Opinião

Aprovada a lei municipal mais avançada do Brasil sobre direitos dos animais

Autor

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

3 de fevereiro de 2022, 7h13

1) Introdução
As presentes considerações se referem à Lei 3.917, de 20 de dezembro de 2021, do município de São José dos Pinhais (PR), que "institui a Política Municipal de Proteção e Atendimento aos Direitos Animais", aprovada à unanimidade pela Câmara Municipal, sancionada sem vetos pela prefeita e publicada no Diário Oficial Eletrônico de 30 de dezembro do mesmo ano, com previsão de vigência na data de sua publicação oficial (cf. artigo 8º).

A lei é oriunda do Projeto de Lei nº 299, de 16 de novembro de 2021, apresentado pelo vereador Michel Teixeira de Carvalho (PSD), a partir de um anteprojeto elaborado com a nossa contribuição, no âmbito do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Núcleo de Justiça Animal da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), conforme consta da respectiva justificativa [1].

Para demonstrar o caráter avançado e precursor da referida lei municipal, em termos de Direito Animal, farei comentários artigo por artigo ou por grupos de artigos.

2) Abrangência subjetiva da lei
"Artigo 1º — Esta lei institui a Política Municipal de Proteção e Atendimento aos Direitos Animais, no âmbito do Município de São José dos Pinhais, Estado do Paraná.
§1º. Os animais abrangidos por esta lei são os de estimação ou companhia, bem como os utilizados para realização de trabalhos ou de tração veicular.

§2º. Para os fins do disposto nesta lei, considera-se:
I
animais de estimação ou companhia: os animais tutelados ou destinados a ser tutelados por seres humanos, designadamente no seu lar, como membros não-humanos das famílias, ou simplesmente para seu entretenimento e companhia;
II
animais de trabalho ou tração: os equinos, bovinos, muares e demais utilizados para trabalhos e serviços domésticos ou comerciais na realização de transporte de pessoas ou cargas".

Os municípios brasileiros têm o dever constitucional de proteger os animais (artigo 23, VI e VII, CF), podendo legislar a respeito, seja para suplementar as legislações federal e estadual (artigo 30, II, CF), seja para disciplinar a situação dos animais que se inserem no âmbito local (artigo 30, I, CF).

Essa lei municipal se insere no âmbito do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, possibilitando que, "em matéria de proteção da saúde e do meio ambiente, os Estados e Municípios editem normas
mais protetivas, com fundamento em suas peculiaridades regionais e na
preponderância de seu interesse"
 [2].

Mais do que isso, a lei em comento cumpre o mandamento constitucional, dirigido aos municípios, para que, ao deliberarem sobre a sua política de desenvolvimento urbano, preocupem-se com o bem-estar de seus habitantes (artigo 182, CF), entre os quais, evidentemente, se incluem os animais não humanos.

Como a competência legislativa municipal se destina, precipuamente, para os  assuntos de interesse local, é justificável a limitação subjetiva da lei para abranger a população animal mais diretamente ligada às questões urbanas: animais de estimação e animais submetidos ao trabalho de tração veicular.

Evidentemente, os outros grupos animais  como os animais domésticos submetidos à produção e os animais silvestres , continuam protegidos, mesmo em São José dos Pinhais, pelas demais normas jurídicas, especialmente de Direito Animal, com destaque à regra constitucional de proibição da crueldade (artigo 225, §1º, VII, CF), da qual já é possível derivar a subjetividade jurídica de todos os animais [3].

3) Os princípios do Direito Animal como princípios da política municipal de proteção e atendimento aos direitos animais
"Artigo 2º  São princípios da Política Municipal de Proteção e Atendimento aos Direitos Animais:
I
Dignidade Animal: os animais devem ser tratados como sujeitos de direitos, dotados de valor intrínseco e de dignidade própria, vedado o seu tratamento como coisa;
II
Participação Comunitária: é garantida a participação da comunidade, diretamente ou por meio de suas organizações comunitárias, na formulação da política municipal de atendimento aos direitos animais, bem como no estabelecimento e implementação dos respectivos programas;
III
Educação Animalista: o atendimento e o respeito aos direitos animais devem ser implementados por meio da inclusão do tema nos currículos escolares e por campanhas educativas, utilizando-se os meios de comunicação adequados, nas escolas, associações de bairro, canais oficiais de comunicação do Governo Municipal e em outros espaços comunitários, que propiciem a assimilação pelo público em geral acerca de:
a) adoção ética e responsável de animais de estimação;
b) existência da consciência e da senciência animal;
c) sofrimento animal; e
d) enaltecimento das práticas de vivência e convivência mais éticas, pacíficas e solidárias, dentro de uma perspectiva multiespecífica, zoopolítica e não-especista;
IV
Cidadania Animal: os interesses dos animais, especialmente aqueles que habitam as cidades, devem sempre ser levados em consideração nas leis municipais que possam impactá-los;
V
Substituição: sempre devem prevalecer os métodos alternativos disponíveis que substituam a utilização de animais para fins humanos".

O primeiro grande destaque na nova lei são-joseense é a incorporação dos princípios do Direito Animal, em relação aos quais já tivemos a oportunidade de realizar uma elaboração doutrinária, com aderência ao ordenamento jurídico brasileiro [4].

É sempre oportuno lembrar que os princípios jurídicos não são meras exaltações de valores, mas normas jurídicas de primeiro grau, que estabelecem um estado de coisas a ser promovido por comportamentos que passam a ser exigidos, permitidos ou proibidos [5].

Particularmente, perceba-se, os animais de estimação e os animais trabalhadores passam a ser cidadãos são-joseenses, dada a positivação do princípio da cidadania animal (artigo 2º, IV), de modo que seus interesses devem ser levados a sério pela legislação municipal, na linha teórica zoopolítica inaugurada por Sue Danaldson e Will Kymlicka [6].

4) Animais como sujeitos de direitos
"Artigo 3º — São vedadas todas as práticas que submetam os animais à crueldade ou que comprometam a sua dignidade individual, competindo à família, à comunidade, à sociedade e ao Poder Público, zelar pela efetivação dos seus direitos.
Artigo 4º
— Para os fins desta lei, os animais são reconhecidos como seres conscientes e sencientes e dotados de dignidade própria, sujeitos despersonificados de direito, fazendo jus à tutela jurisdicional, individual ou coletiva, em caso de violação de seus direitos".

Esses dispositivos legais servem para reafirmar as bases estruturantes do Direito Animal municipal: reafirma-se a interdição constitucional às práticas cruéis contra animais e o reconhecimento da dignidade animal, como decorrência da sua consciência (da qual decorre a senciência, enquanto capacidade de sentir e de sofrer), conduzindo-os à sua inclusão em nossa comunidade moral e jurídica como sujeitos de direitos.

O artigo 4º da lei é nitidamente inspirado no artigo 3º do Projeto de Lei Federal 6.054/2019, batizado como Animal Não é Coisa, de autoria dos deputados federais Ricardo Izar e Weliton Prado, já aprovado nas duas casas do Congresso Nacional [7].

5) Catalogação dos direitos fundamentais animais
"Artigo 5º — Todos os animais abrangidos por esta lei têm os seguintes direitos, dentre outros previstos na legislação:
I
respeito à vida, à dignidade individual e à integridade de suas existências, física, moral, emocional e psíquica;
II
alimentação e dessedentação adequadas;
III
abrigo adequado, salubre e higiênico, capaz de protegê-los de chuva, vento, frio, sol e calor, com acesso a espaço suficiente para que possa exercer seu comportamento natural;
IV
saúde, inclusive pelo acompanhamento médico-veterinário periódico e preventivo e pelo tratamento curativo imediato em caso de doença, ferimento, maus-tratos ou danos psicológicos;
V
limitação de jornada de trabalho, repouso reparador e inatividade por tempo de serviço, no caso daqueles utilizados para trabalhos;
VI
destinação digna, respeitosa e adequada de seus restos mortais, vedado serem dispensados no lixo;
VII
meio ambiente ecologicamente equilibrado;
VIII
acesso à justiça, para prevenção e/ou reparação de danos materiais, existenciais e morais e aos seus direitos individuais e coletivos.
Parágrafo único. No caso dos animais, de quaisquer espécies, considerados de estimação, as famílias tutoras, a comunidade e o Poder Público empregarão todos os meios legítimos e adequados para a colocação daqueles abandonados em famílias substitutas ou, no caso dos comunitários, garantir-lhes alimentação, abrigo e tratamento médico-veterinário".

Parece evidente que não basta dizer que animais são sujeitos de direitos sem que se especifique quais direitos esses novos sujeitos possuem.

A lei municipal de São José dos Pinhais não é a primeira a catalogar direitos animais: aponta-se a Lei 4.328, de 23 de dezembro de 2015, do município gaúcho de Eldorado do Su,, como a precursora a especificar direitos para animais, claramente inspirada na Declaração Universal dos Direitos Animais.

O que salienta a lei municipal paranaense é o amplo espectro de direitos animais, dotados de fundamentalidade material, que se encaixam em várias das dimensões dos direitos fundamentais.

Assim, tem-se os direitos à alimentação, à dessedentação e à destinação digna de seus restos mortais (como direitos de primeira dimensão), os direitos à moradia (abrigo), à saúde e à inatividade laboral (como direitos de segunda dimensão) e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (como direito de terceira dimensão), os quais podem ser classificados, quando referentes a não humanos dotados de consciência, como uma nova dimensão desses direitos: os direitos fundamentais de quarta dimensão (direitos fundamentais pós-humanistas[8].

Dada a competência legislativa municipal para assuntos de interesse local, a lei contém especial preocupação com os animais abandonados e os animais comunitários, conforme parágrafo único do artigo em comento.

6) Instrumentos de efetivação dos direitos animais
"Artigo 6º — Leis específicas instituirão:
I
o Código Municipal de Proteção e Convivência com Animais, estabelecendo o ordenamento de atendimento aos direitos animais, observados os princípios, direitos e demais termos da presente lei;
II
o Conselho Municipal dos Direitos Animais, órgão deliberativo e controlador das ações da Política Municipal de Proteção e Atendimento aos Direitos Animais, em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas;
III
o Fundo Municipal dos Direitos Animais, vinculado ao Conselho Municipal dos Direitos Animais, destinado, exclusivamente, a custear a implementação da Política Municipal de Proteção e Atendimento aos Direitos Animais, o qual receberá, dentre outras receitas, as multas aplicadas pela fiscalização municipal aos responsáveis por infrações administrativas contra a fauna e os direitos animais; e
IV
o Conselho Tutelar Animal, órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos animais.
Parágrafo único. Poderá ser instituído mais de um Conselho Tutelar Animal, de acordo com as necessidades de atendimento regionalizado aos animais em situação de risco.
Artigo 7º
— Para atendimento do disposto no inciso IV do artigo 6º desta Lei, o Poder Executivo fará constar as dotações orçamentárias necessárias à instituição e à atuação do Conselho Tutelar Animal.
Artigo 8º
— Esta lei entra em vigor na data de sua publicação".

Outro grande destaque da lei em análise é a preocupação em destinar instrumentos  fortemente vinculados ao princípio da participação comunitária  para realizar na prática os princípios e os direitos positivados.

Não é preciso muita atenção para perceber que o legislador de São José dos Pinhais se inspirou no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/1990) para estabelecer a estrutura administrativa mínima para a efetivação dos direitos animais, o que se justifica pelo fato dos animais, como as crianças, serem altamente vulneráveis.

De uma forma geral, competirá ao Conselho Municipal dos Direitos Animais, como órgão paritário, deliberativo e controlador das respectivas ações políticas, estabelecer a política municipal dos direitos animais, tendo por base a presente lei e o Código Municipal de Proteção e Convivência com Animais, a ser editado pelo Poder Legislativo municipal.

Os programas e as prioridades estabelecidos dessa política serão financiadas com recursos do orçamento municipal, mas com aportes específicos oriundos do Fundo Municipal dos Direitos Animais.

O atendimento executivo para os animais em situação de risco, como previsto no ECA, será providenciado pelo Conselho Tutelar Animal, órgão administrativo específico e destacado para essa atividade, para o qual deverão ser destinados os necessários recursos orçamentos (artigo 7º).

7) Conclusão
É inequívoco o processo contemporâneo de positivação dos direitos fundamentais animais [9], o que reforça, cada vez mais, a autonomia científica do Direito Animal no Brasil.

A Lei nº 3.917/2021, de São José dos Pinhais, é mais um passo nesse caminho de descoisificação dos animais, como forma de deslegitimação da violência e da opressão contra esses seres vivos conscientes.

Outros municípios certamente adotarão a lei são-joseense como modelo e inspiração para construir um mundo melhor, mais ético, pacífico e solidário para todos, de todas as espécies, numa verdadeira "religação" da humanidade com a natureza e consigo mesma [10].

 


[1] Disponível em: http://sapl.cmsjp.pr.gov.br/materia/147641. Acesso em: 30 jan. 2022.

[2] STF, Plenário, ADPF 567-SP, relator ministro ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 1º/3/2021, publicado em 29/3/2021.

[3] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 13, nº 3, p. 48-76, set./dez. 2018.

[4] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Princípios do Direito Animal brasileiro. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, Salvador, v. 30, nº 1, p. 106-136, jan./jun. 2020.

[5] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 102.

[6] DONALDSON, Sue; KYMLICKA, Will. Zoopolis: a political theory of animal rights. New York: Oxford University Press, 2011.

[7] Informações disponíveis em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/601739. Acesso em: 31 jan. 2022.

[8] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Direito Animal e Constituição. Revista Brasileira de Direito e Justiça, Ponta Grossa: UEPG, v. 4, nº 1, p. 13-67, jan./dez. 2020.

[9] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula (coord.). Comentários ao Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba: a positivação dos direitos fundamentais animais. Curitiba: Juruá, 2019.

[10] BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 23-26.

Autores

  • é juiz federal da 2ª Turma Recursal Federal - PR, professor adjunto do Departamento de Direito Civil e Processual Civil e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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