Senso Incomum

Juiz arbitrário prende gerente e quem paga a conta é a choldra?

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15 de janeiro de 2015, 7h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]História I
Desde 1495 (Henrique VII) que existe a ficção dos dois corpos do rei. Na verdade, isso vem de mais longe, havendo controvérsia acerca dessa ficta divisão. Poderia falar de Alta Renascença. E de Dante Alighieri, que antecipa em 300 anos a modernidade de Hobbes. Ou no case Calvin, julgado por Sir Edward Coke em 1609. Ou ainda na peça Ricardo II, de Shakespeare, em que essa questão aparece claramente. Foi um jeito que o inicio da modernidade — na virada do medioevo — encontrou para resolver o problema do corpo natural do rei e sua “divindade” (ou seu corpo imaterial). Não dá para explicar aqui. E nem vem ao caso. Em outra coluna farei isso amiúde, mormente porque estou preparando um livro sobre essa importante e complexa questão da qual já falo de há muito e já deixei explicitado no livro O que é isto – decido conforme minha consciência?.

O que importa aqui é contar duas histórias. A primeira diz respeito aquando o Parlamento inglês recorreu a essa ficção (1642) para conjurar, em nome e por meio da autoridade de Carlos I (corpo político-divino-imaterial do Rei), os exércitos que iriam combater o mesmo Carlos I (corpo natural e material do Rei).

Fantástico, não? Por intermédio da Declaração dos Lordes e Comuns, o corpo político do Rei era retido no e pelo Parlamento, enquanto o corpo natural era colocado “no gelo”.  Isto porque o Rei é a fonte da justiça e da proteção, mas os Atos de Justiça e proteção não são exercidos em sua própria pessoa, nem dependem de seu desejo, mas por meio de suas Cortes e seus Ministros que devem cumprir seu dever nesse sentido.[1]

Sou apaixonado por essa temática. E tenho sido pioneiro nessa discussão a partir da hermenêutica e da construção de uma teoria da decisão. Ou seja, tenho referido à saciedade que não me importam as opiniões pessoais dos juízes e dos tribunais sobre os temas que julgam. Eles devem julgar segundo o direito, cujo conceito aqui já delineei também ad nauseam. Por isso trouxe à baila esse exemplo de Carlos I. Não se confundiam, ali, os seus dois corpos. Ou seja, não misturavam os assuntos da pessoa do Rei e (e com os) da Coroa. Bingo. Binguíssimo!

História II
Salto mais de 700 anos e chego ao Rio Grande do Sul, para o ano de 2005.  Em um bucólico dia de julho, o juiz da comarca de Lavras do Sul   fez um furdúncio[2] na pequena cidade, movimentando um delegado de polícia, vários policiais militares e dois oficiais de justiça para, na agência bancária do Banco do Brasil, prender em flagrante o gerente (ver aqui). O referido juiz estava inconformado com o que ocorrera com a sua conta-corrente no BB. Quitado seus débitos, exasperou-se porque demorava a baixa na restrição creditícia ao seu nome nos registros do Serasa. Sim, ao que consta, Sua Excelência tinha ido parar no Serasa. E, como sabemos, o Serasa é rápido para lançar o nome da pessoa na lista obscura e lentíssimo para de lá sacar o nome do utente (esse lentíssimo Serasa; muito lento mesmo). Disso sabemos todos. Particularmente, odeio o Serasa. Mas, isso não vem ao causo.

O que importa é que o juiz agiu em causa própria, indo ao Banco para resolver a coisa na marra. E prendeu o pobre do gerente, que parece que não tinha nada a ver com o peixe (embora saibamos todos que gerentes de bancos costumam tirar uma onda com os utentes… Mas deixa prá lá; parece que, no caso, a culpa era mesmo do Serasa, órgão a quem os bancos e o próprio governo delega o poder de sacanear os que não pagam suas contas, privatizando punições desproporcionais). 
Como só havia um juiz na Comarca e, no caso, o próprio era o condutor do aprisionado gerente em flagrante, o caso foi passado, então, para a juíza  de uma bucólica comarca vizinha, que  homologou a prisão em flagrante, mas concedeu ao gerente a liberdade provisória, afinal obtida só às 2 horas da madrugada seguinte.

Foi mal o judiciário. O gerente mofou horas no ergástulo municipal da vizinha cidade. Poucas semanas depois, inverteram-se as posições: o Ministério Público estadual denunciou o juiz, que foi condenado pelo Órgão Especial do TJ-RS pelo crime de abuso de autoridade a quatro meses de prisão, pena afinal substituída por prestação pecuniária (50 salários mínimos). O magistrado foi também compulsoriamente removido para outra Comarca. Palmas para todos. Ministério Público e Órgão especial jogaram certinho.

Na sequência — como era de seu direito — o juiz ingressou com recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça contra a condenação criminal. O recurso “subiu” em 24 de junho de 2008 e o mérito não chegou a ser julgado. Isto porque em 2 de setembro de 2013 (ups – 5 anos depois), foi declarada a prescrição da ação penal. Essa-lentíssima justiça e esse-lentíssimo judiciário deixaram prescrever a ação penal contra o Excelentíssimo magistrado!

Por outro lado, houve uma ação civil de reparação intentada pelo gerente aprisionado ilegalmente. A juíza da 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre reconheceu "a abusividade e a falta de razoabilidade do réu em utilizar medida coercitiva penal para resolver questão eminentemente cível" e condenou o juiz a indenizar com o valor nominal de R$ 80 mil o bancário-gerente do Banco de Pindorama.

Até aqui, tudo bem. Ocorre que a apelação teve seu julgamento iniciado dia 18 de dezembro de 2014 e, ao votar, o desembargador relator proveu a apelação do juiz para impor apenas ao Estado (a Viúva pampeana) a condenação financeira pelo ilícito civil.  O eminente desembargador entendeu que o juiz agira na condição de agente do Estado e não em nome próprio.

Simplificando o voto do relator: a patuleia gaúcha é que deve arcar com as diatribes do juiz. O ervanário do combalido Estado, no entender do eminente relator, é que deve ser responsabilizado. O desembargador que votaria na sequencia pediu vista. A ação tramita, a passos de cágado, desde 2006 no judiciário gauche. Vamos esperar os próximos passos. E já que estou falando no medioevo, alea jacta est.

E o que Sua Majestade, Carlos I, tem a ver com o juiz gaúcho?

A resposta é simples: Tudo a ver, é claro, embora passados mais de 700 anos. E parece que não aprendemos nada nestes séculos. Enquanto os ingleses já sabiam que não dava para misturar os anzóis, por aqui parece que é bem normal que o juiz tenha um corpo só. Afinal, é por isso que a maioria acha que decide conforme o seu posicionamento pessoal, a sua consciência e não conforme o que diz o direito.

Ou seja, o juiz, conforme reconheceu o TJ-RS,  cometeu abuso de autoridade ao resolver na marra um problema pessoal junto ao Banco do Brasil. Só que, todavia,  no entender do desembargador relator, o magistrado agiu em nome do Estado e não em seu nome próprio, pessoal, isto é, de alguém-com-raiva-porque-seu-nome demorava a sair do Serasa. O que o Estado gauche teria a ver com o Serasa?

A pergunta é: Como assim, Excelência? Fosse verdadeira a tese da relatoria, o juiz — ele mesmo — poderia (deveria) ter homologado o próprio flagrante que decretara. Simples assim. Afinal, segundo o voto, ele estava ali como juiz e não como o ex-devedor-irado.

Lembremos do que disseram as Cortes no longínquo ano de 1642, na Inglaterra, sobre o agir do Rei: os atos de justiça não são exercidos em sua própria pessoa e nem dependem de seu desejo.  Mesmo que a pessoa do Rei pense o contrário, o que vale mesmo é o que deve decidir a Sua Majestade Real. Caso contrário, o Reino estaria refém das idiossincrasias da pessoa… Qualquer semelhança é mera coincidência…ou não.

And I rest my case, your Magisty!  E quem escreveu esta coluna, creiam — e durante 28 anos de carreira de Ministério Público nunca confundi meus dois corpos —, não foi o meu corpo pessoal; quem escreveu e se responsabiliza pelo texto é o professor e acadêmico!  É o que poderia ser chamado, parafraseando o famoso livro de E. Kantorowicz, de The Lenio’s Two Bodies!


[1] Ver, para tanto, MCIlwain, C.H. The High Court os Parliament and its Supremacy, 1920, pp.389 e segs.; tb E.H. Kantorowicz. The King’s Two Bodies. Princity University Press, 1957, primeira parte.

[2] O estagiário levanta a placa: furdúncio quer dizer confusão, atrabilhamento, colocar os pés pelas mãos…

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