Opinião

O uso de criptomoeda na execução de dívidas judiciais

Autor

9 de novembro de 2021, 17h07

Primeiro veio o bitcoin, a moeda virtual que fez sucesso com lucro (e prejuízo) de muitos investidores, marcada por seu pioneirismo, volatilidade e especulação.

Agora, fala-se em criptomoeda. Essa é a moda do momento.

De fato, o bitcoin é uma criptomoeda, porém hoje existem mais de duas mil criptomoedas, algumas com grande valor de mercado.

O mercado de moedas virtuais está tão aquecido que, em maio deste ano, a polícia inglesa fez operação em uma fazenda acreditado se tratar de uma plantação ilegal de maconha, considerando o alto consumo de eletricidade, cabos e dutos de ventilação do local. Para sua surpresa, encontrou uma fazenda de mineração de criptomoeda, que fazia "gato" de energia! Eram dezenas de computadores [1].

Como toda novidade tecnológica, em especial aquela que gera interesse, a criptomoeda já está criando debates e exigindo que advogados e Poder Judiciário interpretem e inovem na aplicação da legislação em vigor.

Mas, afinal, o que é criptomoeda?

De acordo com o banco Nubank, criptomoeda é uma moeda digital descentralizada, criada em uma rede de blockchain a partir de sistemas avançados de criptografia que protegem transações, informações e dados de quem a transaciona [2].

Traduzindo:

 Uma moeda digital porque, diferentemente do real ou do dólar, não existe em cédula, somente no mundo virtual;

— É descentralizada porque não é controlada por um órgão ou governo, não sendo necessária autorização daqueles para emissão, controle ou intermediação de operações. Tudo é feito pelos próprios usuários;

— Criada em uma rede de blockchain, que é a tecnologia usada para gerar a criptomoeda. Blockchain nada mais é que o sistema que permite o tráfego de dados pela internet, a partir de blocos de dados (código) que carregam informações conectadas;

— Usando criptografia, que é a camada de segurança que permite a emissão e transação da moeda virtual com segurança.

As transações em criptomoedas envolvem o anonimato dos operadores, que são identificados por um código alfa numérico chamado de hash.

A criptomoeda pode ser comprada através de corretoras de moedas virtuais, lembrando ser importante pesquisar sobre a seriedade da corretora e que comprar criptomoeda é fazer um investimento. Como todo investimento, implica em risco.

Por outro lado, em que pese a não regulamentação governamental da emissão e negociação de criptomoedas, seguindo outros países na busca de evitar o seu uso em lavagem de dinheiro e financiamento de tráfico e terrorismo, a Receita Federal editou norma acerca de suas operações.

Em 7/5/2019, foi publicada a Instrução Normativa RFP nº 1.888/2019 [3] que prevê:

— As operações que forem realizadas em ambientes de corretoras domiciliadas no Brasil, serão informadas pelas próprias para a Receita Federal sem nenhum limite de valor; e

— As operações realizadas por corretoras domiciliadas no exterior e as operações realizadas entre pessoas físicas ou jurídicas sem intermédio de corretoras, serão reportadas pelas próprias pessoas físicas e jurídicas. Nessas hipóteses, as informações deverão ser prestadas quando o valor mensal das operações, isolado ou conjuntamente, ultrapassar R$ 30 mil.

Aqui chegamos ao ponto central desse texto.

Se a criptomoeda é uma moda e sua compra um investimento financeiro, pode ser utilizada em ação judicial? Para pagamento de dívida pelo devedor ou para execução do crédito pelo credor?

Há argumento favoráveis e contrários. Vejamos.

A criptomoeda, por óbvio, não está elencada no rol de bens passíveis de penhora do artigo 835 do Código de Processo Civil [4] e do artigo 11 da Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/1980) [5].

Dessa forma, o seu uso para oferecimento à penhora pelo devedor depende, inicialmente, da concordância do credor. Se este não aceitar, haja vista não ser dinheiro (o primeiro item da gradação legal de bens), caberá ao magistrado decidir.

Argumenta-se que a volatilidade e anonimato da criptomoeda gera insegurança na sua penhora. Se o devedor deseja pagar a dívida, que venda a criptomoeda.

Nesse sentido, confira a jurisprudência abaixo:

"Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. Nomeação de bens à penhora. Criptomoeda. Indicação que sequer consta da relação legal de bens sujeitos à penhora. Impedimentos efetivos a tal garantia. Aplicação do princípio da menor onerosidade contido no artigo 805 do NCPC, observando-se a satisfação do interesse do credor. Falta de comprovação dos valores dos bens. Ausência de liquidez. Precedentes. Decisão mantida. Recurso improvido" (TJ-SP, 2ª Câmara Cível de Direito Público, AI nº 2215728-68.2020.8.26.0000, relator Des. Claudio Augusto Pedrassi, data da publicação: 03.11.2020).

"Ementa: Agravo de Instrumento  Execução de sentença — Honorários advocatícios  Garantia do juízo  Oferta de criptoativos à penhora  Recusa motivada do Estado  Bem não regulamentado pelos órgãos competentes e não listado no artigo 835 do CPC  Existência de veículos de propriedade da executada  Ausência de certeza quanto à titularidade da criptomoeda  Possibilidade de saque e depósito do valor integral do débito  Precedentes desta C. 2ª Câmara que vão em sentido contrário ao da pretensão da executada  Recurso desprovido" (TJ-SP, 2ª Câmara de Direito Público, AI nº 2061313-93.2021.8.26.0000, relator Des. Luciana Bresciani; data da publicação: 15.04.2021).

Sob outro prisma, na execução o credor costuma ter grande dificuldade para satisfazer o seu crédito, em muitos casos com ocultação de patrimônio.

Daí, se o credor conseguir através da Receita Federal (via ofício expedido nos autos do processo judicial) a informação da detenção de criptomoeda pelo devedor ou pela corretora onde estiver custodiada, mostra-se aceitável que seja deferida sua penhora.

Ao optar pela penhora de criptomoeda, o credor assume um risco ao mesmo tempo que obtém uma real possibilidade de receber o seu crédito ao final da execução.

Nesse sentido, veja os julgados abaixo:

"Ementa: Agravo de instrumento  Execução de título extrajudicial  Pleito de expedição de ofícios para a realização de pesquisas de valores que o executado detenha perante as operadoras de moedas criptografadas  Possibilidade  Necessidade de informações para o prosseguimento processual  Recurso provido  Decisão reformada" (TJ-SP, 21ª Câmara de Direito Privado; relator Ademir Benedito, AI nº 2039628-30.2021.8.26.0000, data da publicação: 29.07.2021).

"Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO  AÇÃO MONITÓRIA  CUMPRIMENTO DE SENTENÇA  Expedição de ofício às corretoras de criptomoeda  Possibilidade  Frustração das demais tentativas de localização de bens da executada  Necessidade de intervenção do Poder Judiciário  Informação não acessível pelo sistema BacenJud – Recurso provido" (TJ-SP, 25ª Câmara de Direito Privado, AI nº 2055546-74.2021.8.26.0000, relator Des. Hugo Crepaldi; data de publicação 07.07.2021).

"Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA COM RESTITUIÇÃO DE VALORES.  TUTELA DE URGÊNCIA CAUTELAR. BLOQUEIO DE BITCOINS (CRIPTOMOEDA). ATIVO FINANCEIRO NÃO REGULAMENTADO POR LEI. NATUREZA JURÍDICA CONTROVERSA. CONCEITO PREVISTO NA Instrução Normativa nº 1.888/2019 DA Receita Federal. OBJETO PENHORÁVEL ANÁLOGO A títulos e valores mobiliários com cotação no mercado (ARTIGO 835, III, CPC ). NECESSIDADE DE LIQUIDAÇÃO ANTECIPADA EM de sua volatilidade (ARTIGO 852, I, CPC ).  Recurso conhecido e provido.- Presentes os requisitos da probabilidade do direito e de risco ao resultado útil do processo, é admissível o bloqueio de frações de bitcoins através da exchanges para assegurar a efetividade de eventual e futura sentença condenatória, mediante sua imediata liquidação em moeda corrente para evitar os riscos de sua volatilidade" (TJ-PR, 9ª Câmara Cível, AI nº 0026506-94.2020.8.16.0000, relator Juiz Rafael Vieira de Vasconcellos Pedroso, data de julgamento: 14.11.2020).

Entendo que em qualquer hipótese a criptomoeda poderia ser aceita para penhora e futura satisfação do crédito executado. Os argumentos favoráveis são mais fortes que os contrários, em especial porque excluir as criptomoedas poderá estimular a ocultação de patrimônio através dessa moeda. Dificultando ainda mais a vida dos credores!

Fato é que mais uma vez o Direito está diante de uma nova questão sobre a qual precisa se debruçar, refletir e se adaptar.

 


[4] "Artigo 835 – A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:
I – dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;
II – títulos da dívida pública da União, dos Estados e do Distrito Federal com cotação em mercado;
III – títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;
IV – veículos de via terrestre;
V – bens imóveis;
VI – bens móveis em geral;
VII – semoventes;
VIII – navios e aeronaves;
IX – ações e quotas de sociedades simples e empresárias;
X – percentual do faturamento de empresa devedora;
XI – pedras e metais preciosos;
XII – direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia;
XIII – outros direitos
§1º. É prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto".

[5] "Artigo 9º – Em garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, o executado poderá:
I – efetuar depósito em dinheiro, à ordem do Juízo em estabelecimento oficial de crédito, que assegure atualização monetária;
II – oferecer fiança bancária ou seguro garantia;
I
II – nomear bens à penhora, observada a ordem do artigo 11; ou
IV – indicar à penhora bens oferecidos por terceiros e aceitos pela Fazenda Pública".

Autores

  • é advogada formada pela Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), mestre em Direito pela UNESA-RJ, MBA em Gestão Empresarial pela FGV-RJ e sócia de Miceli Sociedade de Advogados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!