Decreto de branqueamento

Ordem pessoal não se confunde com decreto de Estado

Autor

  • Marcílio Toscano Franca Filho

    é procurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da Paraíba pós-doutor em Direito pelo Instituto Universitário Europeu (Florença Itália) e professor do Mestrado em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba.

10 de agosto de 2007, 0h00

As leituras amenas de uma manhã de domingo colocaram-me diante de uma informação grave e perturbadora: no melhor estilo das leis alemãs ou sul-africanas de segregação racial, o presidente Epitácio Pessoa, no princípio do século, teria editado um “decreto de branqueamento” que vetava, por razões de prestígio patriótico, a participação de jogadores negros na seleção brasileira de futebol que disputaria a Copa América de 1921, em Buenos Aires.

A se confirmar esse fato, o tal decreto epitacista seria a versão tropicalizada da tristemente lembrada “Lei para a Proteção do Sangue e da Honra Alemães”, editada por Hitler (“Gesetz zum Schutze des deutschen Blutes und der deutschen Ehre, de 15 de setembro de 1935).

A informação com que me deparei contava com uma legitimidade acadêmica insuspeita, afinal tratava-se de um artigo publicado no magazine esportivo francês L’Equipe, em sua edição de 1º de Julho de 2006, de autoria do respeitado professor Pascal Boniface, diretor do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas de Paris e autor, entre outros, do livro Football et Mondialisation (ed. Armand Colin, 2006).

O texto de Pascal Boniface, cujo título é Brésil: le Talent contre le Racisme, não deixava margem para qualquer dúvida: “En 1921, le président brésilien Epitacio Pessoa, formula un décret de blancheur qui interdisait, pour des raisons de prestige patriotique, de sélectionner des joueurs à la peau noire.”

Preciso achar esse decreto — pensei. Os meus interesses profissionais e acadêmicos no mundo do Direito moviam-me a empreender uma busca por aquele édito presidencial. Teria sido o ex-presidente brasileiro, nosso representante na Conferência de Versalhes e, depois, juiz no Tribunal de Haia, o responsável por uma norma tão vil? O meu primeiro impulso, por ser a idéia mais fácil e óbvia, foi consultar o autor do artigo publicado em l’Equipe. Porém, tendo escrito ao professor Pascal Boniface, recebi a notícia de que ele se encontrava em férias estivais, fora de Paris. Parti, então, para uma empreitada documental para tentar confirmar a estória.

Bom, é verdade que naquela Copa América de 1921 não tomaram parte do escrete canarinho jogadores negros. Kuntz, Telefone e Barata; Laís, Alfredinho e Dino; Zezé, Candiota, Nonô, Machado e Orlando Torres — o selecionado principal do técnico Ferreira Vianna Netto era de uma alvura singular, conforme facilmente se constata nas fotos encontradas nos arquivos da CBF.

Nenhum negro, na terra de Pelé e Leônidas da Silva. O Brasil terminou a competição no segundo lugar, derrotado pela Argentina por 1×0 e pelo Uruguai por 2×1 e vencido apenas o Paraguai, por 3×0.

Em que pese à ausência de jogadores negros na seleção de 1921, não se pode definitivamente atribuir a Epitácio Pessoa aquele tão indecoroso décret de blancheur. Com efeito, em toda a base de dados da legislação federal, a cargo do Senado Federal, não há um único ato jurídico (seja lei, decreto ou portaria) de Epitácio Pessoa que aborde esse assunto ou tenha finalidade sequer parecida.

A informação divulgada por Pascal Boniface na revista L’Equipe de julho de 2006 parece ter sido extraída do livro Futebol, ao Sol e Sombra (ed. L&PM, 2004), do jornalista uruguaio Eduardo Galeano. Nessa obra, em que reúne casos interessantes do mundo futebolístico, Galeano usa palavras muito próximas daquelas referidas por Boniface: “Em 1921, a Copa América ia ser disputada em Buenos Aires. O Presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, redigiu um decreto de brancura: ordenou que não se enviasse nenhum jogador de pele morena, por razões de prestígio pátrio. Das três partidas que jogou a seleção perdeu duas” (p. 49). Não é ilógico supor que o livro de Galeano, de 2004, servira de fonte ao artigo de Boniface, de 2006.

Em todo caso, mesmo inexistindo um tal decreto epitacista na base de dados da legislação brasileira do Senado Federal, o jornalista uruguaio também o menciona. Mas teria mesmo existido tal decreto? Ou essa menção a “decreto de brancura” seria apenas uma “força de expressão” ou uma “licença poética” do autor de As Veias Abertas da América Latina? Essa última opção parece a mais crível, sobretudo quando se coteja a edição em castelhano do livro do uruguaio. Em sua edição original, El Futbol a Sol y Sombra, de 1995, Galeano escreve:En 1921, la Copa América iba a jugarse en Buenos Aires.

El presidente de Brasil, Epitácio Pessoa, formuló entonces un mandato de blancura: ordenó que no se enviara a ningún jugador de piel morena, por razones de prestigio patrio. De los tres partidos que jugó, la selección patria perdió dos.

Os fatos, assim descritos, começam a tomar nova direção: vê-se, pois, que no castelhano original, de 1995, o tal “decreto” já não aparece no texto de Galeano, que fala apenas em uma ordem (“mandato”). Ordem não é decreto e tudo leva a crer que houve um mal entendido quando da versão do texto espanhol para o português e para o francês.

É preciso dizer, a essa altura, que nós, os juristas, temos um apego quase patológico pela precisão da linguagem. Rigor lingüístico e apuro vocabular são indispensáveis no mundo do Direito, em que o exercício profissional exige, antes de tudo, o hábil manuseio de uma linguagem precisamente objetiva e tecnicamente complexa. A busca da precisão conceitual e da coerência lingüística é, para os juristas, um cacoete, daí a importância de se ressaltar mais uma vez: uma ordem pessoal não se confunde com um decreto do Estado.

Se a expedição de um decreto presidencial, com a força jurídico-vinculante que essa norma contém, pode ser descartada, resta ainda perguntar: e uma ordem houve? Teria Epitácio Pessoa pelo menos ordenado informalmente a proibição de negros na seleção brasileira de futebol de 1921?

Um dos maiores retratistas da sociedade brasileira do princípio do século vinte foi, sem dúvida, o jornalista e escritor mulato Lima Barreto, autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma. Em suas crônicas, reunidas em dois volumes de suas Obras Completas, o futebol é um tema recorrente. Numa dessas crônicas, originalmente publicada em outubro de 1921, um dia antes da estréia do Brasil naquela Copa América, ele afirma que houve sim uma ordem de Epitácio Pessoa para vetar a participação dos negros na seleção:

“O football é eminentemente um fator de dissensão. Agora mesmo, ele acaba de dar provas disso com a organização de turmas de jogadores que vão à Argentina atirar bolas com os pés, de cá para lá, em disputa internacional. O Correio da Manhã, no seu primeiro suelto de 17 de setembro, aludiu ao caso. Ei-lo: O Sacro Colégio de Football [a CBD] reuniu-se em sessão secreta, para decidir se podiam ser levados a Buenos Aires, campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue negro — homens de cor, enfim. (…) O conchavo não chegou a um acordo e consultou o papa, no caso, o eminente senhor presidente da República. Sua Excelência que está habituado a resolver questões mais difíceis como sejam a cor das calças com que os convidados devem comparecer às recepções de palácio; as regras de precedência, que convém sejam observadas nos cumprimentos a pessoas reais e principescas, não teve dúvida em solucionar a grave questão.

Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano. (…)” (“Bendito Football”, in Feiras e Mafuás, vol. X das Obras Completas de Lima Barreto, 1956, p. 94-95).

Segundo Lima Barreto, portanto, Epitácio Pessoa recomendara sim que não se permitissem negros na seleção brasileira que iria a Buenos Aires disputar a Copa América. Muitos anos depois, o jornalista Mario Filho incluiria essa versão na sua clássica obra “O Negro no Futebol Brasileiro”, de 1947. Lê-se, porém, que a única fonte utilizada por Lima Barreto para assegurar a maléfica intervenção de Epitácio Pessoa em desfavor dos negros na reunião da então Confederação Brasileira de Desportos (CBD) é uma notícia publicada no influente diário carioca Correio da Manhã.

O Correio da Manhã pertencia ao publisher Edmundo Bittencourt e tinha como diretor o célebre jornalista político Mário Rodrigues (pai de Mário Filho e Nelson Rodrigues). Desde a campanha presidencial entre Epitácio e Ruy Barbosa, em 1919, o jornal notabilizara-se por capitanear a oposição ao paraibano e não seria leviano ou ingênuo supor que a informação a respeito da recomendação racista de Epitácio Pessoa fosse exagerada ou distorcida.

A respeito da posição política do jornal carioca, a biógrafa Laurita Pessoa Raja Gabaglia informa:

Naquele tempo, o ‘Correio da Manhã’ já era, com o ‘Jornal do Commercio’, o nosso principal matutino, mas, ao contrário deste, era um órgão tradicional da oposição. Daí lhe advinha a sua imensa popularidade. Jornal brilhante, jornal de idéias, servido por um corpo de redatores e colaboradores de primeira ordem, devia-lhe a nação algumas das mais notáveis campanhas democráticas, a campanha civilista, entre outras. Mas trazia, de origem, a vocação ao combate. Desde a sua fundação, em 1901, não se cansava de atacar as nossas personalidades, em evidência e sobretudo o Governo.

Com o correr dos anos, estimulado pelo gosto pervertido do público, foi apurando a sua arte. Sob a direção constante de uma sumidade jornalística e de um homem de ódio, como Edmundo Bittencourt, realizou em breve a perfeição nesse gênero de publicidade. Tudo o que constituía a sua superioridade como jornal — colaboração talentosa e culta, eficiência profissional, uma extraordinária tenacidade nos empreendimentos — serviu, infelizmente, para torná-lo um instrumento terrível de demolição – tanto mais terrível quanto nenhum escrúpulo de delicadeza o detinha no arremesso à honra pessoal e aos recessos mais íntimos do lar. Era o abutre das reputações” (“Epitácio Pessoa”, ed. José Olympio, 1951, p. 434).

É bom lembrar que as tempestuosas relações entre Epitácio Pessoa e o mítico jornal tiveram uma considerável depreciação a partir dos editoriais publicados em 17 e 18 de junho de 1921, intitulados A Crise e o Presidente e “ Alucinação do Presidente, quando Epitácio passa a ser chamado, entre outras coisas, de “tirano de opereta”, “réprobo”, “comediante”, “rei dos colares” e “um enfermo, dominado pelo delírio de mandar”. Sobre esses ataques do Correio da Manhã, que culminariam com a publicação de virulentas cartas falsas atribuídas a Arthur Bernardes (aliado do Presidente), o próprio Epitácio viria depois a declarar:

“Há insultos que dignificam. Há solidariedades que comprometem. Em país algum do mundo, afirmo-o sem receio de contestação, em país algum do mundo se depara coisa que se aproxime sequer dessa repugnante deturpação da liberdade de imprensa que floresce entre nós” (“Obras Completas de Epitácio Pessoa — v. XXIII”, 1960, p. 3).

É preciso ter em mente, portanto, que é nesse cenário, muito distante da isenção jornalística e da objetividade factual, que se dá a notícia mencionada por Lima Barreto e reproduzida desde então na historiografia do futebol brasileiro. Ainda que se reconheça a inegável proximidade entre futebol e política e que, no Brasil do começo do século XX, já havia fortes traços racistas no então jovem esporte bretão, não é prudente atribuir a Epitácio Pessoa a expedição de um “decreto de branqueamento” ou mesmo de uma ordem para impedir a participação de negros na seleção brasileira de futebol que disputaria a Copa América de 1921.

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