Cautelas do bloqueio

Discussão sobre a penhora dos fundos de pensão

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27 de julho de 2007, 0h00

As recentes reformas processualistas, promovidas com o intuito de tornar o processo mais célere e efetivo, trouxeram à baila efeitos inesperados pelo legislador. Aliás, há muito se sabe que promulgada uma lei adquire ela vida própria.

Nesse sentido é o presente artigo, ao analisar os efeitos decorrentes da inclusão, pela Lei 11.382/2006, da expressão “pecúlio” ao rol dos bens absolutamente impenhoráveis do inciso IV, Artigo 649 do Código de Processo Civil.

Reza o dispositivo, in verbis:

Artigo 649. São absolutamente impenhoráveis:

IV — os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no parágrafo 3° deste artigo.

Uma leitura mais compassada do dispositivo revela uma identidade comum entre institutos nele listados: dizem respeito a verbas percebidas de forma continuada como fruto do trabalho ou em decorrência dele, salvo quando utiliza-se das expressões “por liberalidade de terceiro”, “pecúlio” e “montepio”, carecedores de continuidade. Corolário do princípio da dignidade da pessoa humana (em contraste com a pessoa jurídica), esses institutos visam assegurar as condições existenciais mínimas.

Há muito o direito ocidental incorporou os fundamentos da lex petelia papiria, de origem romanista que remonta ao século IV a.C, pela qual o patrimônio do devedor garante o adimplemento das obrigações por ele assumidas nas múltiplas relações jurídicas materiais que se estabelecem.

Mas, a propósito do tema, cumpre investigar, inicialmente, a natureza jurídica do instituto do pecúlio.

Para o Direito Romano1, o instituto se apresentava com os seguintes contornos:

Referia-se ao “bloco dos bens cuja administração pelo paterfamilias era confiada ao filho ou ao escravo que denominava-se peculium. (…) a constituição do peculium não encarecia qualquer fórmula, bastando a vontade do instituidor de concedê-lo e a entrega da coisa, nesta subentendendo-se todo ou parte do patrimônio a ser administrado pelo preposto, filho ou escravo”.

“(…) o pecúlio podia ser aumentado, não havendo para isto necessidade de nova instituição a fim de preservar os limites originariamente dispostos. Os resultados do negócio por ele propiciados acresciam-no sempre, como se tratasse de um patrimônio distinto. Podia ser aumentado também, independentemente de resultado positivo do negócio, com acréscimos feitos pelo paterfamilias, sem necessidade de nova constituição.”

“Finalmente, o pecúlio podia ser revogado à simples vontade do instituidor, porém sempre ressalvado o direito de terceiros nas relações de negócio com o seu titular.”

Em tempos menos remotos, a previdência social utilizou-se da expressão que designava o instituto para nominar a espécie de benefício prevista, dentre outras edições, na Lei 6.243, de 24 de setembro de 1975, que consistia num quantum pago, de uma só vez, ao aposentado que voltasse ou continuasse a trabalhar em atividade sujeita à contribuição obrigatória, cujo valor correspondia à soma das importâncias correspondentes às próprias contribuições pagas após a aposentadoria. O benefício foi extinto em 15 de abril de 1994 pela Lei 8.870, respeitando-se os direitos adquiridos.

Quase no mesmo compasso, o sistema de previdência privada, operado pelas Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC) e Entidades Abertas de Previdência Complementar (EAPC), deu à expressão outra aplicação. Passou a designar espécie de seguro de vida atrelado a um plano previdenciário com o objetivo de cobrir determinados infortúnios. O participante (em caso de acidente que o incapacite) ou seus dependentes (em caso de morte do segurado) recebem um pecúlio2 correspondente ao valor das contribuições vertidas pelo participante, corrigido monetariamente e acrescido de eventuais ganhos financeiros, ou ao valor previamente contratado, pago em parcela única pela EFPC ou EAPC.

Necessário gizar que, não obstante as utilizações pelos sistemas previdenciários, é certo que o instituto possui um sentido mais amplo. Refere-se a “toda reserva monetária ou pecuniária proveniente do produto de algum trabalho ou de economia feita. Expressa, noutras palavras, as economias promovidas por uma pessoa e que se destinam a uma reserva de bens, configurando um patrimônio3.

Como bem conceituado pelo dicionário jurídico de De Plácido e Silva, pecúlio vem a ser uma “reserva em dinheiro, constituída por alguém do produto do seu trabalho” 4.


Disso se infere que as reservas constituídas pelos planos previdenciários privados, sem exclusão dos públicos, ostentam a natureza jurídica de pecúlio, uma vez que os recursos financeiros são originários do trabalho e constituem um patrimônio individualizado do participante.

Essa assertiva conduz à seguinte indagação: o pecúlio de um participante do regime de previdência complementar pode ser objeto de penhora para garantir o crédito de um terceiro? Hipoteticamente: A, participante de um fundo de pensão administrado por EFPC, devedor de B, cai em inadimplência; inexistindo outros bens, pode B perquirir a constrição judicial dos recursos depositados por A no Fundo e Pensão?

Sem perpassar pelos consentâneos sociais — eis que, reconhecidamente, o pecúlio previdenciário visa ao atendimento das necessidades próprias da senilidade — qual a resposta jurídica para a questão suscitada?

Ontologicamente, tanto o sistema previdenciário público quanto o privado se amparam na formação prévia de um pecúlio, mediante o acúmulo de recursos financeiros que viabilizem a sua devolução aos beneficiários em parcelas continuadas garantidoras da subsistência.

É o que dispõe o Artigo 18 da Lei Complementar 109, de 29 de maio de 2001, in verbis:

Artigo 18. O plano de custeio, com periodicidade mínima anual, estabelecerá o nível de contribuição necessário à constituição das reservas garantidoras de benefícios, fundos, provisões e à cobertura das demais despesas, em conformidade com os critérios fixados pelo órgão regulador e fiscalizador.

Refletindo sobre esse ponto, o ministro Carlos Ayres de Brito no voto-vista proferido no Recurso Extraordinário 416.827-8/SC, no trecho colado, assim se pronunciou:

(…)

“16. É neste ponto de inflexão que me parece imperioso falar de previdência social como um subsistema constitucional. Parte elementar do ‘sistema da seguridade social’ (§ 3º do artigo 195), concebido este como ‘um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social’ (artigo 194, caput). Mas um subsistema financeiro-atuarial de mão dupla ou de contribuição-retribuição (em regra), porque estruturado a partir do imbricamento de fontes de custeio e concessões de benefícios.”

(…)

“17. Reexplico. Trata-se de um subsistema que opera a partir de financiamentos (“fontes de custeio”) que se direcionam para a formação de uma economia comum a todos os provedores e beneficiários. Logo, espécie de pecúlio coletivo, porém de aplicabilidade benfazeja individual. Sendo que alguns desses benefícios — já dissemos — são de trato sucessivo ou prestação continuada, como é o caso da pensão que ora se discute. Pensão por morte de um instituidor a que a nossa Magna Carta apõe o rótulo de “segurado” (inciso V do artigo 201).

A diferença elementar entre os sistemas previdenciários público e privado é que este constitui pecúlio sob o regime de capitalização, individualizando os recursos dos participantes (ex vi do Artigo 18, § 1º5 da LC 109/2001), e aquele constitui um pecúlio universal, em homenagem ao princípio da solidariedade que o norteia. É verdade que os planos previdenciários privados são constituídos, também, pela contribuição financeira dos patrocinadores e/ou instituidores do fundo de pensão, o que não lhes retira as características antes mencionadas do pecúlio.

Destarte, no mesmo passo do ministro Ayres de Brito, o fundo garantidor dos benefícios de natureza previdenciária operados pelo sistema privados é espécie de pecúlio, stricto senso, natureza que, por si, lhe confere a impenhorabilidade absoluta prevista no inciso IV do Artigo 649 do CPC.

Acresça-se mais: a origem dos recursos formadores desse pecúlio é salarial, logo, verba de natureza alimentar que não se modifica, haja vista que se destina à prestação futura de outra verba de natureza alimentar, a saber, a complementação dos proventos de aposentadoria ou mesmo o pensionamento.

Essa a inteligência extraída do voto proferido pelo ministro César Asfor Rocha no Recurso Especial 536.700-SP, assim ementado:

RECURSO ESPECIAL Nº 536.760 – SP EMENTA: PROCESSO CIVIL. PENHORA. DEPÓSITO BANCÁRIO DECORRENTE DE PENSÃO. IMPOSSIBILIDADE.

Os depósitos bancários provenientes exclusivamente da pensão paga pelo INSS e da respectiva complementação pela entidade de previdência privada são a própria pensão, por isso mesmo que absolutamente impenhoráveis quando destinados ao sustento do devedor ou da sua família.

Recurso conhecido e provido.

Já se disse que o pecúlio pode sofrer acréscimos. Um deles, em se tratando dos planos previdenciários privados, advém dos ganhos de capital auferidos pelo investimento dos recursos do pecúlio na ciranda financeira. Esses ganhos, ainda que ostentem a mesma natureza do pecúlio, podem ser objeto de penhora por força do que dispõe o Artigo 650 do CPC? Reza o artigo:


Artigo 650. Podem ser penhorados, à falta de outros bens, os frutos e rendimentos dos bens inalienáveis, salvo se destinados à satisfação de prestação alimentícia.

Embora o texto do artigo se refira expressamente à penhorabilidade dos frutos de bens inalienáveis, quer-se, aqui, enfrentar a (im)penhorabilidade dos ganhos de capital decorrentes do investimento dos recursos do pecúlio previdenciário.

Segundo a doutrina civilista, por frutos deve se entender tudo aquilo que se possa ser obtido periodicamente da coisa, nascendo e renascendo – quod ex re nasci et renasce solet — sem alteração da natureza da coisa. Dois requisitos qualificadores se evidenciam: o da periodicidade e na inalterabilidade da coisa produtora dos frutos.

Nessa ordem de idéias, é inevitável concluir que os ganhos de capital são espécie de frutos do capital. Satisfaz o critério de periodicidade uma vez que tais frutos — os rendimentos — poderão ser recriados a cada intervalo de tempo; e, do mesmo modo, os ganhos se somam ao capital inicialmente investido em nada alterando a sua essência ou natureza.

Para visualizar a questão — o da penhorabilidade dos frutos — imagine a seguinte situação: A, participante de um determinado fundo de pensão, verte para o seu pecúlio a quantia de R$ 100 mil. Durante o tempo de contribuição, a EFPC aplicou seus recursos do mercado financeiro e elevou o pecúlio individualizado para R$ 140 mil com os ganhos de capital. Ou seja, os R$ 40 mil, frutos do capital, seriam penhoráveis?

Convém salientar, antes do enfrentamento da questão, que o sistema previdenciário é orientado por princípios atuariais que tomam em conta inúmeras variáveis na formatação dos planos de benefícios. Uma dessas variáveis é a denominada meta atuarial, que prevê desde logo a obtenção de ganhos de capital. Não se confunde com a correção monetária do capital, mera atualização deste.

Assim, qualquer plano de benefícios previdenciários privado contém, na sua essência, uma previsão de ganho de capital orientada à meta atuarial, sem a qual a fruição futura de benefícios restaria inviabilizada pela insuficiência de recursos.

É possível, e até corriqueiro no atual ambiente econômico, que haja uma superação da meta atuarial, de sorte que os ganhos de capital superem-na. Nessa hipótese, o Artigo 20 da Lei Complementar 109/2001 prevê uma série de procedimentos dirigidos ao alívio do esforço contributivo dos participantes do fundo de pensão. Reza o dispositivo, com grifos:

Artigo 20. O resultado superavitário dos planos de benefícios das entidades fechadas, ao final do exercício, satisfeitas as exigências regulamentares relativas aos mencionados planos, será destinado à constituição de reserva de contingência, para garantia de benefícios, até o limite de 25% do valor das reservas matemáticas.

§ 1° Constituída a reserva de contingência, com os valores excedentes será constituída reserva especial para revisão do plano de benefícios.

§ 2° A não utilização da reserva especial por três exercícios consecutivos determinará a revisão obrigatória do plano de benefícios da entidade.

§ 3° Se a revisão do plano de benefícios implicar redução de contribuições, deverá ser levada em consideração a proporção existente entre as contribuições dos patrocinadores e dos participantes, inclusive dos assistidos.

Diante disso, a conclusão teórica sobre a (im)penhorabilidade dos ganhos de capital é no sentido de que somente os ganhos de capital excedentes à meta atuarial seriam penhoráveis, sem com isso comprometer o plano previdenciário, desde que realizada antes da revisão obrigatória a que se refere o parágrafo 2º do artigo 20 da LC 109/2001.

Ainda assim é questão controversa que merece ser cotejada com a redação final do artigo 650 do CPC, onde assevera “salvo se destinados à satisfação de prestação alimentícia”, previsão legal que blindaria até mesmo os ganhos de capital excedentes da meta atuarial.

Notas de rodapé

1 – Enciclopédia Saraiva de Direito. Volume 57. Coordenação do Prof. R. Limongi França. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 328.

2 – Assemelha-se ao instituto do Montepio, também previsto no rol do inciso IV do art. 649 do CPC. A expressão deriva de monte (fundo) e pio (de finalidade piedosa) e serve para designar a instituição formada com o objetivo de dar às pessoas que nela ingressam, mediante contribuição mensal, assistência em caso de moléstia ou pagar pensão à família em caso de morte.

3 – Enciclopédia Saraiva de Direito. Volume 57. Coordenação do Prof. R. Limongi França. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 325.

4 – Silva, De Plácido. Vocabulário Jurídico. Atual. Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004, p. 1.018

5 – Art. 18 (…) § 1o O regime financeiro de capitalização é obrigatório para os benefícios de pagamento em prestações que sejam programadas e continuadas.

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