Opinião

Juiz brasileiro ainda não sabe o que fazer com a Justiça Restaurativa

Autor

  • Pedro Scuro Neto

    é sociólogo MSocSc (Praga) e PhD (Leeds) diretor da Sociedade Internacional de Criminologia e do International Forum on Crime and Criminal Law in the Global Era autor de Sociologia Geral e Jurídica (oitava edição A Era do Direito Cativo 2019) e Direito do Conflito (2021) todos pela Saraiva.

4 de dezembro de 2015, 8h29

Dezessete anos depois de a Justiça Restaurativa ter sido proposta como elemento de política de educação, justiça e segurança pública,[1] os juízes brasileiros ainda não sabem o que fazer com ela.

Enquanto isso, a Austrália, apesar de ter sido um dos primeiros países a adotar políticas criminais do tipo norte-americano — legislação prevendo prisão obrigatória para certas infrações, “toque de recolher” em lugares e períodos determinados para indivíduos e comunidades, expansão de sistemas prisionais e correcionais com medidas como prisão domiciliar e depósitos de prisioneiros do tipo “Gulag” ou “Carandiru” — na prática as repeliu ao implementar medidas de objetivos específicos:

(1) reduzir a reincidência aumentando a perspectiva de emprego e renda;

(2) diminuir riscos de consumo de álcool e drogas;

(3) promover justiça restaurativa e parcerias para reintegrar infratores nas comunidades.

A experiência australiana se desenvolveu afirmando que o impacto da “Justiça de exclusão” pode ser efetivamente abrandado, fundamentalmente no que diz respeito ao consumo ilegal de drogas, ao qual as autoridades aplicaram abordagem bem diferente da perspectiva militarista empregada nos Estados Unidos, que, concebe uma “ameaça” e simultaneamente a identifica com “fontes de risco” como produtores de drogas estrangeiros, traficantes internacionais em países de democracia fracassada, drogas perigosas cujas propriedades “escravizam”, “monstros” (geralmente negros e latino-americanos) que comercializam e usam o produto — no Brasil, um promotor de Justiça os chama de "faunos".

Tudo para compor uma agenda com objetivos moralizantes e militaristas. O resultado é exclusão pela via das armas, com destruição ou neutralização dos identificados com fontes de risco que representam o “mal”.

As diferenças entre as duas abordagens são de ênfase.

A Justiça americana prioriza técnicas para enfrentar (e eliminar) riscos específicos associados à composição de substâncias perigosas e a categorias ou tipos de pessoas. Caso da metadona, droga sintética que até meados dos anos 1980 era usada para tratamento de opiácios, transformou-se em problema de contenção de dependentes assim que o sistema de justiça criminal colocou reabilitação em segundo plano em relação à remoção da “escória”.

No caso australiano, por outro lado, conceberam-se estratégias com objetivos de longo prazo, focadas em modos operacionais de minimização dos riscos de saúde, corrupção, propriedade, produtividade, etc., criados pelos contextos e modos de fabricação, fornecimento, consumo e difusão das drogas. A ação do sistema de justiça é mínima, mediatizada por tecnologias e programas com os objetivos específicos acima elencados.

Expedientes que permitiram a Austrália refrear o crescimento de seus índices de encarceramento, ao passo que no Brasil, cujas taxas já foram menores que as australianas, com o recrudescimento das fórmulas políticas e econômicas neoliberais, praticamente quadruplicaram.

Austrália e Brasil, índices de encarceramento/100 mil, 1992 a 2014:

Austrália Brasil
Ano Índice Ano Índice
1992 89 1992 74
1995 96 1995 92
1998 107 1997 102
2001 116 2001 133
2004 120 2004 183
2007 129 2007 220
2011 129 2011 260
2014 143 2014 278

Fonte: International Centre for Prison Studies, University of Essex

Desde 1998, ano de introdução do conceito de Justiça Restaurativa no Brasil por uma de minhas equipes de pesquisadores, nosso país vem perdendo seguidas oportunidades de aproveitar a experiência de países com indicadores socioeconômicos e penais relativamente parecidos, como a Austrália.

Vem descartando, ademais, o fato de a Constituição Federal “reconhecer e integrar, ao menos do ponto de vista normativo, bem como no âmbito jurisprudencial”, vários princípios que inspiram a luta pelas demandas e interesses de segmentos sociais desfavorecidos.

Isso não bastasse, outra dificuldade conspira contra a efetiva busca de uma solução: Direito e Justiça frequentemente são encarados como um todo disfuncional a exigir terapias abrangentes e remédios radicais.

Formam uma totalidade afligida por múltiplas “crises”, que têm início no plano socioeconômico, afetam a matriz organizacional do Estado, que, incapaz de absorver interesses conflitantes, perde estabilidade e sobrecarrega e compromete as instituições jurídico-econômicas.

Ironicamente, essa mesma visão totalizante não consegue encarar a própria Justiça como um sistema, reconhecendo unicamente o Judiciário, por sua vez reduzido às funções e pontos de vista dos magistrados.

Da convergência dessas dificuldades resulta a questão, de ordem empírica, que diz respeito à experiência concreta de projetos e técnicas aplicados, não com sentido vago de “humano”, “esclarecido”, “democrático”, mas porque se submetem a avaliação e comprovam sua eficácia. Caso exemplar da justiça restaurativa, implementada com sucesso na Austrália e introduzida no Brasil para identificar mecanismos efetivos de prevenção da violência em escolas públicas, incorporando “câmaras restaurativas” na resolução de conflitos.

Curiosamente, encampada pelo Ministério da Justiça, na esperança de ser uma disjunção exclusiva em relação ao “sistema de justiça criminal” atormentado por uma “crise de legitimidade”, mesmo tendo sua eficácia sobejamente corroborada em três projetos-piloto, foi descartada pelos bacharéis por não ser “alternativa para a justiça tradicional, mas um mero complemento”.

Entrementes, como vimos, na Austrália a justiça restaurativa segue sendo uma das principais medidas de objetivos específicos para reduzir reincidência, diminuir riscos e reintegrar infratores.


[1] Pedro Scuro Neto (2008). O enigma da esfinge. Uma década de Justiça Restaurativa no Brasil. Revista IOB de Direito Penal e Processo Penal. vol. 8, n° 48, pp.163-184. Disponível em www.researchgate.net e www.academia.edu  

Autores

  • é diretor da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris); Coordenador Nacional de Segurança e Desenvolvimento Social da Fundação Republicana Brasileira (Brasília); Revisor do Programa de Segurança e Defesa da Transparência Internacional (Londres). Iniciador da Justiça Restaurativa no Brasil e na América Latina.

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