Acabou em Portugal

Febre dos grampos selou destino de Paulo Lacerda

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31 de dezembro de 2008, 10h29

Editorial da Folha de S.Paulo

Terminou em melancolia a passagem de Paulo Lacerda pela cúpula da segurança nacional. Nos últimos seis anos, à frente da Polícia Federal e, depois, da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o delegado foi co-autor, testemunha e vítima de mudanças nas instituições que chefiou. Delicadamente demitido pelo presidente Lula, retira-se agora em Lisboa, onde será adido policial da embaixada, cargo que passou a existir para recebê-lo. A revelação de que nem o presidente do Supremo Tribunal Federal escapou da febre de grampos, a pretexto da chamada Operação Satiagraha, selou o destino de Lacerda. Foi afastado da Abin em setembro e, agora, exonerado.

Ironia do destino, Lacerda foi derrubado em decorrência de uma de suas criaturas diletas. Durante o primeiro mandato de Lula, o então chefe da Polícia Federal ajudou a consolidar as “operações” como forma de atuação do birô -ocorreram 412 no período. Inspiradas num costume militar e batizadas com nomes extravagantes, as operações ajudaram a modernizar a PF.

O planejamento, a profissionalização, o cruzamento sistemático de dados e o desbaratamento de esquemas criminosos em setores tradicionalmente intocáveis estiveram presentes nas mais destacadas operações da Polícia Federal. O espalhafato, a exposição de investigados à execração, o abuso de poder e a quebra descontrolada de sigilos constitucionais, entretanto, também marcaram muitas dessas ações espetaculares.

Na Abin, Lacerda cometeu pelo menos uma falha grave: a pedido de um delegado da PF que exorbitou de suas funções, o chefe do escritório de inteligência destacou 60 agentes para auxiliarem as investigações da Polícia Federal no caso Satiagraha. Agentes da Abin não podem exercer atividade de polícia.

A usurpação de funções -bem como outras ações clandestinas e estranhas ao protocolo ocorridas naquela operação- deslanchou um lamentável choque entre a Abin e a PF e entre setores rivais da própria corporação policial. Escritórios da agência de inteligência foram devassados, sob mandado judicial, por policiais federais; o sigilo de informações alheias ao inquérito, consideradas sensíveis pela Abin, ficou vulnerável.

O balanço da passagem de Lacerda pela PF e pela Abin, vale ressaltar, é importante não para que se apurem os méritos e os deméritos profissionais do delegado. A reconfiguração desses órgãos nos últimos anos é abrangente e transcende as opções tomadas por seus chefes de turno.

Trata-se de uma mudança institucional, ocorrida no entrechoque entre anseios da sociedade, burocracias em renovação e instituições de controle. A experiência recente, contudo, mostra que esse último fator -os freios e contrapesos destinados a moderar a tendência à autonomia, natural nos aparatos de segurança e inteligência- precisa de reforço.

[Editorial publicado pela Folha de S.Paulo, desta quarta-feira, 31 de dezembro]

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