Crise histórica

Constituição é o único e válido escoadouro da exaustão do povo com o governo

Autor

  • Carlos Ayres Britto

    é ex-presidente do Supremo Tribunal Federal do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral. É doutor em Direito Público pela PUC de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

15 de agosto de 2015, 12h38

Não dá para cobrir o sol com a peneira. É de crise a quadra histórica brasileira. Crise, no coloquial sentido de temerário estado factual de coisas. O diagnóstico é de acentuada perda de densidade nas expectativas sociais de alcance dos “objetivos fundamentais” que a própria Constituição estabeleceu para o país. Dentre eles, o de “garantir o desenvolvimento nacional” em bases sustentáveis ou retroalimentadas, porque somente assim é que também se consegue: 1) “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”; 2) resguardar “a soberania nacional” como centrado princípio da “ordem econômica”. Depois disso, uma crise tradutora de renitente e até mesmo capilarizada ofensa ao princípio igualmente constitucional da “moralidade” administrativa. Por fim, crise reveladora de distanciamento de mais uma norma-princípio de matriz constitucional: a norma da “eficiência” na chefia da Administração Pública da União (ver, especialmente, os artigos 3º e 170 da Magna Carta Federal). Com suas danosas projeções no plano da chefia do governo e do Estado, e daí para o mercado como um todo.

Esse é o lado ruim das coisas. O sufoco em que se encontra o país. Sufoco ou lado ruim que tem uma causa imediata: o Poder Executivo e o Congresso Nacional, nessa ordem. Que são as instituições que a Lei Maior estrutura e funcionaliza para lidar o tempo inteiro com os interesses gerais do povo. Para governar a sociedade civil. O Congresso, legislativamente; o Poder Executivo, mediante políticas públicas, decretos e regulamentos para a fiel execução das leis. Ambos os poderes, porém, submetidos com imediatidade à própria Constituição Federal. Essa mesma Constituição que hipotetiza a possibilidade de disfunções no âmbito de tais instituições de governo, e por isso mesmo é que centralmente estrutura e funcionaliza uma outra tipologia de instituições públicas: a tipologia das instituições que não governam, mas impedem o desgoverno. Que são o Poder Judiciário, o Ministério Público, os tribunais de contas e a Polícia (polícia investigativa ou judiciária, entenda-se).

É o lado bom da história. Esse outro bloco de instituições vem funcionando a plenos pulmões. Concebido para não entrar jamais em disfunções, tem dado conta do recado. Sabe que não pode deixar descarrilar o trem do Estado, pena de a própria Constituição entrar em mortal ataque do coração. O que forçaria a nação a fazer uso do poder normativo que lhe é exclusivo: o poder constituinte. Que já é o poder de zerar a contabilidade jurídica vigorante para então deflagrar a epopeia do começar tudo de novo, também juridicamente falando. 

Onde quero chegar com esse tipo de juízo? Que o segundo bloco de instituições públicas não está em crise. Não experimenta descrédito popular. Não sofre a pesada acusação de aparelhamento do Estado, no sentido da substituição do sistema de mérito pelo do fisiologismo no provimento dos cargos em comissão. Bem ao contrário, esse outro bloco institucional atesta que a Lei Maior do país ainda governa quem governa. Governa permanentemente quem governa transitoriamente. Até porque a própria sociedade civil também está a vitalizar a Constituição por dois comprovados modos: 1) ativação da cidadania, ora por manifestações de rua, ora pelos aplicativos todos da internet, com ênfase nas redes sociais; 2) por uma imprensa plenamente livre. Antídotos que se somam ao segundo grupo de instituições públicas, justamente, na referida área de correção dos rumos do primeiro bloco. As coisas se equilibram.

Concluo: que as instituições impeditivas do desgoverno persistam na sua faina fidedignamente constitucional. Que a sociedade civil também persista no seu poder de vocalizar sua insatisfação com os órgãos e agentes governativos, com foco no desempenho da presidente da República (única detentora da tríplice chefia da Administração, do Governo e do Estado). Que tais órgãos de governo entendam que não é favor, mas dever, ouvir as queixas e até as propostas da sociedade civil quanto a uma nova agenda de condução dos destinos do país. Afinal, a cidadania é o segundo fundamento da República Federativa do Brasil (inciso II do artigo 1º da Constituição), assim como a imprensa, nos termos da ementa do acórdão proferido pelo STF na ADPF 130, é titular do direito-poder de criticar os atos de governo e oferecer à sociedade mesma uma versão das coisas em desconformidade com aquela de caráter estatal, chapa-branca. Que eventual exaustão da paciência do povo com as instituições propriamente governativas encontre na Constituição mesma o seu único e válido escoadouro, pois o cumprimento irrestrito da Magna Carta é penhor de segurança jurídica máxima. Radicalidade sem a qual a gente sabe como as irresignações começam, mas não sabe como terminam. A hora é de fazer destino, e nessas horas é preciso evitar uma trajetória saci. Emoção e razão têm que se conciliar para o partejamento desse mais saudável rebento que atende pelo nome de consciência. A consciência individual, a conduzir cada pessoa natural para o seu ponto de centralidade. A consciência coletiva, a impedir que se esgarce o tecido da coesão social. 

Autores

  • é ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral. É doutor em Direito Público pela PUC de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas

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