Transparência legal

Sigilo fiscal: crônica de uma morte anunciada

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13 de junho de 2013, 10h18

Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no NEF/Direito GV. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

O senhor “K”, servidor público e auditor fiscal de carreira exemplar, sempre entendeu que a operação “X” não era passível de tributação pelo ICMS. A empresa “S” que realizou nos últimos cinco anos a operação “X”, apoiada por consultores sérios e bem intencionados, também sempre entendeu que a operação “X” não era tributada pelo ICMS. Contudo, em face do “sigilo fiscal”, a empresa “S” não detinha acesso à informação sobre os critérios normativos do auditor “K” na aplicação do direito para as operações “X”, realizadas também por outras empresas do mesmo ramo.

Após mudança de governo, foi nomeado novo secretário de Fazenda, cargo de confiança do novo governador comprometido em aumentar a arrecadação para o estado. Tal secretário de Fazenda dá-se conta de que, mediante pequena alteração do tradicional entendimento sobre a mesma legislação tributária, pode passar a tributar as operações “X”, obtendo com essa mudança interpretativa, o incremento de R$ 1 bilhão, suficientes para a construção de 10 mil casas populares, atendendo às promessas eleitorais do governador em reduzir o déficit habitacional no estado. Atendendo ao pedido do senhor secretário que também o nomeou, o senhor delegado regional emite mandado de procedimento fiscal para que o agente “K” audite a empresa “S” sob suspeita de que não tem pago ICMS nas operações “X”, em conformidade com a nova interpretação jurídica proposta pelo senhor secretário.

O auditor fiscal “K” tem convicção pessoal e profissional de que as operações “X” não são tributáveis pelo ICMS, contudo reconhece que a tese divergente é também plausível e que numa interpretação sistemática da legislação tributária, as operações “X” poderiam sim ser tributadas pelo ICMS. Eis o paradoxo do senhor auditor “K”: seguir suas convicções pessoais e sua coerência histórica ou atender à nova interpretação plausível sobre a mesma legislação. O auditor “K”, consultando a lei abstrata (Constituição, LC 87 e RICMS), percebe que pode fundamentar tanto a tributação como a não tributação da operação “X”. Além disso, consulta os melhores livros e manuais sobre o tema, mas dada a concretude e especificidade da operação “X”, não encontra nenhuma solução satisfatória. Que interpretação seguir? Eis o que denominamos de “mal estar” do auditor fiscal: continuar coerente com suas decisões passadas, firmadas em anos de experiência, ou aderir à nova tese proposta pela autoridade superior (também bem intencionada e alinhada com o propósito maior e de “interesse público” de conciliar a interpretação do direito à construção de 10 mil moradias populares)?

Eis o dilema do agente fiscal: a) se não lavrar o auto de infração para os últimos cinco anos, ocorrerá a decadência e poderá ficar sujeito a responsabilidade funcional por omissão de receita; b) se lavrar o auto de infração, estará indo contra sua histórica coerência interpretativa sobre a não tributação das operações “X”, alterando a legalidade prática e, de alguma forma, frustrando a expectativa normativa da empresa “S” de não ser tributada nas operações “X”.

É para atender a esse jogo de interesses que se presta, funcionalmente, o vago e ambíguo conceito de “sigilo fiscal”. Mas a quem de fato serve o “sigilo fiscal”? Trata-se de conceito funcional: 1) o “sigilo fiscal” se presta a ocultar que o entendimento histórico da fiscalização foi no sentido de não tributar a operação “X”; 2) o sigilo fiscal protege o agente fiscal “K” do constrangimento e da pressão social de justificar seu novo entendimento sem qualquer alteração institucional da legislação tributária; 3) o sigilo fiscal das autuações dá mais importância e destaque à atuação dos tribunais administrativos paritários de segunda instância delegatários da solução do caso; 4) o sigilo fiscal possibilita que o senhor secretário de Fazenda atenda às demandas do governador; 5) o sigilo fiscal cria a possibilidade de nova fonte de receita tributária, sem a necessária submissão a nova lei autorizativa a ser criada pela Assembleia Legislativa; 6) o sigilo fiscal permite, potencialmente, ao senhor governador construir 10 mil casas e ganhar apoio popular para sua reeleição sem discutir fonte de custeio nem sistema tributário; 7) o sigilo fiscal atende à empresa “S” que não sofre a publicidade negativa decorrente de uma autuação que entende injusta e que espera que seja julgada improcedente nos tribunais paritários de segunda instância; 8) o sigilo fiscal atende aos atuais gestores da empresa que não se veem responsabilizados nesse momento pelas decisões decorrentes dessa autuação, postergando os efeitos para seus sucessores; 9) o sigilo fiscal atende aos sócios e acionistas que se beneficiam da não transparência pública da autuação, evitando o imediato impacto sobre a desvalorização social da empresa “S” ou do preço de suas ações em bolsa; enfim, 10) o sigilo fiscal exclui outros atores sociais (empresas congêneres, ONGs, academia e outros estados) da discussão sobre a mudança de critério na tributação das operações “X” e seus decorrentes efeitos na cadeia produtiva e na carga tributária do “contribuinte de fato” que elegeu o governador.

Ocorre que nem o sigilo fiscal, nem o Direito, nem o artigo 198 do Código Tributário Nacional, podem servir como escudo da administração tributária para se esquivar ao controle social dos seus atos. O sigilo fiscal não pode comprometer a segurança jurídica instaurada historicamente pelo entendimento reiterado da fiscalização sobre a tributação das operações “X”, com base no argumento pseudo-altruísta, segundo o qual o “sigilo fiscal” existe para proteger a privacidade e a intimidade do contribuinte. Aliás, a expressão “sigilo fiscal” não existe no Código Tributário Nacional.

O artigo 5º, inciso XXXIII[1], da Constituição Federal, o artigo 2º[2], inciso II, da Lei Complementar 131 e o artigo 3º[3], inciso I, da Lei de Acesso à Informação determinam que a transparência é regra e o sigilo só é admitido em casos motivados expressamente que envolvam a segurança da sociedade e a segurança do Estado. Como o sigilo fiscal sobre as aludidas autuações afeta a segurança da sociedade e a segurança do Estado?

Em oposição à lógica do sigilo fiscal, outros são os efeitos institucionais da exigência constitucional e legal da transparência de todos os atos administrativos lavrados pelo agente “K” (e todos os demais agentes da Administração Tributária). Teríamos, então, o seguinte cenário: 1) a transparência consolidaria social e juridicamente o entendimento histórico da fiscalização no sentido de não tributar a operação “X”, oferecendo certeza e segurança jurídica para o auditor “K” e para a empresa “S”; 2) a transparência, o conhecimento e o controle social sobre os atos de autuação do Fisco protegeriam o agente fiscal “K” da pressão de seus superiores hierárquicos, garantindo sustentação e apoio social à manutenção da sua coerência histórica e legal no sentido de não tributar a operação “X”, exigindo para alteração desse entendimento mudança institucional discutida publicamente sobre a nova proposta de interpretação da legislação tributária; 3) a transparência das autuações evitaria o contencioso e reduziria a ação e necessidade do apelo excessivo aos tribunais administrativos paritários de segunda instância, que ficariam resguardados para decidir sobre efetivas e relevantes divergências sobre a legislação tributária; 4) a transparência resguarda a função do senhor secretário de Fazenda, impedindo que a interpretação da legislação seja manejada para atendimento aos caprichos e demandas políticas eleitorais do governador; 5) a transparência impediria a criação de nova fonte de receita tributária sem a necessária lei e sem o respectivo processo democrático, fortalecendo o poder político dos deputados estaduais e da Assembleia Legislativa; 6) a transparência exigiria que o governador submetesse à sociedade e ao poder legislativo a ponderação sobre a tributação da operação “X” para a construção das 10 mil casas populares, introduzindo o tema da tributação nos debates para sua reeleição; 7) a transparência fiscal atende à empresa “S”, posto que a ampla publicidade de uma autuação injusta deixaria o agente “K” sujeito ao crime de excesso de exação, bem como exporia socialmente a arbitrariedade do ato da administração tributária, evitando a autuação e tornando desnecessário o custo com o contencioso tributário e a prolongada espera por uma decisão administrativa imprevisível de segunda instância; 8) a transparência imediata da autuação permite a pronta responsabilização dos atuais gestores, diretores e sócios pelas decisões tomadas, incentivando uma governança corporativa socialmente responsável e aberta ao diálogo com a administração fiscal, sem heranças malditas para seus sucessores; 9) a transparência fiscal atende aos sócios e acionistas que exercem seu direito de agir em tempo hábil de modo a evitar maiores prejuízos decorrentes da eventual autuação sobre a desvalorização social da empresa ou do preço de suas ações em bolsa; enfim, 10) a transparência inclui outros atores sociais (empresas congêneres, ONGs, academia e outros estados) na discussão sobre eventuais mudanças nos critérios da tributação das operações “X”, propiciando um debate aberto e democrático sobre as repercussões fiscais na cadeia produtiva e na carga tributária suportada pelo cidadão e eleitor que, através da transparência, aprende que é também contribuinte de fato e de direito, conectando sistema tributário e sistema político[4].

Enfim, o arauto legal da defesa do “sigilo fiscal” que é o artigo 198[5] do CTN sequer trata de “sigilo fiscal” (cuida da proteção das informações privadas que o agente fiscal tem acesso em razão do exercício de suas funções): se tratasse, não seria recepcionado pela Constituição em face do artigo 5º, inciso XXXIII, ou estaria expressamente afastado pela LC 131/2009, lei complementar posterior ao CTN. É juridicamente insustentável e moralmente[6] comprometedor que a administração tributária oculte seus atos de aplicação da legislação tributária (por exemplo, dados sobre arrecadação tributária, autos de infração e decisões de primeira instância administrativa), esquivando-se de tornar públicos seus próprios critérios de interpretação e concretização do Direito.

As consequências do abuso do “sigilo fiscal” são: difusão de insegurança jurídica sistêmica, fomento exponencial da indústria do contencioso fiscal e bloqueio e não submissão ao controle social de seus atos e da aferição da eficiência de sua atividade. Tudo em nome do pseudo-altruístico interesse em proteger o contribuinte e a “livre concorrência”. É a transparência, e não o sigilo, que oferece segurança jurídica e efetiva oportunidade para o exercício da livre concorrência.

Deveras, a débil e frágil argumentação que defende o “sigilo fiscal” em nome do interesse do contribuinte oculta a conveniência da administração tributária omitir-se na revelação de sua legalidade oficial e, ao mesmo tempo, que oferece escudo legal aparente para subtrair-se ao controle da sociedade: trata-se de profanar a legalidade para sobrepor o uso difuso, vago, indiscriminado e oportuno do “sigilo fiscal” para interesses estranhos ao próprio direito. Uso nesse estilo do jargão “sigilo fiscal”, que pretende se revestir numa espécie de sacralização litúrgica, se auto-impondo como verdade absoluta, que não se justifica, mas ao mesmo tempo deixa vazar claramente suas incoerências, proíbe e pune como pecado inadmissível qualquer desalinhamento ideológico de suas infundadas e obtusas conclusões: o “sigilo fiscal” assim imposto parece mesmo coisa de religião. Esse uso conveniente do “sigilo fiscal” para ocultar informações de ordem pública, imprescindíveis para o controle social dos atos da administração: trata-se de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força que move o interesse que a justifica.


[1]"Art. 5º XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;"

[2]Art. 2º A Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 48-A, 73-A, 73-B e 73-C: “Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo único do art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes a: (…) II – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários." (grifo);

[3] "Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I – observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção";

[4] Sem transparência da aplicação da lei o Poder Público pode usar a legalidade abstrata como bem entender e sempre em nome do “interesse público”. Como bem adverte Nelson Saldanha: “o exagero do senso privado, tornou-se, no Brasil, predomínio do personalismo – conexo a larga presença de estruturas feudais em nossa história social”. Trata-se de combater o personalismo nas alianças políticas e nas adesões partidárias; nas palavras de Saldanha, “personalismo na secular tendência a confundir instituições com pessoas”. Ainda de acordo com Saldanha, as distorções do privatismo brasileiros não devem ser limitadas por um estatismo exagerado. Os limites necessitam vir do espírito público. Saldanha escreve: “ao estatismo brasileiro o que tem faltado é uma identificação maior com a realidade nacional e com as necessidades populares – raramente consultadas -, de onde lhe proviria uma maior substancial idade histórica e também uma flexibilidade mais eficiente; tem-lhe faltado ser publicismo.” Evidentemente, é preciso situar a expressão “espírito público” – utilizada por Saldanha – no contexto da Sociedade da Informação e em uma situação de hipercomplexidade. Trata-se de pensar em um déficit de força institucional aliado a carência de participação política em um contexto em que, cada vez mais, subsistemas sociais autônomos e altamente especializados necessitam encontrar limites na ação política. A tributação é um tema de interesse público por excelência. Falta, contudo, engajamento de atores sociais relevantes no debate político sobre o assunto. Esta carência de participação decorre de diversos fatores, dois deles merecem atenção especial: (i) falta de consciência do cidadão de que é, de fato, contribuinte (paga tributos) e de que necessita se posicionar de modo mais ativo (isto é, fiscalizar e exigir das instituições mais transparência) para que haja uma modificação no cenário atual de carência de equidade na tributação e falta de cuidado na gestão da coisa pública e (ii) alta complexidade das questões fiscais – fator que tende a fazer com que o debate restrinja-se a uma “conversa entre especialistas” em que poucos dominam a “linguagem competente” e estão habilitados a participar. SALDANHA, Nelson. “O Jardim e a Praça: ensaio sobre o lado “privado” e o lado “público” da vida social e histórica”. In Ciência e Trópico. Vol II, Nº 1. Recife: Fundaj, 1983. Disponível em http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CIT/article/viewArticle/232. Acesso em julho de 2012.

[5] O art. 198 do CTN prescreve que “sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades” (grifo nosso);

[6] "Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)"  (grifo nosso).

Autores

  • é coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas (NEF/Direito GV) e da especialização em Direito Tributário da GVlaw; professor da graduação, Pós-GVlaw Tributário e Mestrado da DireitoGV; mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC-SP; ex-juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo - TITSP e ganhador do Prêmio “Livro do Ano” pela ABDT, em 1997, e do Prêmio Jabuti "Melhor Livro de Direito" em 2008.

  • é pesquisadora do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF), professora do programa de pós-graduação lato sensu da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (Direito/GV) e doutora em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

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