remanesceria como subsidiária dos procedimentos a cargo do contribuinte com o fito de confirmá-los.
Não custa repisar, entendemos que o arrolamento se coaduna com o sistema tributário em vigor, notadamente os princípios e regras constitucionais posto na Carta Magna de 1988. Não ofende o direito de propriedade, eis que os bens e direitos não sofrem qualquer gravame ou restrição quanto ao uso, alienação ou oneração. Permite, ainda, o expediente do arrolamento de bens e direitos, corretamente manejado pelo Fisco, a utilização em todas as suas potencialidades da medida cautelar fiscal ou da cautelar inominada (8), da ação pauliana (9) e da faculdade prevista no art. 57 da Lei n.º 8.212, de 24 de julho de 1991 (10). No que pertine ao tema central em comento, viabilizaria, quer pelo Judiciário, quer pelo Executivo, se possível for, a constrição patrimonial representada pela penhora.
N O T A S
(1) “O contraste entre a função legislativa (criadora do direito) e a função administrativa (executora do direito ex officio) é de fácil apreensão. Contudo, a distinção entre as funções administrativa e jurisdicional, ambas executórias do direito, já apresenta certo grau de dificuldade para a sua exata percepção.” (Sacha Calmon Navarro Coelho. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário. Pág. 272, 5ª Edição, Forense)
(2) “Todo ato jurisdicional implica dois termos: a controvérsia a propósito da aplicação da norma jurídica e a solução da controvérsia.” (Sacha Calmon Navarro Coelho. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário. Pág. 275, 5ª Edição, Forense)
“Julgar significa aplicar a lei ao caso concreto conflituoso, sob provocação do interessado e com efeitos definitivos. (…) Porém, o juiz (que exerce a função jurisdicional), não age de ofício. Só aplica a lei, para resolver um conflito, quando provocado por alguém nele interessado (o autor da ação).” (Carlos Ari Sundfeld. Fundamentos de Direito Público. Pág. 72, 2ª Edição, Malheiros)
“Pela jurisdição, como se vê, os juízes agem em substituição às partes, que não podem fazer justiça com as próprias mãos (vedada a autodefesa); a elas, que não mais podem agir, resta a possibilidade de fazer agir, provocando o exercício da função jurisdicional. (…) O que distingue a jurisdição das demais funções do Estado (legislação, administração) é precisamente, em primeiro plano, a finalidade pacificadora com que o Estado a exerce. (…) A pacificação é o escopo magno da jurisdição e, por conseqüência, de todo o sistema processual (uma vez que todo ele pode ser definido como a disciplina jurídica da jurisdição e seu exercício).” (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido R. Dinamarco. Teoria Geral do Processo. Págs. 27 e 28, 7ª Edição, RT)
(3) “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
(4) “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”
(5) “Art. 95. Na fase de formalização dos créditos, sempre que o valor global deste for superior a 30% (trinta por cento) do patrimônio líquido conhecido do devedor, proceder-se-á ao arrolamento dos bens e direitos que estejam na posse ou titularidade do sujeito passivo, que servirá para adoção de medidas garantidoras do crédito da Fazenda Pública.
§ 1º. No arrolamento devem ser identificados, inclusive, os bens e direitos em nome do cônjuge e dependentes, em se tratando de crédito formalizado contra pessoa física e, individualizadamente, os de cada sócio, administrador, diretor ou controlador, em se tratando de crédito formalizado contra pessoa jurídica.
(…)
§ 3º. A partir da data da notificação do ato, mediante entrega de cópia do termo de arrolamento, os titulares ou possuidores dos bens e direitos arrolados só podem transferi-los, aliená-los ou onerá-los, mediante prévia e expressa comunicação ao órgão da Fazenda Pública que jurisdiciona o domicílio tributário do sujeito passivo.
§ 4º. A alienação, oneração ou transferência, a qualquer título, dos bens e direitos arrolados, sem o cumprimento da formalidade prevista no parágrafo anterior, acarretará nulidade do ato, não sendo oponível a alegação de boa-fé por parte de terceiro beneficiário.”
(Anteprojeto do Código de Processo Administrativo-Tributário da Secretaria da Receita Federal)
(6) No âmbito da administração tributária federal admite-se, e trabalha-se com esta possibilidade, a veiculação do arrolamento de bens de forma isolada, desvinculado, portanto, do contexto mais amplo do processo administrativo fiscal.
(7) “Art. 47. É exigida Certidão Negativa de Débito – CND, fornecida pelo órgão competente, nos seguintes casos:
I – da empresa:
(…)
b) na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo;
c) na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem móvel de valor superior a CR$ 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil cruzeiros) incorporado ao ativo permanente da empresa.”
(8) As situações de “irregularidade” da vida empresarial (profundas dificuldades financeiras, sociedade comercial como repositório jurídico de bens dos titulares, etc.), justamente quando existe a probabilidade (em concreto) de alienação do patrimônio, ensejam as seguintes iniciativas:
a) Antes da constituição do crédito tributário. Cautelar inominada para a indisponibilidade dos bens a serem penhorados em futura execução fiscal. Não há procedimento judicial específico. A cautelar fiscal não se aplica justamente por inexistir (ainda) crédito tributário (Art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal e art. 798 do Código de Processo Civil).
b) Depois da constituição do crédito tributário. Cautelar fiscal para a indisponibilidade dos bens a serem penhorados em futura execução fiscal (Lei n.º 8.397, de 6 de janeiro de 1992).
(9) Para desconstituir a alienação patrimonial em fraude contra credores, portanto, desde o nascimento da obrigação até a propositura da ação de execução, onde se cogitaria de fraude de execução, pode ser utilizada a chamada ação pauliana ou revocatória. Paralelamente a propositura da ação pauliana pode ser proposta ação cautelar inominada com vistas a indisponibilizar os bens em disputa (Arts. 75, 106 e 107 do Código Civil).
(10) “Art. 53. Na execução judicial da dívida ativa da União, suas autarquias e fundações públicas, será facultado ao exeqüente indicar bens à penhora, a qual será efetivada concomitantemente com a citação inicial do devedor.
§ 1º. Os bens penhorados nos termos deste artigo ficam desde logo indisponíveis.
§ 2º. Efetuado o pagamento integral da dívida executada, com seus acréscimos legais, no prazo de 2 (dois) dias úteis contados da citação, independentemente da juntada aos autos do respectivo mandado, poderá ser liberada a penhora, desde que não haja outra execução pendente.
§ 3º. O disposto neste artigo aplica-se também às execuções já processadas.
§ 4º. Não sendo opostos embargos, no caso legal, ou sendo eles julgados improcedentes, os autos serão conclusos ao juiz do feito, para determinar o prosseguimento da execução.”
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