Ossadas de militantes

MPF acusa autoridades de ocultar mortos na Ditadura

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26 de novembro de 2009, 14h13

Duas ações civis públicas ajuizadas nesta quinta-feira (26/11) pelo Ministério Público Federal em São Paulo acusam autoridades públicas por ocultação de cadáveres de opositores ao regime militar que vigorou no país entre 1964 e 1985. Entre os denunciados estão o senador Romeu Tuma, o médico legista Harry Shibata, e os ex-prefeitos de São Paulo, Paulo Maluf e Miguel Colasuonno.

O MPF quer que sejam declaradas as responsabilidades pessoais dos acusados pelas ocultações, ocorridas na capital paulista, nos cemitérios de Perus e Vila Formosa. De acordo com as denúncias, pessoas jurídicas e legistas contribuíram para que as ossadas de mortos e desaparecidos políticos na vala comum de Perus permanecessem sem identificação.

O senador Romeu Tuma foi chefe do Departamento Estadual de Ordem Política e Social, o Dops, entre 1966 e 1983. O médico legista Harry Shibata, é ex-chefe do necrotério do Instituto Médico Legal de São Paulo. Paulo Maluf foi prefeito da capital entre 1969 e 1971, e hoje é deputado federal. Miguel Colasuonno foi chefe do Executivo paulistano de 1973 a 1975. Fábio Pereira Bueno foi diretor do Serviço Funerário Municipal entre 1970 e 1974.

A primeira ação pede que os cinco sejam condenados à perda de suas funções públicas e aposentadorias. Caso sentenciados, os mandatos atuais de Tuma e Maluf não seriam afetados, pois a Constituição impede a perda de mandato em ações civis públicas. Shibata está aposentado e Colasuonno não exerce atividade pública. Além da cassação das aposentadorias, o MPF pede que as pessoas físicas sejam condenadas a reparar danos morais coletivos, mediante indenização de, no mínimo, 10% do patrimônio pessoal de cada um, revertidos em medidas de memória sobre as violações aos Direitos Humanos ocorridos na Ditadura.

No pedido, os procuradores sugerem que o juiz diminua a eventual pena em dinheiro se os réus, antes da sentença, declararem publicamente, em depoimento escrito e audiovisual, os fatos que souberem ou de que participaram durante a repressão política no período de 1964 a 1985, mas que ainda não sejam de domínio público. A medida repete uma prática adotada na África do Sul pelo governo de Nelson Mandela, que instituiu as Comissões da Verdade. Acusados que contassem o que soubessem sobre os abusos aos Direitos Humanos, durante o regime do apartheid, seriam anistiados.

Uma das principais fontes de dados para as ações do MPF foram os documentos e depoimentos colhidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo, instituída por ocasião da abertura da vala comum do Cemitério de Perus, em setembro de 1990, para apurar a participação de servidores e autoridades municipais no episódio. O MPF usou, ainda, as informações divulgadas pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, no livro Direito à Memória e à Verdade e documentos obtidos no Arquivo do Estado de São Paulo e no Arquivo Nacional.

De acordo com os registros, desaparecidos políticos foram sepultados nos cemitérios de Perus e Vila Formosa em São Paulo, de forma totalmente ilegal e clandestina, com a participação do IML, do Dops e da Prefeitura.

Responsabilidades pessoais
Membros da Polícia Civil são apontados na ação pela repressão aos dissidentes políticos da Ditadura em São Paulo. O Dops foi identificado como um órgão estadual que atuava subordinado ao Exército Brasileiro, após a criação dos Doi-Codi, em 1970. Nesse departamento, dirigido por Tuma, eram formalizadas as prisões feitas ilegalmente pelo Exército e abertos inquéritos policiais. No Dops, ocorriam novos interrogatórios, “em regra, sob tortura”.

Ainda segundo a ação, há registros de que pelo menos 36 presos no Doi passaram pelo Dops, e há documentos que mostram que Tuma tinha conhecimento de várias mortes de presos sob tutela policial do departamento, mas não as comunicou a familiares dos mortos. É o caso, por exemplo, de Flávio Molina, assassinado em 1971.

O legista Harry Shibata é acusado de assinar inúmeros laudos necroscópicos, atestando falsamente causa mortis incompatível, em diversos casos, com o real motivo do óbito, segundo o MPF. Necrópsias de inúmeros militantes políticos ignoraram lesões de tortura, casos, por exemplo, de Vladimir Herzog, Manoel Fiel Filho e Sônia Angel Jones.

No caso de Sônia, seus seios foram arrancados, mas o legista não anotou isso no atestado de óbito. A maioria dos laudos de Shibata era feita com o nome de guerra dos militantes, apesar de o aparato estatal conhecer suas reais identidades. O legista chegou a ter o registro de médico cassado pelo Conselho Federal de Medicina.

Paulo Maluf foi prefeito de São Paulo durante a fase mais grave da repressão. Nomeado pelo governo militar, a ação diz que foi dele a ordem para a construção do cemitério de Perus, projetado especialmente para indigentes, e que tinha quadras marcadas especificamente para os “terroristas”. O projeto original do cemitério previa um crematório, mas a Prefeitura desistiu após a empresa contratada ter estranhado o plano, que não previa um hall para orações, por exemplo. A Prefeitura chegou a fazer gestões visando mudar a legislação para cremação, para dispensar a autorização da família para o procedimento, possibilitando a cremação de indigentes, mas não teve sucesso.

Sob a gestão de Colasuonno, o cemitério de Vila Formosa, em 1975, foi reurbanizado, destruindo a quadra de indigentes e “terroristas”, o que praticamente impossibilita qualquer identificação de corpos de militantes naquele local.

Chefe do serviço funerário municipal, Bueno, segundo o MPF, caiu em contradição diversas vezes na CPI, e era o elo entre o poder municipal e o IML. Coveiros, sob sua ordem, tinham orientações específicas sobre como lidar com os corpos especiais, como eram designados os “terroristas”.

Consultado, o ex-prefeito Miguel Colasuonno, a princípio, não quis dar declarações sobre a acusação. Disse que não foi notificado da ação, e que soube da iniciativa do MPF ao ser abordado pela ConJur. Em seguida, porém, negou ter autorizado qualquer obra no cemitério de Perus.

Já o deputado Paulo Maluf divulgou nota por meio de sua Assessoria de Imprensa. "Depois de 39 anos, abordar de forma leviana um assunto dessa natureza é no mínimo uma acusação ridícula. O procurador da República responsável por essa acusação, mentirosa e caluniosa, deveria sofrer processo da Procuradoria Geral da República para a sua expulsão por demência caracterizada", diz a nota.

Poder Público
Além de responsabilizar civilmente as pessoas físicas que contribuíram para o desaparecimento forçado de dezenas de corpos de opositores do regime militar em Vila Formosa e Perus, o MPF pede também que seja declarada a responsabilidade da União Federal, do estado e do município de São Paulo, perante a sociedade, pelas ocultações.

Além da declaração, o MPF pede que União, estado e município sejam obrigados a divulgar fatos relativos à morte e à ocultação dos cadáveres das vítimas de desaparecimento no estado de São Paulo. Os dados seriam gravados em equipamentos públicos, permanentes, a serem instalados nos cemitérios de Perus, Vila Formosa, no Instituto Médico Legal e nos locais das prisões ou mortes. Quanto à antiga sede do Doi-Codi, onde hoje está instalada o 36º Distrito Policial, na Rua Tutóia (Paraíso), o MPF pede a sua conversão em um espaço público de memória.

Terceiros envolvidos
Na segunda ação civil, o Ministério Público Federal pede a responsabilização das pessoas físicas e jurídicas que contribuíram diretamente para que as ossadas de mortos e desaparecidos políticos localizadas na vala comum e outros locais do cemitério de Perus permanecessem sem identificação.

A ação tem pedido de liminar para que a União reestruture, em 60 dias, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, e a dote de orçamento, pessoal e de um Núcleo de Pesquisas e Diligências e um laboratório para se responsabilizar pelo Banco de DNA de familiares iniciado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, e que contrate, em até 90 dias, um laboratório especializado na realização de exames de DNA em ossos.

São demandados na ação a União, o estado, a Unicamp, a Universidade Federal de Minas Gerais, a Universidade de São Paulo e mais cinco pessoas, a maioria legistas, sob a responsabilidade dos quais estiveram sob análise as ossadas de Perus ou material genético dos familiares das vítimas para confrontação: Fortunato Badan Palhares (Unicamp), Vânia Aparecida Prado (UFMG), Daniel Romero Muñoz (IML/Instituto Oscar Freire – USP) e Celso Perioli e Norma Bonaccorso (Polícia Científica de São Paulo).

As universidades e os profissionais são acusados de negligenciarem os compromissos assumidos, gerando enorme atraso nas identificações. Em alguns casos, a ação aponta indícios de condutas intencionais para prejudicar os serviços. As ossadas foram exumadas da vala comum do cemitério de Perus em 1990.

Os trabalhos de reconhecimento foram assumidos pela Unicamp e Badan Palhares, que, após sucesso nas primeiras identificações, abandonou o serviço. A Unicamp trabalhou com a UFMG (professora Vania Prado) para fazer exames de DNA. Entretanto, também na UFMG houve descaso, não se chegando a nenhum resultado importante, segundo o MPF.

Em 1999, o MPF interveio nos trabalhos e conseguiu que a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo assumisse a responsabilidade pela continuidade. Foi designado Daniel Muñoz, do IML, e professor da USP, para o trabalho. Os restos mortais foram trazidos da Unicamp. Não houve, porém, sucesso no trabalho e nenhum relatório conclusivo foi emitido. O MPF entende que Muñoz descumpriu seus deveres e atrasou os trabalhos.

Servidores da Polícia Científica de São Paulo (Celso Perioli e Norma Bonaccorso) respondem na ação pela quebra da responsabilidade de fazer exames de DNA nas ossadas. Esses profissionais se contradisseram perante o MPF e as famílias dos desaparecidos, afirmando inicialmente que dispunham da tecnologia para assumir a realização dos exames e, posteriormente, informando que não poderiam realizá-lo. Essa postura atrasou em diversos anos a identificação de algumas ossadas.

Para o MPF, a Justiça Federal deve declarar que esses profissionais são responsáveis pessoalmente pela não-conclusão dos trabalhos de identificação da ossada de Perus, especialmente pela demora na identificação dos restos mortais de Flávio Carvalho Molina e Luiz José da Cunha.

Os cinco, avalia o MPF, devem ser condenados a indenizar a sociedade, na medida de suas responsabilidades em até 5% de seu patrimônio, ou a prestarem serviços não-remunerados em instituições de promoção dos direitos humanos.

Memória e fatos
As novas ações foram propostas pela procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, atual responsável pelo Inquérito Civil Público 06/99, aberto para apurar a demora na identificação das vítimas da Ditadura enterradas no cemitério de Perus, e pelo procurador Regional da República, Marlon Alberto Weichert, que abriu o inquérito, a partir de uma representação do grupo Tortura Nunca Mais. Também assinam a ação o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, e a procuradora da República Adriana da Silva Fernandes.

Foi no âmbito do ICP que o MPF-SP pautou sua atuação em busca do direito à memória e à verdade sobre os fatos ocorridos na Ditadura Militar, e ajuizou, em maio de 2008, ação de responsabilização contra os ex-comandantes do Doi-Codi, o maior aparato da repressão no estado de São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Maciel.

O processo do Doi teve a tramitação suspensa até o julgamento de uma ação proposta pela OAB no Supremo Tribunal Federal contestando a constitucionalidade da lei brasileira de Anistia, de 1979, usada como argumento na Justiça para travar iniciativas em busca da apuração da verdade em relação ao período.

Tribunais superiores da Argentina, Chile e Peru, acatando decisões de cortes internacionais, consideraram leis semelhantes destes países como auto-anistias e o sistema judicial desses países começou a processar casos de desaparecimentos forçados e assassinatos praticados pelas Ditaduras contra opositores.

Em 2004, para tentar suprimir a ausência do estado e da União, o MPF passou a comandar os esforços para identificação, acionando a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, que contratou laboratório que identificou os restos mortais de Flávio de Carvalho Molina (2005), Luiz José da Cunha (2006) e de Miguel Sabat Nuet (2008), confrontando material genético dos ossos com novas amostras de material genético de seus familiares.

O MPF ainda tem procedimentos visando a identificação de mais cinco militantes políticos mortos pela Ditadura Militar, em cooperação com a Comissão de Mortos e Desaparecidos, da atual direção do Departamento de Antropologia do IML e do Departamento de Cemitérios do Município de São Paulo.

Eugênia e Weichert atuam com exclusividade na área cível. As implicações criminais dos fatos tratados nas ações civis já ajuizadas dependem, ainda, de iniciativas da área penal do Ministério Público Federal. Os procuradores defendem que o Brasil não precisa modificar a lei da Anistia para punir os crimes cometidos por agentes da Ditadura Militar, pois, entre outros motivos, tais ilícitos são crimes contra a humanidade.

Para ambos, os instrumentos jurídicos disponíveis hoje são suficientes, uma vez que os crimes de tortura, morte e sequestro cometidos por agentes do Estado não foram anistiados, mas apenas os crimes de natureza política.

A ação do MPF não se concentra apenas em São Paulo. No Distrito Federal tramita ação, com atuação do MPF-DF e do MPF-PA, para identificar guerrilheiros e moradores da região do Araguaia, mortos na ofensiva do governo para exterminar a guerrilha, na década de 70.

No Rio Grande do Sul, o MPF abriu ICP para que sejam apuradas as reais circunstâncias da morte do presidente João Goulart, na Argentina, em 1976. Com informações da Assessoria de Imprensa do Ministério Público Federal.

Clique aqui e aqui para ler as ações do MPF.

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