Beca de criminalista

Márcio Thomaz Bastos envelheceu fazendo da beca sua roupa sagrada

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21 de novembro de 2014, 14h24

Leio o francês razoavelmente bem, dos tempos de colégio. Soube outro dia de Victor Hugo. Todos sabem dele, uns mais, outros menos. O autor de Os miseráveis foi brilhante político, escritor primoroso, conselheiro respeitado e adorado pelo povo. Seu velório, segundo consta, foi feito sob os quadrantes da Torre Eiffel, constituindo o monumento, ainda hoje e para o futuro, um dos marcos mais importantes da cultura mundial. O povo todo de Paris desfilou ali, sem exceção de milhares de pobres, cada qual se achando individualizado na obra sublime do escritor.

Acontece isso às vezes aos idos. Nelson Mandela teve comemorações mortuárias grandiosas. Gandhi, o Mahatma, recebeu honrarias análogas. O velório de Juscelino Kubitschek foi concorridíssimo. Márcio Thomaz Bastos, em vida e morto, recebe hoje notícia em caixa alta no jornal O Estado de S. Paulo, fato difícil de acontecer, espraiando-se o noticiário em todos os meios de comunicação. De certo tempo a esta data, a imprensa inova os obituários: afirma que “o corpo será velado”, fazendo distinção entre o espírito e o invólucro. Assim deve ser, prevalecendo sempre o enorme e nunca descoberto mistério envolvendo a partida final.

Márcio Thomaz Bastos, insista-se, foi-se no dia 20 de novembro deste 2014. É de 1935. Tinha a mesma idade do escriba. Veio de Cruzeiro (SP), aqui perto, filho de Diogo Bastos, político regional e médico influente na região. Os criminalistas, quando cuidam de alguém vindo de fora, chamam-no de “oriundo”. Existem os nascidos em São Paulo, mas são raros. Waldir Troncoso Peres era de Vargem Grande Paulista. Dante Delmanto tinha família em Botucatu. Saulo Ramos, também ministro e advogado, caminhou de Brodowski, cidade de Portinari, ao Ministério da Justiça. Chegaram, viram e venceram, uns embarcando na política, outros especializando-se no aconselhamento aos aspirantes a dirigentes. Governante que se preza tem bom criminalista atrás de si. Thomaz Bastos acompanhou o metalúrgico desde os primórdios da intromissão de Lula no contexto da nação brasileira, sempre presente, diga-se de passagem, não sendo importante, aqui, o ajuntamento de suas qualidades. Não se fale dos defeitos. A imprensa já cuidou do bom e do mau. Deve-se dizer, no meio de tudo, que Thomaz Bastos envelheceu na plenitude do revestimento da velha beca de criminalista, fazendo uso daquela roupa sagrada até a antevéspera de sua morte. Ficou doente. Cuidou-se, com a discrição possível, mas nesta metrópole ululante não há segredo bem guardado. Cedo ou tarde, a grande senhora anuncia sua visita.

Márcio não era homem de escrever. Deixava a tarefa a outros. Falava muito bem, com alguns ademanes relembrando mestres que o haviam introduzido na tribuna do júri. Tinha hábitos curiosos: quando em público, vigiava metade da circunferência, olhos saltitando para não perderem o cenário.

Teve velório de príncipe. A advocacia esteve presente no salão maior da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. A presidente da República não faltou. Ligava-os, seguramente, o aconselhamento do sabido advogado, enlaçando-se os circunstantes na sombra de Luiz Inácio, chegante também para as últimas homenagens. Enfim, aconteceu.

Sobram pouquíssimos contemporâneos, principalmente na advocacia criminal. Dizem que somos feitos só de passado. Dentro do contexto, é preciso relembrar que fomos amigos, não muito, mas nossas mulheres se davam bem. Andamos juntos na Bahia de Dorival Caymmi, perambulando pela cidade baixa e visitando uma vidente, por curiosidade é certo, pois   quem vai àquele segmento da brasilidade e não vê mãe de santo, lá não foi. Havia uma adivinha chamada “Mamãe Lourdes”. À porta da casinhola, uma placa rústica: “Interpreta o passado, analisa o presente, adivinha o futuro. Consultas a domicílio”. Fomos lá, os dois casais. A pitonisa se impressionou com Márcio. Deu-lhe um murro no peito e disse: “– Ocê vai sê juiz, ocê vai sê juiz”. Depois daquilo, mãe Lourdes quis me vender um São Jorge de argila. Não teve êxito porque, no fim das contas, não dizia nada sobre mim. Lembro também que fomos a Arembepe. O caminho era rochoso e difícil. Conhecemos um hippie. Este, segundo afirmava, fazia os colares de Bethânia. Morava numa palhoça limpinha, portas feitas de sacos de aniagem muito alva volteando ao vento. Lembrei de Fagner (Paletó de linho branco que até o mês passado, lá no campo ainda era flor). O rapaz morava com um cachorrinho chamado “Brilho”. De manhã, o banho de rio, num dos lados da praia. À tardinha umas braçadas no mar, também muito próximo. Coqueiros à vontade. Um bambu comprido servia a quem tivesse sede.

Depois daquilo o tempo passou, as estradas da vida se diversificaram, elas e as vicinais. Fazia anos eu não via a “Nô”. Êta mulher valente, como todas as que nos suportam nesses desvarios dos tribunos, estes mais conhecidos, aqueles mordiscando o pão de cada dia, mas sempre as heroínas a nos servirem o repouso de um colo quando voltamos derrotados numa batalha qualquer. Vi a fotos de “Nô’ naquele vetusto diário que leio todas as manhãs. A presidente lhe segura as mãos, num meio sorriso. Deve acarinhá-las, sim, porque não há advogado criminal que viva em solidão, não dividindo em casa os desafios trazidos no combate ao Minotauro. Quanto a este velho escriba, um Matusalém na sobrevivência, o casal Thomaz Bastos está sempre presente. Aquilo foi importante, quando aconteceu. Tocante a Márcio, “Mamãe Lourdes” tinha alguma dose de razão: anteviu um juiz e não viu o ministro. Resta a preocupação com algum pretendente a colocar o nome de Márcio num presídio qualquer. Jurista não pode virar frontispício de penitenciária. Apesar das advertências, já fizeram isso com alguns. Maldita ideia. Deem-lhe o codinome de uma praça, se alguma sobrar nos arredores. Não aviltem a memória do morto, nem mesmo em Catanduvas. La nave va.

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