Refúgio ou asilo?

Judiciário pode rever decisão que deu refúgio a Battisti

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10 de março de 2009, 15h19

Os fatos relacionados ao “Caso Battisti” são conhecidos. A polêmica em torno da decisão está colocada. Todavia, do ponto de vista jurídico pode-se indagar: a hipótese é de refúgio ou de asilo? A decisão do ministro da Justiça de outorga da condição de refugiado é passível de revisão judicial? Existe ato praticado por agente do Poder Executivo imune ao controle judicial, considerada a repartição funcional de competência constitucional?

Tanto o asilo quanto o refúgio têm caráter humanitário. Há, no entanto, inconfundíveis distinções. A concessão do status de refugiado é ato declaratório. A condição, portanto, precede o seu reconhecimento. É dizer, o beneficiado se enquadra em algum ponto da definição básica e internacionalmente consagrada de refugiado. As convenções internacionais, bem como a Lei 9.474/97, consideram refugiado todo aquele que tenha fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Observa-se, com isso, a convergência de elemento subjetivo (temor) e objetivo (fundado temor e perseguição).

A outorga da condição de asilado, por sua vez, é ato constitutivo. Sua concessão é decisão política. Trata-se de ato soberano. De modo diverso dos demais atos da administração interna brasileira, o asilo prescinde de motivação e de explicação de critérios. O Estado asilante, por sua vez, não se compromete com princípios fundamentais do refúgio, por exemplo, o da não-devolução. O grau de proteção no asilo é, por conseguinte, mais brando. Além disso, por estar restrito a uma questão política interna, ainda que com efeitos externos, não tem, em geral, abrigo ou privilégio internacional, ao contrário do que sucede no refúgio. À falta de norma explícita, a concessão de asilo submete-se no campo político interno, apenas, ao controle da opinião pública. No plano da repartição constitucional de competência funcional prepondera, no asilo, a condição do presidente da República de Chefe de Estado.

O entendimento, porém, não se aplica na hipótese de refúgio. De início, em razão do órgão (Conare) e da autoridade competente (ministro da Justiça) para a decisão. Em segundo lugar, a leitura do artigo 26 da Lei 9.474/97 é esclarecedora. Se o ato deve estar devidamente fundamentado, expressão literal da lei, essa exigência, por si só, indica a viabilidade de sua submissão ao controle judicial. Além disso, não há falar que a concessão de refúgio seja equiparada ao asilo enquanto ato de soberania. No ponto, registre-se, de modo enfático, que não há hipótese de ato de soberania praticado, em última instância, por agente público demissível ad nutum. Além disso, se não houvesse a vedação de recurso hierárquico ao presidente da República (art. 31 da referida lei), e se fosse possível, sob a perspectiva constitucional, a delegação de competência privativa da condição de Chefe de Estado, aí sim, talvez, existisse espaço para suscitar o debate.

Mas não é só. O instituto do refúgio conta com ampla proteção consubstanciada em documentos internacionais e amparada pela ação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). O direito dos refugiados apresenta contornos mais técnicos. Há, por exemplo, a chamada cláusula de exclusão. Por ela, não se beneficiarão da condição de refugiado indivíduos que tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime conta a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas. O refúgio não se compatibiliza, ao contrário do que pode ocorrer no asilo, com qualquer desses ilícitos.

No caso Battisti, o embasamento da concessão de refúgio não atende ao critério técnico contemplado nos diplomas de regência do tema. Nessa linha de pensamento, afasta-se que o referido cidadão italiano teria sofrido falta de oportunidade para que desenvolvesse ampla defesa. Que tem fundado temor de perseguição por motivos políticos. De igual modo, afasta-se a afirmação de que o atual governo italiano, de matiz ideológica conservadora, o persegue. E que se busca dar execução a uma decisão judicial condenatória por fatos ocorridos nos chamados “anni di piombo”.


Em relação à hipótese de dúvida quanto à ampla defesa do mencionado italiano e respeito ao devido processo legal, não é, primeiramente, causa para concessão do refúgio. Demais disso, para se chegar a pretendida conclusão, isso implicaria reexame e revolvimento de todo contexto fático e procedimental, o que não se mostra compatível tratando-se de ato procedente de Estado independente e soberano, e com o qual o Brasil mantém relações diplomáticas regulares. Não há curso nem espaço para exercício de reenquadramento da questão colocada, até porque qual seria o marco legal para se alcançar a afirmada falta de ampla defesa e respeito ao devido processo legal? O procedimento seria avaliado em face da lei brasileira ou da lei italiana? Desenganadamente, os princípios adotados constitucionalmente pelo Brasil nas suas relações internacionais (art. 4º), entre os quais sobreleva o da igualdade entre os Estados, não permitem encaminhar o debate para esse tipo de avaliação procedimental levado a cabo em outra jurisdição soberana.

Para afastar a alegada perseguição é suficiente registrar, entre outros aspectos, que a lei brasileira exige, para concessão do refúgio, a presença de fundado temor. Não se contenta, portanto, com o elemento subjetivo (temor) individualmente considerado. O temor, no contexto legal, há de ser fundado. Isto é, deve estar objetivamente posto, muito aproximando-se do fato público e notório, ainda que tomada a expressão dentro de um universo limitado. Nesse sentido, além dos pronunciamentos da Justiça italiana, levados a cabo em conformidade com os postulados legais e constitucionais, e, ainda, observadas as regras internas de atribuição jurisdicional, é de se enfatizar que a Corte Européia de Direitos Humanos, em decisão no final de 2006, não encontrou qualquer mácula na decisão condenatória de que se cogita. Não parece razoável, portanto, e a míngua de qualquer fato objetivamente demonstrado — não apenas especulado ou fruto de elocubração — por em causa o sistema Judiciário italiano, seu ordenamento jurídico, tampouco colocar em dúvida a independência e a imparcialidade do Tribunal Europeu.

Nunca é demais recordar que o refugiado é vítima de injustiça e não alguém que foge da justiça. E mais, no caso Battisti, os crimes que lhe são atribuídos estão abrangidos por, pelo menos, uma das cláusulas de exclusão. Ressalte-se, ainda, que pelo critério da preponderância, diuturnamente invocado nos processos de extradição, os crimes comuns mais graves prevalecem em relação aos crimes políticos. Não fosse a circunstância objetiva suficiente, é de ver-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal afasta, também, atos delituosos de natureza terrorista da noção de criminalidade política. Pode até haver ex-terroristas; mas não há ex-assassinos. Para essas hipóteses, portanto, não se aplica a inextraditabilidade por delitos políticos prevista na Constituição.

Mas, não obstante, poder-se-ia indicar a existência de norma impeditiva do controle judicial, ainda que extradicional. Sem aprofundar a questão da constitucionalidade do artigo 33 da Lei 9.474/97, vale lembrar que, no Brasil, só houve em nossa história republicana ato imune ao controle judicial nos períodos do chamado Estado Novo ou de vigência do AI-5.

Não se trata, como já se entendeu em passado recente, de preservar invasão de competência de um poder sobre outro. É que no plano da repartição funcional de competência constitucional a questão da imunidade jurisdicional de qualquer ato dos demais poderes só se mostra pertinente se a limitação for explícita. A regra é a inafastabilidade da jurisdição, tratando-se de direitos indisponíveis. E com maior razão é inafastável a jurisdição tratando-se de tema que demande interpretação constitucional. A regra é o controle judicial. E mesmo que se cuide de ato privativo de qualquer dos demais poderes. O exemplo mais pueril é o da competência privativa do Congresso Nacional para resolver definitivamente sobre tratados que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. Nem por isso o Poder Judiciário fica impedido de examinar e resolver a constitucionalidade do tratado, seja no caso concreto seja em sede de controle concentrado. De igual modo, refletindo os chamados “freios e contrapesos” não há nenhum demérito que ao Senado Federal seja atribuída a competência privativa para julgar o Presidente da República e o Vice nos crimes de responsabilidade, e os Ministros de Estado nos de mesma natureza conexos.


É preciso distinguir competência formal e material de competência funcional de cada poder individualmente considerado. Nenhum poder isoladamente representa o Estado, enquanto sujeito de direito internacional, ou pode se apresentar para falar em seu nome em detrimento da expressa repartição funcional de competência horizontal entre os poderes da União. A circunstância de a Constituição designar o presidente, na condição de chefe do Poder Executivo, como porta voz da vontade soberana da República Federativa do Brasil, não significa dizer que, agindo no plano externo, seus atos estejam completamente imunes nesse domínio ao controle judicial. Em outras palavras, ainda que na condição de Chefe de Estado, o mandatário só pode praticar atos ou assumir compromissos para os quais tenha respaldo constitucional. Assim sendo, o presidente da República, no exercício de sua competência funcional, tomará as iniciativas que a Constituição lhe reserva e o Poder Judiciário poderá — no plano funcional da repartição de competência — efetuar o controle jurisdicional dessas iniciativas no exercício de sua atribuição constitucional.

O judicial review, desse modo, só encontra limitação no crime político. E, ainda assim, segundo a avaliação e o enquadramento conceitual dos fatos pelo órgão jurisdicional competente, que não se subsume à interpretação que a eles (fatos) dê qualquer órgão de qualquer dos demais poderes da União ou pessoas jurídicas de direito interno. A máxima é aplicável em face do monopólio de controle constitucional e legal diante de qualquer ato, em especial do Poder Executivo, ainda que este invoque sua natureza política em decorrência de protagonismo internacional. A sede em que praticado o ato, ou a projeção dos seus efeitos exclusivamente no plano externo, é irrelevante para o exercício do controle judicial. Prevalece, no ponto, a separação funcional de poder na interpretação constitucional, na perspectiva da repartição constitucional de competência.

Assim, a decisão do ministro da Justiça pode ser questionada perante o Judiciário. A par da expressa exigência legal de fundamentação do ato, por si só indicadora da possibilidade de controle judicial, o ato ministerial poderá ser confrontado em face do nosso ordenamento jurídico, quer se trate de normas de produção interna ou doméstica, mas também diante de normas de produção externa — tratados sobre o tema, devidamente incorporados ou aplicáveis em razão do costume — a que o Brasil se vinculou.

A prevalecer a tese de imunidade de apreciação da decisão ministerial incidiríamos, a um só tempo: (a) na completa irrelevância de fundamentação do ato de concessão do refúgio, pois, a quem caberá o controle da aplicação e observância da norma que determina (exige) que o ato deve estar “devidamente fundamentado”? À própria autoridade que pratica o ato? (b) a possibilidade de o governo brasileiro afastar a aplicação da cláusula de exclusão por vontade unilateral, ao arrepio de compromisso internacional em vigor e objeto de negociação com outras soberanias no concerto das nações signatárias. Isso, por óbvio, também destoa dos fundamentos e princípios da proteção que se busca na concessão de refúgio e o seu reconhecimento indevido outorga ao beneficiado uma proteção que, no caso concreto, significa assegurar a impunidade.

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