Opinião

O princípio da subsidiariedade do Direito Penal, tão estudado e pouco observado

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16 de dezembro de 2021, 16h07

1) Introdução
A denominada criminalidade clássica, praticada essencialmente contra a vida e a propriedade privada, tem por características a possibilidade de delimitação da autoria, do espaço, do tempo, do modus operandi e dos seus efeitos, tal qual o característico crime de homicídio consumado, praticado na presença de testemunhas.

Na verdade, essa é a base metodológica do Direito Penal clássico e sobre a qual foram construídos os princípios reitores da dogmática jurídico-penal aplicados até os dias de hoje.

A criminalidade atual, contudo, não é tão cartesiana e simples de compreender como a clássica. Ao contrário, assim como a sociedade atual, a criminalidade atual é plural (crimes são cometidos por pobres, ricos, empresas, políticos, governos, organizações criminosas), tecnológica (através da utilização de instrumentos mecânicos, analógicos, digitais, virtuais) e globalizada (com produção de efeitos difusos não delimitáveis no tempo, no espaço e quanto a sua abrangência).

Evidentemente, todos esses fatores impõem uma severa dificuldade para a definição das relações de causa e efeito e, consequentemente, para a imputação de responsabilidades, já que a simplicidade dos pressupostos da criminalidade clássica não é suficiente para a compreensão dogmática da complexa criminalidade atual e futura. Aliem-se a tais aspectos os irrenunciáveis postulados político-criminais da fragmentariedade, da subsidiariedade, da culpabilidade e da efetiva lesão ao bem jurídico individual, que orientam o Direito Penal clássico.

Pois bem, neste breve ensaio, queremos nos concentrar no que significa, ou deveria significar, o aspecto subsidiário do Direito Penal, nesse momento em que nos deparamos com a necessidade de regulação de condutas não pensadas pelo Direito Penal concebido no período da ilustração.

2) O caráter subsidiário do Direito Penal
Segundo Roxin [1], o Direito Penal é subsidiário por natureza, ou seja, apenas lesões aos direitos legais e as infrações aos fins da segurança social podem ser punidas, se for inevitável para uma vida comunitária ordenada. Quando os meios de Direito Civil ou de Direito Público forem suficientes, o Direito Penal deve se retrair. Se for usado onde outros procedimentos mais suaves são suficientes para preservar ou restaurar a ordem jurídica, ele carece da legitimidade da necessidade social.

Nesse mesmo sentido, segundo Barreda Solorzano [2], o estabelecimento de tipos penais só se justifica para proteger interesses sociais sem os quais uma convivência social autossustentável não é possível, e quando, além disso, outros meios não são suficientes para preservar as condições em que essa convivência repousa. Portanto, quando se postula que o Direito Penal deve ser subsidiário e fragmentário, isso implica que não deve se tornar uma estrada excessivamente percorrida.

A questão que surge é que, apesar de todos conhecermos o que significa, em tese, o caráter subsidiário do Direito Penal, não se costuma ir além da explicação do seu conteúdo e finalidade, ou seja, não há parâmetros definidos, doutrinária ou jurisprudencialmente, para perquirir se a norma penal introduzida, de fato, apresenta-se como a ultima ratio.

3) Mecanismos de controle social e graus de intervenção do Estado
O convívio em sociedade sempre gerou riscos  nem sempre perceptíveis  e alguns dilemas. O convívio em sociedade plural, tecnológica e globalizada, como a que vivemos atualmente, gera, quantitativa e qualitativamente, mais riscos (reflexos) e diversos dilemas (reflexão). Além do que, a proliferação dos meios de comunicação tornou os riscos mais perceptíveis, favorecendo a sensação, não necessariamente real, de insegurança coletiva.

Os riscos, como resultado dos avanços tecnológicos proporcionados pelo próprio homem ao longo da evolução da humanidade, podem, ou não, materializarem-se em resultados indesejáveis. Já os dilemas dizem respeito ao confronto da humanidade com a percepção dos riscos e a constatação dos resultados, e como eles devem ser compreendidos e compartilhados entre os membros da sociedade, ou seja, se serão permitidos (compartilhados integralmente), controlados (compartilhados parcialmente) ou proibidos (não compartilhados), e de que forma devem ser tratados os indivíduos que não se adequarem à classificação estabelecida pela sociedade, é dizer, se a resposta deve ser de natureza civil, administrativa ou penal.

É justamente nessa fase de tomada de consciência que são produzidas e revistas as classificações dos riscos sociais e ganha especial relevo o estudo do princípio da subsidiariedade. Em alguns casos, a classificação do risco/resultado e a definição da resposta parecem óbvias, como no comportamento do indivíduo que, sem qualquer motivo justo, intencionalmente, gera a morte de outro indivíduo. Nesse caso, as sociedades civilizadas costumam classificá-lo como resultado proibido, cujos efeitos não devem ser compartilhados com a sociedade e impor a resposta de índole penal.

Em outros casos, contudo, as respostas não são tão óbvias. Por exemplo, em 1886, quando Karl Benz desenvolveu o primeiro automóvel movido a gasolina, não se tinha a noção de que a queima do combustível emitiria gases poluentes em níveis que pudessem afetar o meio ambiente e a saúde coletiva, por isso, inexistia qualquer controle sobre a produção industrial de automóveis. Atualmente, existe enorme preocupação com os níveis de emissão de gás carbônico pelos automóveis, porque os efeitos danosos tornaram-se conhecidos ao longo do tempo.

Entretanto, a solução adotada, apesar dos riscos conhecidos, não foi a proibição, pura e simples, da atividade econômica, tampouco, parece que a permissão irrestrita seria a solução mais acertada; na verdade, a fabricação é permitida, desde que respeitados parâmetros ambientais definidos pela autoridade competente, porque, apesar de potencialmente poluidor, o automóvel também é útil à sociedade e, portanto, a fabricação não deve ser proibida, mas controlada, com compartilhamento dos efeitos nocivos, para a que a relação entre custos e benefícios sociais mantenha-se, ao menos, equilibrada.

Outro exemplo nesse sentido é a internet. São enormes as utilidades proporcionadas, como a facilidade de comunicação, o acesso a informações em tempo real, a realização de transações financeiras no mundo inteiro, cirurgias virtuais etc. Na verdade, é provável que ainda nem conheçamos toda a sua potencialidade. Por outro lado, alguns riscos já conhecidos se apresentam, como a exposição de dados pessoais, fraudes no e-commerce, fraudes bancárias, lavagem de capitais em nível internacional, divulgação de pornografia infantil, difusão de fake news, crimes cibernéticos etc.

Da mesma forma que a indústria automobilística, a internet é permitida na maioria dos países, porém, é crescente o movimento para o controle do fluxo de informações e dados nesse ambiente virtual. No Brasil, por exemplo, já foram aprovadas duas leis nesse sentido, como o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018).

Percebe-se, portanto, que o grau do risco sentido pela sociedade e a análise de custo-benefício tendem a induzir respostas mais ou menos interventivas sobre o domínio das escolhas particulares, com distribuição de riscos que varia entre a concentração em um indivíduo ou estrutura (pessoa jurídica, empresa, corporações) e a dispersão na sociedade, conduzindo a respostas que, como dito, podem ser, em linhas gerais, de natureza civil, administrativa ou penal.

Nesse sentido, a intervenção de natureza civil  que não poder ser apropriadamente chamada de intervenção  tende a ser adotada quando os riscos/resultados não extrapolam as relações privadas e, por isso, podem ser socialmente tolerados, apesar de não incentivados. Usualmente, nesses casos, o mecanismo definido é a indenização por prejuízos materiais ou morais. Basicamente, são questões que os envolvidos poderiam resolver sozinhos, sem a intervenção estatal, porque, em princípio, não haveria afetação de interesses coletivos.

Entretanto, quando o risco/resultado ultrapassa as relações meramente privadas, a sociedade deve decidir se ele será apenas controlado — como a fabricação de automóveis e a internet  ou proibido, o que pode gerar respostas de natureza administrativa e/ou penal, que se diferenciam pelo grau interventivo. E essa decisão não pode ser tomada de forma discricionária, ao contrário, quanto mais interventiva sobre a esfera das escolhas individuais for a medida, maior deverá ser o rigor no processo de elaboração (processo legislativo) e de aplicação (devido processo legal).

A opção pela resposta estatal de natureza administrativa, portanto, revela-se conveniente quando, para o controle ou proibição do risco, a definição de parâmetros regulatórios, imposição de multas e interdições de direitos mostrarem-se suficientes. Por outro lado, quando for necessário proibir um determinado comportamento e a intervenção administrativa não se revelar a opção mais adequada, cabe, no grau mais avançado da intervenção estatal, a tutela penal, com aplicação de pena de prisão. Em alguns casos, como no ordenamento brasileiro, cumulam-se as respostas administrativa e penal: autuação fiscal e crime contra a ordem tributária; embargo administrativo de obra e crime de parcelamento irregular de solo, entre tantos outros exemplos.  

Contudo, mesmo quando a opção for pela tutela penal, existem graus distintos e crescentes de intervenção a serem considerados. Nesse sentido, se a ideia é reprimir um resultado ofensivo, opta-se, entre as possibilidades dogmáticas, pela tipificação de crimes materiais, os quais somente se consumam com a efetiva produção do resultado naturalístico não desejado, aspecto característico do Direito Penal clássico, concebido para a proteção de bens individuais, como vida, patrimônio e liberdade. De outro lado, se a opção político-criminal é no sentido de evitar a produção do resultado naturalístico, a opção dogmática mais adequada é a criminalização da própria conduta, através da tipificação de crimes formais e de mera conduta, os quais se consumam independentemente de ocorrer ou não qualquer resultado naturalístico.

Perceba-se que o grau de intervenção estatal está se intensificando. No crime material, somente haverá punição se da conduta advier algum resultado proibido; no crime formal ou de mera conduta, o resultado é irrelevante para a caracterização do crime; basta a materialização da conduta proibida para aplicação da penalidade.

Avançando ainda mais no grau de intervenção da tutela penal, se o objetivo da política criminal for evitar o mero risco para o bem jurídico protegido, a opção dogmática deverá ser pelo tipo penal de perigo, pelo qual se considera consumado o crime com uma conduta potencialmente arriscada para o bem jurídico protegido, segundo avaliação do legislador, que poderá efetivamente gerar risco (perigo concreto) ou não (perigo abstrato).

De todo esse arcabouço é possível extrair a presença de uma lógica que permeia (ou deveria permear) a relação entre as espécies de riscos e resultados possíveis, de um lado, e a resposta a ser escolhida pelo Estado, de outro, no sentido de que, quanto mais ofensivos forem o risco e o resultado da conduta para o convívio social, mais intensa deve ser a resposta estatal, ou seja: 1) risco/resultado permitido, mas não desejável: responsabilidade civil: 1.1) indenização; 1.2) imposição de obrigação de fazer e não fazer; 2) risco/resultado controlado: intervenção administrativa: 2.1) fiscalização; 2.2) regulação; 2.3) permissão; 2.4) interdição; 2.5) multa; 3) risco/resultado proibido: intervenção administrativa e/ou responsabilidade penal: 3.1) crime material; 3.2) crime formal; 3.3) crime de mera conduta; 3.4) crime de perigo concreto; 3.5) crime de perigo abstrato.

Mas como saber, apenas através de argumentos meramente teóricos, e muitas vezes retóricos, que medidas extrapenais não efetivamente implementadas não são suficientes para tutelar o bem jurídico? Na verdade, não há como, e o que se percebe é que a opção pela tutela penal deixou de ser o último recurso do Estado para tornar-se a primeira opção de controle social, sempre que um evento com repercussão midiática vem à tona. Nesse sentido, podemos lembrar a Lei Carolina Dieckmann [3] e a recente proposta de qualificação de crimes ambientais com resultado morte como hediondo [4].

4) Conclusão
A título de conclusão sobre essas breves reflexões, gostaríamos de sugerir que a introdução de uma norma de controle social de natureza penal deverá ser precedida da efetiva adoção de medidas menos intrusivas  cíveis e administrativas  durante um determinado período de avaliação, após o qual será possível extrair dados válidos sobre a adequação ou não da medida adotada, os quais guiarão a tomada de decisão estatal.

Por certo, esse mesmo decurso de tempo também servirá para a sociedade refletir, sem a pressão do calor dos acontecimentos, se a conduta é efetivamente lesiva como se imaginava, a ponto de demandar a intervenção estatal mais intrusiva. Aliás, esse nos parece ser o motivo de o legislador constitucional haver vedado a utilização das urgentes medidas provisórias para a previsão de tipos penais. Vale dizer, não há urgência em se impor uma nova forma de tutela penal.

Além disso, passo seguinte, quando do debate parlamentar acerca da necessidade da imposição de medidas de natureza penal, caberia ao parlamento produzir a maior quantidade de informações possíveis sobre a ineficácia das medidas extrapenais efetivamente adotadas, tornando-as públicas para que possam, não apenas subsidiar o debate legislativo, mas, também, propiciar o exercício do controle judicial da necessidade da norma penal.

 


[1] ROXIN, Claus. Problemas básicos del derecho penal. Madrid: Reus, 1976, p. 21-22.

[2] BARREDA SOLORZANO, Luis de la. Evolución Penal e Inflación Punitiva. Derecho Penal y Criminologia, 1982, p. 301.

[3] A indevida divulgação de fotos íntimas da atriz que deu nome à lei, obtidas através de invasão de dispositivo informático, ocorreu em maio de 2012 e a Lei 12.737 que criminalizou tais condutas foi sancionada em novembro do mesmo ano, em tempo recorde.

[4] Poucos dias após a tragédia humana e ambiental ocorrida no Município de Brumadinho-MG ressurgiu a discussão sobre se o crime ambiental, que acarrete também a morte de seres humanos, deveria ser alçado à condição de crime hediondo, tema objeto do Projeto de Lei nº 22/2016, que tramita no Senado Federal.

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