Passado a Limpo

A impossibilidade de concessão de honras militares para civis em 1912

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

5 de junho de 2014, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy - 21/11/2013 [Spacca]Em 1912 o ministro da Marinha encaminhou Aviso que foi apreciado pelo Consultor-Geral da República, a propósito da possibilidade (ou não) de concessão de postos e hierarquias militares para civil. Um oficial de secretaria da Escola Naval pretendia (ainda que civil) deter honras militares, isto é, pretendia possuir postos na hierarquia do Exército ou da Marinha. Invocava conjunto de leis que garantiam algum direito adquirido ao deferimento da pretensão, dado que teria havia regulamentação garantindo honras militares a funcionários civis.

Sá Vianna, que respondia pela Consultoria-Geral da República, insistia que honras militares somente seriam devidas a servidores civis nas hipóteses de retribuição de serviços de guerra ou em eventual necessidade de manutenção de ordem disciplinar.

A tese foi mantida. O Consultor-Geral avaliou todos os regulamentos que se sobrepunham, para concluir pela impossibilidade jurídica da pretensão. A questão ilustra as relações entre civis e militares, em ambiente efetivamente militar, com solução desenhada e acatada, por parte de um civil. Segue o parecer.

Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1912.

Exmo. Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Marinha.

Tenho a honra de apresentar a V.Exa. o parecer requisitado por Aviso n. 536, de 17 de agosto, sobre o requerimento do Sr. Paulo de Saldanha da Gama, 2º oficial da Secretaria da Escola Naval. Sou dos que pensam que as honras militares não devem ser concedidas a civis, senão em dos casos: 1º, retribuição de serviços de guerra, devidamente reconhecidos; 2º, necessidade de ordem disciplinar nos Departamentos de Marinha e Guerra. A vitaliciedade no primeiro caso é indiscutível, e a temporariedade no segundo se impõe, devendo essas honras ter a duração das funções do empregado civil em repartição militar. Isso está dito no Decreto n. 2.532, de 23 de junho de 1897, quando, considerando que tais honras só em razão do emprego lhes são inerentes, manda confirmar por carta patente as honras dos postos que competirem aos funcionários civis do Ministério da Marinha, quando vitalícios, em virtude dos respectivos regulamentos. Isso está repetido no art. 239 do Regulamento da Escola Naval, mandado executar pelo Decreto n. 3.652, de 2 de maio de 1900, e no art. 79 do Regulamento para a Diretoria Geral de Contabilidade da Marinha, mandado executar pelo Decreto n. 6.508, de II de junho de 1907.

A solução do caso que se estuda, por analogia, como pretende o suplicante, é impraticável. Firmado este princípio, examinarei a espécie sobre a qual versa a consulta.

O Decreto de 27 de abril de 1893 (não incluído na coleção das leis, decretos e atos do Governo, mas constante do Diário Oficial, de 6 de maio desse ano) dispôs que “fossem considerados inerentes aos cargos do pessoal da Secretaria da Escola Naval as honras militares de Capitão-Tenente ao Secretário, de 1º Tenente ao 1º oficial Bibliotecário, de 2º Tenente ao 2º oficial Arquivista, de Guarda Marinha ao amanuense”.

O art. 239 do Regulamento desse estabelecimento, aprovado pelo Decreto nº 3.652, de 2 de maio de 1900, repete a concessão dessas honras, dando mais ao Subsecretário as de 1º Tenente.

O art. 385 do Regulamento da mesma Escola, aprovado pelo Decreto nº 6.345, de 31 de janeiro de 1907, dispõe: “O Subsecretário, os atuais 1º e 2º oficiais e amanuenses conservarão os direitos adquiridos, tendo, enquanto servirem, as honras, os dos primeiros de Capitães-Tenentes, o terceiro de 1º Tenente e os amanuenses as de Guarda-Marinha”.

Como V.Exa. vê, desde 1893 até a promulgação deste decreto, a concessão de honras militares aos funcionários civis da Secretaria da Escola Naval foi mantida.

Este decreto, garantindo direitos adquiridos de determinados funcionários, pôs termo, intencionalmente, ao regime de concessão de honras militares às pessoas que de futuro exercessem os cargos indicados no citado artigo?

Acredito que sim, e para isso concorrem diversas razões: 1ª, pelo art. 350 ficou estabelecido que os “lugares de Subsecretário, 1º e 2º oficiais e Amanuenses fossem providos por oficiais reformados da Armada e das classes anexas”, conseguintemente a necessidade da concessão de honras por motivo de disciplina perdia a razão de ser; 2ª, se o regime continuasse, não haveria necessidade de garantir direitos. O fato do art. 385 dizer o que nele se acha significa, de modo bem claro, que essas honras cessavam, respeitadas as que tinham sido conferidas aos que exerciam os cargos, enquanto servissem; 3ª, o Regulamento que baixou com o Decreto número 7.886, de 10 de março de 1910, manteve, no art. 310, o disposto no art. 350 do Regulamento anterior, consequentemente estava, pelo princípio da exclusão; mas o art. 300 do Regulamento atual aprovado pelo Decreto nº 8.650, de 4 de abril de 1911, manda prover “o cargo de 2º oficial por pessoa idônea, a juízo do Ministro da Marinha, sem que nesse Regulamento sejam restabelecidas as honras aos funcionários civis”.

Se a lei posterior revoga a anterior, o Regulamento de 1910 revogou toda a legislação de 1893 a 1900, que citamos, e assim os funcionários civis da Escola Naval não gozam de honras militares enquanto uma nova lei não vier restabelecê-las. Seria impossível atribuir à lei uma aplicação intermitente, maxime quando essa lei é uma disposição regulamentar.

Não duvido aceitar como verdadeira a alegação do suplicante, quando invoca a Resolução Presidencial de fevereiro do corrente ano, tomada sobre consulta do Supremo Tribunal Militar, mas vejo, com grande certeza, que ai se trata não da Secretaria da Escola Naval, mas da Secretaria de Estado do Ministério da Marinha, submetida a um regulamento especial, diverso do desse instituto de ensino, que talvez não tenha em sua organização os tropeços, incongruências e dificuldades dos que têm sido ditados àquela.

Quanto ao Aviso n. 1609, de 8 de maio deste ano, escapa à minha competência conhecê-lo, não é objeto da consulta e não tenho por isso de examiná-lo diante do Regulamento das Escolas de Aprendizes Marinheiros.

Este é o meu parecer.

Apresento a V.Exa. os protestos da mais alta consideração.

– Dr. M. A. de S. Sá Vianna.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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