Opinião

Reforma do Estado exige antes construção jurídica do Estado inovador

Autores

  • Rafael Roque Garofano

    é advogado. Mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ocupou a função de Assessor Jurídico no Gabinete da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

  • Felipe Simões da Mota Oriá

    é cientista político pela Universidade Federal de Pernambuco e mestrando em políticas públicas pela Harvard Kennedy School of Government. Atuou na Iniciativa de Cidades Emergentes e Sustentáveis do Banco Interamericano de Desenvolvimento Organização dos Estados Americanos e Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

20 de outubro de 2015, 7h41

O recente anúncio da constituição de uma Comissão Especial para um novo ciclo de Reforma do Estado [1] leva-nos a fazer a seguinte indagação: é possível reformar o Estado no Brasil, por meio de inovações institucionais ou sistêmicas, sem alterar as bases de nosso sistema jurídico-administrativo? Dito de outro modo: é possível reformar o Estado sem antes reformar o Direito?

A nova reforma do Estado adota como ponto de partida o fomento à inovação e às boas práticas na gestão pública[2]. É natural que assim o seja, na medida em que a dinâmica social contemporânea é movida pela inovação. Um dos maiores desafios para um país consiste na permanente modernização de sua economia e na sua capacidade de reinventar as suas instituições e práticas em momentos de crise, aspectos cruciais para a viabilização de avanços sociais.

A experiência mundial das economias mais dinâmicas demonstra que o poder de transformação propiciado por seus polos de desenvolvimento e de inovação são capazes de viabilizar alternativas que sequer poderiam vir a ser conhecidas na ausência de medidas de estímulo à tomada de riscos intrínsecos à atividade de inovar. Muitas vezes são os insucessos que possibilitam uma nova compreensão da realidade e conduzem a novas abordagens a partir de propostas inovadoras. Nessa dimensão, erros e acertos correspondem a duas faces da mesma moeda, na medida em que as perdas geralmente são compensadas com os êxitos, resultando na disseminação de reflexos positivos para todo o sistema econômico e social.

Analisada sob a perspectiva do Estado, a inovação adquire pelo menos duas dimensões distintas e complementares: de um lado, o Estado se coloca no papel de fomentador da inovação, por considerá-la um valor potencialmente gerador de ganhos para a sociedade, na medida em que estimula a competição e independência na produção e fornecimento de tecnologias. De outro lado está o Estado que se reinventa, que busca soluções inovadoras para desempenhar de modo mais eficiente as suas funções, revelando-se, nessa medida, um beneficiário da inovação nas suas mais diversas acepções.

A primeira dimensão circunscreve-se na função de fomento estatal. Nos últimos anos, assiste-se a um aumento considerável do número de instrumentos de fomento sem tipificação precisa e cuja definição decorre, sobretudo, da prática de cada instituição pública, recebendo, por isso, no âmbito de cada organização, uma nomenclatura própria para expressar — na essência — uma mesma modalidade de atuação estatal com o objetivo de incentivar atividades de relevância pública voltadas à inovação (são exemplos os termos de cooperação firmados pelo CNPQ e os investimentos realizados por instituições como a Finep e a Fapesp).

A segunda dimensão da inovação sob a perspectiva do Estado — e a que mais nos interessa —, consiste na posição assumida pelo Estado de promotor e ao mesmo tempo beneficiário da inovação, nos mais diversos campos de atuação. Na perspectiva da função administrativa, o Estado inova — ou pode inovar — em qualquer seara, sendo ainda mais amplas as possibilidades de inovação. O Estado pode inovar nas práticas de gestão administrativa, na organização interna, na regulamentação, nas contratações, na interpretação do Direito, na regulação, na prestação de serviços públicos, entre muitas outras. A verdade é que cada vez mais o Estado é instado a inovar, pois dinâmica do mundo atual exige inovações constantes, resultado do progresso tecnológico e da velocidade da comunicação e da globalização.  

Por isso é que o Estado inovador não se limita a apoiar o setor privado na criação de ecossistemas inovadores, mas atua também como participante ativo na tomada de riscos inerentes ao desenvolvimento tecnológico e à inovação de alto impacto, para o melhor cumprimento de suas próprias funções. É necessário que o Estado possa valer-se do potencial inovador do setor privado na solução de seus problemas específicos e na busca de modelos institucionais alternativos de prestação de serviços públicos.

O regime das compras públicas, por exemplo, é um dos principais domínios em que a inovação pode ser perseguida pelo Estado para seu próprio proveito. Como o maior comprador de insumos e produtos em diversos segmentos, o Estado pode usar seu poder de compra para viabilizar o desenvolvimento de novos bens, produtos, serviços, métodos ou processos, inclusive de gestão pública, partilhando os riscos de desenvolvimento com o setor privado.

A síntese dessa vertente da inovação que tem como principal destinatário o próprio Estado e as suas funções públicas situa-se no paradigma do Estado inovador, que tem a missão de promover incentivos e instrumentalizar a inovação, não somente por meio do fomento à criação de ecossistemas inovadores, como também atuando como participante ativo na tomada de riscos inerentes ao processo inovativo. É importante que o Estado disponha de mecanismos que utilizem esse poder de compra para fomentar o ambiente de inovação, assim como o desenvolvimento de soluções inovadoras de interesse público. Economias avançadas como a União Europeia e os Estados Unidos da América já possuem regimes de compras de soluções inovadoras pelo poder público que podem nos servir de inspiração.

No entanto, esta cultura da inovação pelo Estado e para o Estado é ainda muito incipiente no Brasil, resultado de um arcabouço normativo rígido e de uma escola jurídica bastante tradicional e conservadora neste aspecto. Vale observar, por exemplo, que a legislação vigente sobre licitações, regida primariamente pela Lei 8.666/1993, não reconhece este papel central das compras públicas no fomento à inovação, e não confere a regulamentação e a segurança adequadas para a contratação por órgãos e entidades da administração pública de atividades que envolvam risco tecnológico.

Embora esforços tenham sido feitos para flexibilizar a regulação de compras aplicável à inovação, dentre os quais se destaca a Lei de Inovação, que permite em seu artigo 20 que o poder público contrate a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento envolvendo risco tecnológico, e o Decreto 8.269/2014, que criou o Programa Nacional de Plataformas do Conhecimento, justamente uma tentativa infralegal de dar vazão ao disposto na Lei de Inovação, o fato é que a ausência de tratamento normativo adequado sobre uma modalidade específica de compra pública de inovação faz com que, ainda nos casos previstos pela Lei de Inovação, aplique-se a Lei 8.666/93, o que acaba dificultando o propósito de compra de soluções inovadoras pelo Estado.

O maior desafio, por isso, consiste em viabilizar inovações nos órgãos e entidades da administração pública que, ao contrário da sociedade civil, dependem diretamente de inovação normativa ou regulatória para inovar na prestação de serviços. É preciso criar os instrumentos que permitam que essa inovação ocorra para além dos ajustes incrementais e marginais que se dão no nível infralegal. A Federação brasileira não possui hoje caminhos jurídicos que permitam a inovação estrutural e institucional. Tampouco existem mecanismos de reincorporação, a nível federal, de práticas exitosas de inovação e experimentação legislativa.

A oferta de serviços públicos deve ser pautada pelo atendimento às demandas da população e pela adequação à sua natureza dinâmica. Isso exige que o Estado tenha um desenho institucional adaptativo e aberto à inovação. É preciso um esforço consciente de eliminação das barreiras à inovação e da construção de canais de fomento à inovação institucional. Um desses caminhos, por exemplo, seria a criação de Laboratórios de Governo, permitindo ganhos de escala e a expansão da fronteira do possível no desenvolvimento de soluções para a gestão pública. Além de promover concentração dos custos do desenvolvimento de soluções de benefício difuso, a perspectiva comparada e a capacidade de coordenação amplificam o potencial de inovações para o setor público. Outro caminho seria o fomento à inovação legislativa e administrativa por meio da construção de caminhos jurídicos específicos para a inovação. Um Estado inovador precisa estabelecer procedimentos e garantir a segurança jurídica para que a inovação ocorra no setor público e seja posteriormente reaproveitada de maneira sistêmica pelos entes da Federação.

De tudo isso resulta claro que compete ao Direito atender a esta demanda por inovações e instrumentalizar o Estado de maneiras de atuar que não apenas permita a inovação constante, como também a estimule como prática, sem perder de vista o papel — que é próprio do Direito — de garantir estabilidade, previsibilidade e segurança para as relações jurídicas, ou seja, é preciso garantir equilíbrio entre a demanda por inovação e a segurança ou estabilidade das instituições e regras. O Direito brasileiro, contudo, não favorece o perfil do Estado inovador descrito linhas acima, e não possui os instrumentos adequados para atender a esta demanda do Estado inovador, em suas diferentes dimensões. Tal constatação leva à necessidade de reformulação de institutos, quebras de paradigmas e mudanças de ordem normativas e institucionais que, em conjunto, permitam ao Estado perseguir a inovação com vistas ao melhor cumprimento de suas finalidades, sem prejuízo da estabilidade e segurança jurídica.

Pelo menos três aspectos principais denotam a apontada insuficiência do Direito em face do novo paradigma do Estado inovador: (i) a crise do princípio da legalidade; (ii) a incapacidade das instituições públicas de se adaptarem e de se transformarem de acordo com as variações das demandas sociais; e (iii) a dificuldade de assimilação do risco inerente à inovação pelas instituições executivas e de controle. No primeiro e no segundo, a rigidez ocupa o lugar da flexibilidade necessária para permitir novas práticas. No terceiro, falta a disciplina jurídica apropriada para permitir que os Estados e seus agentes possam lidar de maneira mais natural e segura com os riscos inerentes à inovação, especialmente nos casos de insucesso. O sistema de controle da administração amedronta o administrador público de boa-fé e o desencoraja na prática inovadora, punindo severamente qualquer tipo de insucesso.

O Direito Administrativo — assim como o Direito em geral — revela-se incapaz de acompanhar a dinâmica social e encontrar respostas efetivas para os desafios da administração pública contemporânea. Por isso a importância de se criar mecanismos e instrumentos que permitam a abertura para inovações no exercício das funções administrativas do Estado, nos mais diversos campos de atuação, especialmente na gestão pública, organização administrativa, compras governamentais, serviços públicos etc, que desafiem ao menos as principais barreiras à inovação apontadas acima, ainda que tal abertura tenha que ocorrer de maneira experimental. O importante é garantir o ambiental adequado e seguro para a inovação no exercício das funções administrativas de Estado, adotado como valor a ser perseguido nesta nova era da Administração Pública.

Além de quebrar barreiras próprias do Direito Administrativo, é necessário criar novos instrumentos que tragam para o regime administrativo a capacidade de inovar na forma de agir do Estado, tendo como diretriz o alcance das finalidades públicas. Nesse sentido, é necessário criar regras, parâmetros e diretrizes para a prática da inovação, a fim de evitar que, sob o pretexto da prática da inovação, seja conferida “carta branca” para o improviso ou para o descumprimento das regras jurídicas. É preciso encontrar o ponto de equilíbrio entre a abertura à inovação e a estabilidade da atuação estatal, respeitados certos limites. Trata-se de um novo regime jurídico, próprio para a inovação, com instrumentos e procedimentos próprios.

Por uma questão de ordem, para reformar o Estado, é preciso primeiro promover a configuração jurídica do Estado inovador, proporcionando instrumentos que são capazes de conferir a flexibilização necessária, dentro de limites, para permitir a inovação constante e dinâmica do modo de agir da administração frente às mutações cada vez mais dinâmicas e constantes do mundo contemporâneo. O Estado deve poder experimentar novas práticas, sem que seus agentes sejam punidos pelo eventual insucesso e dentro de certa margem de risco inerente à inovação. Trata-se de uma verdadeira construção jurídica do Estado inovador, ainda ausente entre nós. Uma tarefa ainda em aberto no Direito brasileiro, sem a qual se torna praticamente inócuo se falar em Reforma do Estado no Brasil.


[1] Lembre-se que esta não é a primeira vez na atual Constituição que se pretende promover uma reforma na administração pública brasileira. Há exatos vinte anos, o Brasil anunciava o Plano Diretor da Reforma do Estado, aprovado em 21/09/1995.

[2] A reforma anunciada terá ainda como missão a revisão da estrutura organizacional do Poder Executivo; a eliminação de sobreposição de competências; e o aprimoramento dos instrumentos de governança, transparência e controle.

Autores

  • é advogado e Diretor Executivo do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE).

  • é cientista político pela Universidade Federal de Pernambuco e mestrando em políticas públicas pela Harvard Kennedy School of Government. Atuou na Iniciativa de Cidades Emergentes e Sustentáveis do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Organização dos Estados Americanos e Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!