Administração estatal

Licitações públicas também têm papel regulatório

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12 de julho de 2013, 9h54

A intervenção do Estado sobre os agentes privados é, tradicionalmente, fundada nas ideias de poder de polícia e da primazia, a priori, dos interesses da coletividade sobre os direitos meramente individuais, em benefício “dos mais variados setores da sociedade”.[1]

Porém, essas concepções clássicas, que têm justificado as mais drásticas ingerências sobre o particular, vêm sendo aos poucos superadas por outras modernas noções voltadas, principalmente, à cooperação e ao estabelecimento de uma relação mais horizontalizada entre Estado e sociedade, sem a imposição de instrumentos jurídicos repressivos. Isto é, instrumentos tipicamente de “comando e controle”, tais como a instituição de tributos, a criação de subsídios e a imposição de modelos de padronização para o mercado.

Apesar de a intervenção pública invocar até hoje um papel crucial no desempenho de atividades privadas, em razão, por exemplo, da demanda por bem-estar social e por políticas distributivas, as transformações no modelo de Estado passaram a demandar um novo fundamento de legitimidade que possa embasar a previsão sobre onde, quando e em que intensidade a interferência estatal irá (e poderá) ocorrer. E, nesse contexto, o Direito tanto serve para organizar os setores privados, mantendo-os funcionando de forma eficiente, como assume função propositiva, utilizando a estrutura de mercado e os seus interesses para o alcance de objetivos e metas socialmente desejáveis.

Com efeito, o Estado depende hoje, e cada vez mais, da intensa colaboração do particular pela sua crescente incapacidade de dar conta, por si só, dos múltiplos interesses e objetivos de desenvolvimento sócio-econômico. Uma maior aproximação com os agentes privados demanda, porém, o difícil balanceamento entre, de um lado, a preservação de liberdades privadas e, de outro, a promoção de valores e metas coletivas.

No entanto, tem-se observado, com certa frequência, uma má performance e uma distorção do processo de regulação de determinadas atividades e setores, demonstrando ser (total ou parcialmente) incompatível com as falhas de mercado que se quer sanar. Sem que se possa abdicar, porém, de alguma dose de interferência estatal corretiva, tem-se a necessidade de se definir de que forma cada específico setor econômico e suas falhas devem ser corrigidos. Isto é, com que extensão e intensidade, bem como os programas adequados para tornar seus objetivos efetivos.

Nota-se que, em determinadas atividades e setores, o modelo de regulação que procura, ao invés de impor determinados padrões, induzir o comportamento do mercado em direção a práticas socialmente desejáveis, lançando mão de mecanismos de coordenação estratégica de interesses, pode revelar-se mais eficaz. De fato, a mera imposição de diretivas pode dificultar sua aceitação ou ser tão rigorosa a ponto de se tornar impraticável ou de difícil observância, enquanto que modelos menos invasivos são capazes de preservar, na maior medida possível, a liberdade de escolha, estabelecendo sistemas de incentivo que chamem o particular a colaborar.

E justamente nesse contexto insere-se a licitação como relevante instrumento de fomento a atividades e resultados socialmente benéficos, na medida em que vem sendo crescentemente incluída em um sistema mais complexo de coordenação entre a racionalidade individual (voltada para interesses meramente egoísticos) e metas coletivas.

A inovadora adoção das licitações públicas como instrumento regulatório
Partindo-se, assim, da premissa de que a norma jurídica incide ao menos de modo indireto no comportamento estratégico dos agentes, cumpre verificar em que medida o sistema atual – representado por uma função que transforma ações em consequências – incentiva os indivíduos a reagirem conforme determinadas preferências públicas.

No que toca, assim, à atividade licitatória, esse esforço pode ser notado, em primeiro lugar, na regulação que trata da sustentabilidade como um novo paradigma orientador das compras públicas. Com esse objetivo, no dia 2 de agosto de 2010, foi instituída, pela Lei 12.305, a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, cujo artigo 7º, XI dispõe, dentre seus objetivos, que seja dada prioridade, nas aquisições e contratações governamentais, para, por exemplo, (i) produtos reciclados e recicláveis; (ii) bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis; e (iii) o desenvolvimento de sistemas de gestão ambiental e empresarial voltados para a melhoria dos processos produtivos e ao reaproveitamento dos resíduos sólidos.

Assim, na instauração de um processo de compra, caberia ao gestor público, na tomada de decisão, questionar quais produtos e/ou serviços causam menor impacto sobre o meio ambiente, levando-se em conta, por exemplo, o menor consumo de matéria-prima e de energia, a possibilidade de reciclagem, de reutilização e de descarte de materiais.

Mas foi principalmente a partir da edição da Lei 12.349/2010[2] que surgiu a possibilidade de utilização das licitações como importante mecanismo de desenvolvimento nacional sustentável, principalmente se considerado o forte potencial de mobilização de diversos setores da economia por via das compras governamentais que, no Brasil, movimentam recursos estimados em 10% do PIB nacional.

Até o advento dessa lei, a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração limitava-se, pois, a uma avaliação de aspectos meramente econômicos. Todavia, o sentido da Lei 8.666/93 adquiriu novos e ampliados contornos com a nova regulamentação que passou a incluir expressamente a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como um dos objetivos da licitação[3]. A proposta mais vantajosa deixou, assim, de ser aquela que apenas demonstrasse possuir a melhor relação financeira, passando a ser a que também é capaz de propiciar, mesmo que a longo prazo, benefícios sociais, ambientais e econômicos duradouros para o país.

E na esteira da Lei 12.349/2010 a função regulatória da licitação também vem sendo inserida através da adoção de mecanismos que estabelecem, por exemplo, tratamentos mais benéficos para empresas que exercem suas atividades buscando o desenvolvimento do país. Assim, a fim de incentivar a indústria nacional, de modo a gerar mais empregos e renda, bem como estimular a inovação tecnológica, o novo § 5º da Lei 8.666/93 passou a prever a possibilidade de se estabelecer margens de preferência para produtos manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras. Também foi prevista, no § 7º da Lei de Licitações, a possibilidade de se estabelecer margem de preferência adicional para os produtos manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país.

Cabe, no entanto, ao Executivo Federal fixar os percentuais referentes às margens de preferência por produto ou serviço, como o fez, inicialmente, por meio do Decreto 7.546/2011, que disciplina a aplicação da margem de preferência para produtos manufaturados e serviços nacionais e de medidas de compensação comercial, industrial, tecnológica ou de acesso a condições vantajosas de financiamento.

Mas, após a definição, por esse decreto, dos critérios gerais para fixação das margens de preferência nas licitações, outras normas vêm sendo editadas para disciplinar a aplicação do benefício na aquisição de objetos específicos. Assim, por exemplo, o Decreto 7.713/2012 dispõe sobre a aplicação de margens específicas de preferência para aquisição de fármacos e medicamentos manufaturados no país. E, ainda no ano de 2012, outras normas vieram a fixar preferência para a aquisição de determinados produtos manufaturados nacionais, tais como o Decreto 7.756/2012 (produtos de confecções, calçados e artefatos), o Decreto 7.767/2012 (produtos médicos que observem um Processo Produtivo Básico – PPB) e o Decreto 7.816/2012 (caminhões, furgões e implementos rodoviários).

Já no âmbito específico do importante setor de tecnologia da informação, o Decreto 7.174/2010, que trata da contratação de bens e serviços de informática e automação, regulamenta as preferências já previstas no artigo 3º da Lei 8.248/91 (Lei Nacional de Informática), no sentido de que caberá ao órgão licitante dar preferência à aquisição de bens que possuam tecnologia desenvolvida no país e que sejam produzidos de acordo com um PPB, na forma definida pelo Executivo Federal[4]. E em 2013, foi publicado, ainda, o Decreto 7.903, que passou a estabelecer margens de preferência normal (para produtos manufaturados nacionais) e adicional (para produtos manufaturados nacionais que tenham sido desenvolvidos no país) para aquisição de equipamentos de tecnologia da informação e comunicação.

Além do direito de preferência, o Decreto 7.174/2010 estabelece também que, nas aquisições de bens de informática e automação, o edital deverá exigir certificações emitidas por instituições públicas ou privadas credenciadas pelo INMETRO que atestem a adequação a requisitos de segurança para o usuário e instalações, compatibilidade eletromagnética e consumo de energia. Como é fácil concluir, o objetivo, nesse caso, consistiria em incitar um maior controle, pela Administração, da qualidade e eficiência dos bens de informática adquiridos, adotando-se, para tanto, modelos de padronização técnica de qualidade.

Por fim, vale mencionar a LC 123/2006, que, ao instituir o estatuto nacional de incentivo às micro e pequenas empresas, estabelece uma série de benefícios em favor delas, incluindo preferência nas contrações decorrentes de licitação pública, através, por exemplo, da realização de certames destinados exclusivamente à participação dessas entidades (artigo 42 e seguintes).

Como se verifica, portanto, o incipiente programa regulatório que utiliza a licitação como instrumento de fomento – ao integrar considerações ambientais e sociais em todos os estágios da contratação administrativa, beneficiando aqueles que atenderem a requisitos técnicos e de desempenho eleitos como relevantes – propicia a cooperação voluntária dos agentes privados no processo de desenvolvimento nacional, inclusive direcionando, de forma consciente, as formas de produção e consumo. Relega-se, assim, à coerção papel secundário.

Como equilibrar, porém, esse papel regulatório com a obtenção da proposta mais vantajosa?
Em que pese a relevância das normas descritas enquanto instrumentos de indução de práticas de mercado desejáveis, se, de um lado, o processo de criação do Direito deve voltar-se para uma atuação estratégica, capaz de afetar as escolhas individuais, não se deve esquecer, de outro, das peculiaridades do entorno com que a política regulatória irá, em cada caso, interagir[5].

Transpondo-se, assim, esse raciocínio para a atividade licitatória, importa verificar em que medida a sua utilização como instrumento de fomento pode acabar prejudicando o alcance da sua principal finalidade: a obtenção da proposta de preços economicamente mais vantajosa, assegurada sobretudo pela mais ampla participação dos agentes econômicos interessados.

Isso porque, em primeiro lugar, o estabelecimento de requisitos que restringem a participação no certame licitatório tende a comprometer a competitividade e, consequentemente, a disputa entre os participantes por meio da redução dos respectivos preços ofertados à Administração.

Adicionalmente, o favorecimento de determinados setores ou a imposição de critérios de qualidade, em regra, acabam onerando os custos de produção ou de execução do objeto licitado, custos que, inevitavelmente, acabam sendo repassados para o órgão licitante.

Como forma de solucionar, portanto, esse impasse entre, de um lado, o incentivo a determinadas práticas de mercado e, de outro, a economicidade visada pela Administração, impõe-se que o material normativo seja sempre interpretado no sentido de que é tão somente facultada a adoção dos diferentes instrumentos de fomento, de acordo com as peculiaridades envolvidas em cada caso.

Ou seja, importará avaliar a natureza do específico mercado envolvido e se o mesmo já se adequou devidamente às exigências estabelecidas. Medidas excessivas podem acabar afastando potenciais interessados e, consequentemente, colocar o procedimento de compra como um todo em risco. Ou, igualmente grave, acabar onerando em demasia os custos com que terá de arcar o Poder Público. Isso significa, portanto, a realização de uma ponderação entre os valores visados pela medida regulatória e os interesses financeiros da máquina administrativa, sobretudo por meio de uma análise de custo-benefício da medida de incentivo.

Importante ressalvar, porém, que o afastamento em concreto dessas regras imporá uma detalhada fundamentação pelo administrador, justificando-se as razões que orientarem a não adoção do instrumento em cada circunstância. Caso contrário, seria deixado um espaço decisório muito amplo a favor da Administração, em detrimento dos objetivos que se quer com a política de fomento atingir.

Acrescente-se, por fim, que a adoção equilibrada desses instrumentos demanda, ainda, uma regulamentação normativa clara e minuciosa, sem que se deixem ao critério de cada administração a forma e as hipóteses de sua aplicação, em detrimento do escopo principal da licitação. Esse foi, aliás, o entendimento recentemente exposto pelo TCU no Acórdão 1317/2013 – Plenário: "As políticas públicas … que visam à adoção de medida da restrição entendida como necessária para garantir a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, por envolver aparato normativo complexo para a sua concretização, dependem de regulamentação a fim de afastar qualquer possibilidade de discricionariedade". Dessa forma, "a preferência deve ser viabilizada mediante a ação normativa e reguladora do Estado, visando a promover maior eficiência e qualidade do gasto público". (…)"enquanto não for publicado Decreto estabelecendo os percentuais das margens de preferência e discriminando a abrangência de sua aplicação, não cabe ao gestor adotar, ao seu juízo, restrições objetivando a aquisição de produtos nacionais nos editais licitatórios, em detrimento aos produtos estrangeiros".

Conclui-se, assim, que, apesar de ainda incipientes, os primeiros passos vêm sendo dados em direção a novas diretrizes regulatórias, voltadas para o estímulo à cooperação voluntária e para a inserção da solidariedade no âmbito do Direito, prometendo um futuro de superação de modelos repressivos que, muitas vezes, em razão do seu rigor, distanciam-se das finalidades sociais em jogo. Mas, justamente pela novidade do tema, sua aplicação, com destaque aqui para o âmbito da atividade licitatória, impõe que as escolhas do administrador sejam cautelosas para que não sejam gerados efeitos empíricos reversos dos originalmente propostos pelas medidas de incentivo.


[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2008. p. 108.

[2] Vale mencionar que, já no ano de 2005, foi editado o Decreto nº 49.674/2005, do Estado de São Paulo, estabelecendo procedimentos de controle ambiental para a utilização de produtos e subprodutos de madeira de origem nativa em obras e serviços de engenharia contratados por aquele ente da Federação.

[3] Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (grifo nosso)

[4] Artigo 5º do Decreto 7.174/2010, o qual regulamenta o artigo 3º da Lei nº 8.248/1991.

[5] Ibid., p. 72.

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