Retrospectiva 2005

Nunca se falou tanto de bioética e biodireito no mundo

Autor

  • Erickson Gavazza Marques

    é sócio de Demarest e Almeida Advogados presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB-SP membro da Sociedade Brasileira de Bioética e da Sociedade de Bioética de São Paulo.

30 de dezembro de 2005, 10h28

No apagar das luzes de mais este final de ciclo, tem-se a nítida impressão de que nunca se discutiu tanto sobre bioética e direito quanto durante o ano de 2005. E várias polêmicas foram instauradas por conta disso. Algumas mais importantes, e que, por esta razão, receberam da mídia maior espaço para debate de idéias. Em meio a tantos assuntos discutidos na imprensa em geral, selecionamos alguns sobre os quais teceremos breves comentários, a saber: transplantes de órgãos, eutanásia, interrupção voluntária da gravidez, biossegurança e, por fim, as células-tronco embrionárias.

Transplantes de órgãos

Em março de 2005, o Governo Federal, por intermédio do Ministério da Saúde, comunicou a decisão de mudar o critério de ordem da fila de espera para transplante de fígado, dando, assim, prioridade para os pacientes com um quadro clínico mais delicado. E, para que fosse constatado o estado clínico do paciente para efeito de reorganização da fila de espera para transplante, o Ministério da Saúde pretendeu usar um método chamado Meld/Peld. Por esse sistema, já utilizado nos Estados Unidos, a expectativa de vida de um paciente na lista de espera poderia ser traduzida em um número que varia de 6 a 40, do menor risco ao mais grave. Os pacientes passam, então, por testes periódicos, e seu lugar na fila é determinado de acordo com a classificação obtida nos testes, os quais deverão espelhar a expectativa de vida do paciente naquele exato momento.

Mas como funcionam, hoje, os critérios de escolha daqueles que deverão receber um órgão através de transplante ? Toda pessoa precisando de um transplante deve inscrever-se em uma lista única de possíveis receptores. Assim, cada vez que surge um doador, a Central de Transplantes é informada (Lei 9.434/97, artigo 13) e processa a seleção dos possíveis receptores. Esses critérios de seleção se baseiam no tempo de espera, no grupo sangüíneo, no peso e na altura do doador. Portanto, o lugar na fila não é o único critério para o recebimento do órgão.

Às vezes, o selecionado em primeiro lugar para receber o órgão pode não estar em condições físicas para fazê-lo, ocasião em que será selecionada outra pessoa. Por conseguinte, pode ocorrer que o primeiro colocado na listagem, por ordem de chegada, não seja o primeiro a ser atendido. Mas, se não for o escolhido, o paciente conservará o seu lugar na fila de espera.

Ora, diante deste contexto, é relativamente fácil perceber porque a proposta governamental de alteração dos critérios da fila de transplantes gerou muita polêmica. E isso tanto por parte dos doentes que gostariam de ver respeitada a sua ordem de inscrição, quanto da parte do Ministério Público, que vê dificuldades na fiscalização do modelo a ser implantado.

De nossa parte, não pensamos diferente. Será inevitável a instalação de um contencioso entre os pacientes já devidamente inscritos e o organismo responsável pela implantação do novo sistema. Isso porque uma iniciativa dessa natureza é suscetível de gerar dois tipos de dificuldades: a primeira do ponto de vista médico e a segunda sob o âmbito jurídico.

Em se tratando do aspecto médico, é importante deixar claro que a constatação da gravidade da situação depende do médico que acompanha o doente, e não de critérios objetivos fixados por órgãos e instâncias administrativas. Essa é a crítica que fizemos em relação a essa iniciativa governamental. Afinal, a análise quanto ao estado de saúde do paciente, se melhorou ou piorou, só pode ser subjetiva, devendo ser confiada sobretudo ao profissional que já vem acompanhando o estado clínico do paciente.

Já no que diz respeito a situação jurídica gerada pela iniciativa ministerial, devemos ter em mente que ela pode ser tida como violadora do princípio constitucional de preservação do direito adquirido. Assim é que o artigo 5º, inciso XXVI, da Constituição Federal determina que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Portanto, aqueles que, sob a égide da atual legislação, estiverem ocupando determinada posição na lista, e que eventualmente, por conta de novos critérios, vierem a ser deslocados para posições mais distantes daquela em que se encontravam, poderão invocar o seu direito adquirido a que venha ser resguardado o seu lugar inicial na fila.

Eutanásia

Durante este ano, a questão da eutanásia foi objeto de várias discussões. Tanto por conta de fatos ocorridos no exterior como em razão de situações que aconteceram no Brasil.

Sem dúvida alguma, o fato mais marcante relacionado ao tema foi a batalha judicial entre os pais da norte-americana Terri Schiavo e o marido da paciente. Terri estava há 15 anos em estado vegetativo, após sofrer uma parada cardíaca que, segundo foi noticiado, teria sido causada por deficiência de potássio. Seus pais, após recorrerem várias vezes à justiça americana para impedir o desligamento dos tubos que alimentavam sua filha, tiveram diversas derrotas perante as Cortes Estaduais e Federais dos Estados Unidos da América.


Michael, o marido de Terri, defendia a tese do desligamento dos aparelhos que alimentavam a sua esposa sob a alegação de que estava simplesmente cumprindo um desejo dela, que teria assim se manifestado, reiteradas vezes, antes de entrar em estado vegetativo. Michael dizia que Terri teria suplicado a ele para que sua vida nunca fosse prolongada artificialmente caso ela viesse a se encontrar em estado vegetativo. Não obstante a ausência de documentação que comprovasse essa manifestação de vontade, e após vários diagnósticos médicos dando por inexistente qualquer possibilidade de melhora no quadro clínico da paciente, os Tribunais da Flórida, aplicando a legislação federal cabível, mantiveram as decisões anteriores no sentido de que fosse autorizado o desligamento dos aparelhos que mantinham Terri viva, o que foi feito no dia 18 de março. Após 13 dias sem os aparelhos, Terri veio a falecer.

Ainda no cenário internacional, o destaque ficou por conta da iniciativa de alguns países em regulamentar a questão da eutanásia. Na França, por exemplo, o Parlamento aprovou nova lei sobre o direito a morte digna na hipótese de pessoas portadoras de doença incurável. Embora não se trate de regulamentação da eutanásia em todos os seus aspectos, o fato é que a legislação aprovada pelo Parlamento passou a permitir a interrupção do tratamento, ou a rejeição de determinadas terapias, em casos específicos. Na verdade, o objetivo da norma que entrou em vigor na França é evitar a prática da distanásia, vale dizer o prolongamento demasiado e desnecessário de tratamentos de pacientes em fase terminal, cuja terapia tenha ínfima possibilidade de sucesso.

Na Inglaterra, por sua vez, a Câmara dos Lordes aprovou, em novembro, um projeto de lei que permite aos médicos do país realizarem a morte assistida de doentes terminais que tenham o firme propósito de deixar de viver. Assim, trata-se, na hipótese, de tentativa de legalização da eutanásia passiva. Ainda de acordo com o projeto de lei, é permitido ao médico a prescrição de dose letal de medicamento a pacientes terminais que estejam passando por sofrimento insuportável. O que constitui, ao menos em princípio, hipótese de eutanásia passiva, pois a atitude do médico estaria restrita a prescrição do medicamento letal, cabendo ao paciente a ingestão do mesmo. O projeto aguarda manifestação das outras instâncias do parlamento inglês.

Já na Alemanha, o debate público sobre a legalização da eutanásia ativa foi retomado em outubro, após a criação de um escritório de ajuda ao suicídio, localizado na cidade de Hanover.

No Brasil, o pai do garoto Jhéck Breener de Oliveira pediu à Justiça que fosse permitido o desligamento dos aparelhos que vêm mantendo vivo o seu filho. Jhéck tem uma rara doença degenerativa do sistema nervoso central, e segundo o diretor clínico e chefe do CTI Infantil do hospital em que Jhéck estava internado, não havia chance alguma de recuperação.

O pedido judicial foi feito após o pai ter tomado conhecimento de que o quadro de saúde do seu filho de quatro anos era irreversível. A mãe da criança, por sua vez, discordou totalmente do pedido feito pelo pai, o que o levou a, posteriormente, tomar a decisão de desistir do pedido de desligamento dos aparelhos.

No mês de setembro, o Estado prometeu uma UTI na casa de Jhéck, com todos os equipamentos que permitissem ao garoto Jhéck continuar a se beneficiar do tratamento, independentemente da sua expectativa de vida.

Interrupção voluntária de gravidez

No Brasil, não foram poucos os debates em torno de proposta de descriminalização do aborto. Pesquisa Datafolha, no mês de abril, constatou que a maior parte dos entrevistados, vale dizer 58% preferem que a lei sobre o aborto continue do jeito que está. Já 22% querem a ampliação do rol de situações onde o aborto é permitido, e 13% defendem que a interrupção deixe de ser crime em qualquer situação.

No mês de julho foi apresentado um anteprojeto de lei sobre aborto, elaborado por uma comissão tripartite convocada pelo governo federal. O anteprojeto tem como principais pontos: (i) descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação, (ii) ampliar o prazo da interrupção da gravidez para 20 semanas em casos de estupro e (iii) não determinar limite de tempo para o aborto em casos de grave risco à saúde da mulher e de má-formação do feto. Porém, em razão de várias manobras da parte de movimentos que se opõe a legalização do aborto, o anteprojeto teve a sua tramitação prejudicada.

Quanto aos tribunais, alguns proferiram decisões polêmicas em se tratando de aborto. Com efeito, foram concedidas liminares autorizando a interrupção de gravidez em casos de anencefalia. Isso ocorreu nos Estados do Rio Grande do Sul (TJ-RS, 1ª câmara criminal, relator desembagador. Marcel Esquivel Hoppe, v.u., j. 05/10/1005, Revista Conjur 7/10/2005), Pernambuco (TJ-PE, 3ª câmara cível, relator desembargador Sílvio de Arruda Beltrão, v.u., j. Revista. Conjur 10/05/2005), Minas Gerais (TJMG, 13ª câmara cível, relator desembargador Francisco Kuplidowski, v.u., j. 04/08/2005, Revista. Conjur 5/08/2005) e Goiás (13ª vara criminal de Goiás, Revista. Conjur 28/09/2005).


Com o intuito de uniformizar tais decisões emanadas das Cortes Estaduais, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se pronunciar sobre a possibilidade de aborto de fetos com anencefalia. Assim é que a CNTS — Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde propôs uma Ação de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com fundamento no artigo 1º da Lei 9.882/99, indicando como preceitos constitucionais ofendidos o artigo 1º, inciso IV (dignidade da pessoa humana), artigo 5º, inciso II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade) e artigos 6º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da Constituição Federal, bem como os artigos 124, 126 caput, e 128, incisos I e II, do Código Penal, enquanto representativos de atos do Poder Público causadores da lesão. Isso porque os citados dispositivos do Código Penal proíbem que se pratique a antecipação terapêutica do parto nas hipóteses de fetos anencéfalos.

Por conseguinte, a Confederação pediu ao Supremo Tribunal Federal que declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, como sendo dispositivos impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo, diagnosticados por médico habilitado, de modo a permitir-se que a gestante possa submeter-se a tal tratamento terapêutico sem a necessidade de apresentação de prévia autorização judicial.

A Suprema Corte não se pronunciou definitivamente sobre o mérito da questão. Mas, por sete votos contra quatro, a Corte entendeu que a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental constituiu-se, no caso concreto, e ainda que por via indireta, um meio tecnicamente adequado para apreciação da legalidade, ou não, da interrupção da gravidez em caso de gestação de feto anencéfalo.

Em âmbito internacional, um referendum sobre aborto foi organizado em Portugal. Os resultados da consulta popular foram rejeitados pelas autoridades, eis que ela foi considerada inconstitucional por ter sido feita, por duas vezes, sobre o mesmo assunto, ainda na mesma legislatura. De fato, as leis sobre aborto, em Portugal, são as mais rígidas da Europa, sendo permitido o aborto apenas em circunstâncias muito excepcionais, como no caso de gravidez resultante de estupro ou, ainda, nos casos em que a mesma implique em ameaça para a saúde da gestante.

Na Itália, muitas discussões giraram em torno da autorização, para consumo, da pílula abortiva, mais conhecida como RU-486. Trata-se de uma droga que bloqueia a ação do hormônio progesterona, cuja presença é conditio sine qua non para a manutenção do estado de gravidez. Em meio a esse debate, o Papa Bento XVI apoiou o governo italiano na pretensão de enviar ativistas aos centros de aconselhamento sobre aborto para convencerem as mulheres a não interromperem suas gestações.

Biossegurança

Em 24 de março, começou a vigorar a Lei 11.105/2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição Federal, estabelecendo normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM’s – e seus derivados.

A Lei 11.105/2005, mais conhecida como Nova Lei de Biossegurança, criou o CNBS — Conselho Nacional de Biossegurança, reestrutura a CTNBio — Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, além de fixar as bases da política nacional de biossegurança.

Como resultado de uma evolução legislativa que começou com a Lei 8.974/95 (a primeira Lei de Biossegurança), a Lei 11.105/05 traça os limites de atuação daqueles que pretendem trabalhar com organismos geneticamente modificados e seus derivados.

Assim, o artigo 1º da Lei 11.105/2005 enumera as atividades e/ou projetos cuja prática é permitida: toda a forma de liberação e/ou descarte de OGM’s no meio ambiente, na forma de cultivo, manipulação, transporte, transferência, importação, exportação, armazenamento e consumo. Destas atividades, a mesma lex diferencia a pesquisa do que vem a ser exploração comercial. Como atividades de pesquisa entende-se aquelas que tiverem sendo realizadas com o intuito de estudo, em laboratório, em regime de contenção ou no campo (artigo 1º, parágrafo 1º). Já o uso comercial não se encontra definido na norma, o que nos leva a concluir que a sua conceituação far-se-á por exclusão. Assim, quando as atividades descritas não se enquadram no conceito de pesquisa, entende-se que sejam para uso comercial (artigo 1º, parágrafo 2º).

A Lei de Biossegurança limita às pessoas jurídicas a prática de atividades envolvendo manipulação de organismos geneticamente modificados. Essas empresas, para a prática de engenharia genética, deverão requerer a CTNBio emissão de CQB (Certificado de Qualidade em Biossegurança).


No elenco das proibições, o artigo 6º da lei veda a prática das seguintes atividades, a saber: 1) implementação de projeto relativo a OGM sem a manutenção de registro de seu acompanhamento individual; 2) realização de ”engenharia genética em organismo vivo ou o manejo “in vitro” de ADN/ARN natural ou recombinante, realizados em desacordo com as normas previstas” em lei; 3) prática de “engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano; 4) clonagem humana; 5) destruição ou descarte no meio ambiente de OGM e seus derivados em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e entidade de registro e fiscalização, referidos no artigo 16” da lei; “6) liberação no meio ambiente de OGM’s ou seus derivados, no âmbito de atividades de pesquisa, sem a decisão técnica favorável da CTNBio e, no casos de liberação comercial, sem o parecer técnico favorável da CTNBio, ou sem o licenciamento do órgão ou entidade ambiental responsável, quando a CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental, ou sem a aprovação do CNBS, quando o processo tenha sido por ele avocado”; 7)” a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologia genéticas de restrição do uso”.

O artigo 8º cria o CNBS — Conselho Nacional de Biossegurança, com a tarefa de desempenhar as seguintes atribuições: 1) formular a política nacional de biossegurança (capt), 2) fixar as suas diretrizes administrativas (inciso I); 3) assessorar a CTNBio (inciso II); 4) decidir quanto ao uso comercial de OGM (inciso III). O CNBS é composto por 10 Ministros de Estado, mais o Secretário Especial de Agricultura e Pesca (art. 9º).

A CTNBio, prevista no artigo 10 da lei, é um órgão hierarquicamente subordinado ao CNBS, o que não podemos deixar de lamentar. A Comissão é composta de 27 membros (artigo 11), sendo 9 representantes dos ministérios, 12 especialistas vindos da comunidade científica ligados a área de saúde humana, animal, vegetal e meio ambiente); e 6 especialistas indicados pelos ministros das pastas relacionadas ao consumidor, saúde, meio ambiente, agricultura familiar, biotecnologia e saúde do trabalhador.

As decisões de CTNBio, de conteúdo técnico, têm caráter vinculante (artigos 14, parágrafos 1º e 2º e 16 parágrafo 3º), sendo que o quorum mínimo para as deliberações do órgão é de 14 membros presentes (artigo 11, parágrafo 7º) e as decisões tomadas por maioria absoluta de seus membros, exceto nos processos de liberação comercial de organismos geneticamente modificados e seus derivados, para os quais se exige que as decisões sejam tomas por maioria qualificada.

No rol das atribuições previstas no artigo 14 da lei estão aquelas de caráter normativo (incisos I, II, V, VI, XVI), técnico (incisos III, IV,VIII, X, XIII, XIV, XV, XVII, XVIII, XX, XXII), institucional (inc. VII), decisório (IX, XII, XXI) e administrativo (inciso XI, XXIII).

É importante notar que a autorização concedida pela CTNBio para a inserção de OGM’s no meio ambiente vincula os demais órgãos da administração, tais como Ministérios do Meio Ambiente, Agricultura e Saúde, no que diz respeito aos aspectos de biossegurança do organismo geneticamente modificado a ela submetido.

Por oportuno, a CTNBio poderá exigir, ou não, a realização do estudo prévio de impacto ambiental, e seu respectivo relatório (o EIA/Rima), se entender necessário, estando esta discricionariedade prevista também em nossa carta constitucional (artigo 225, parágrafo 1°).

E foi nesse aspecto que a constitucionalidade da nova Lei de Biossegurança foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal. A Procuradoria-Geral da República ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.526) questionando a constitucionalidade da lei de biossegurança ao facultar à CTNBio a exigência do EIA/Rima. Entende o autor da ação que o legislador deveria exigir tal estudo em qualquer situação. Em outras palavras, não poderia o legislador ordinário facultar o que o legislador constitucional exige. Ocorre que o legislador constitucional também não exige: ele faculta aos poderes públicos procederem a tal exigência.

A despeito dos argumentos expostos na ADI 3.526, é importante observar que, no âmbito das atividades de pesquisa e exploração comercial, a CTNBio é o órgão responsável por decidir os casos em que a atividade da empresa é potencial ou efetivamente poluidora, bem como a necessidade do licenciamento ambiental e, por via de conseqüência, da realização de estudo prévio de impacto ambiental. Mas ressalvado ao CNBS, em caso de aprovação comercial, dar a última palavra enquanto instância recursal. Daí porque, e ao contrário do que está dito na ADI 3.526, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região ter decidido, em acórdão proferido em sede de apelação (Ação Civil Pública 1998.34.00.027682-0, relatora. desembargadora Selene de Almeida) que a CTNBio poderá, ou não, de acordo com a sua discricionariedade técnica, exigir previamente o estudo de impacto ambiental, nos termos do que estabelece o artigo 225, parágrafo 1º, inciso IV, da Constituição Federal.


Por conseguinte, verifica-se que a Constituição Federal impõe ao exercício das atividades contempladas pela Nova lei de Biossegurança, duas condições para a exigência de estudo prévio de impacto ambiental, a saber: 1) que se trate de “atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente”, 2) que o referido estudo seja exigido na forma da lei, compreendida esta em sentido amplo.

Nesse aspecto, é importante salientar que, consoante o texto do inciso IV do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição Federal, caberá a lei — na forma da lê” —- definir quais as atividades que, submetidas a análise de risco, poderão ser tidas como potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental e, por via de conseqüência passíveis de EIA/Rima. E justamente preenchendo o papel que lhe foi atribuído pela Constituição Federal (pelo citado artigo 225) é que a Lei nº 11.105/2005, em seu artigo 14, inciso XX, determina que compete a CTNBio “identificar atividades e produtos decorrentes do uso de OGM e seus derivados potencialmente causadores de degradação do meio ambiente ou que possam causar riscos à saúde humana”.

De fato, caberá a CTNBio deliberar, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como sobre a necessidade de licenciamento ambiental (Decreto 5.591/05, artigo 54). E, nessa tarefa de analisar a probabilidade de dano desta ou daquela atividade, a CTNBio deverá observar, nessa análise, certa gradação quanto a potencialidade do risco. E, a identificação das obras ou atividades tidas como potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental far-se-à segundo uma classificação de risco a ser estabelecida pela própria CTNBio no prazo de 90 dias contados da sua instalação (Decreto 5.591/2005, artigo 86, inciso II). Mas antes dessa definição, a CTNBio deverá ser observada a classificação de risco prevista no Anexo I do Decreto 5.591/05 (Decreto 5.591/2005, artigo 86, inciso II).

Por conseguinte, denota-se que a Nova Lei de Biossegurança esta devidamente amparada pelo artigo 225, parágrafo 1º, inciso IV, da Constituição Federal que, por sua vez, atribuiu aos Poderes Públicos, no caso a CTNBio, a tarefa de exigir, na forma da lei, na hipótese a Lei 11.105/2005, estudo prévio de impacto ambiental, nas situações também especificadas no texto constitucional. Mas a tarefa de dizer se a Lei de Biossegurança é, ou não, conforme a Constituição, está a cargo do Supremo Tribunal Federal, a quem caberá dar a última palavra sobre o assunto.

Em novembro, o Poder Executivo, fazendo uso das prerrogativas conferida pelo artigo 84, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição, editou e Decreto 5.591, publicado no Diário Oficial da União do dia 23, após quase oito meses de discussões.

O Decreto 5.591/2005, retomando todos os temas e os termos da nova Lei de Biossegurança, não traz nenhuma grande novidade. Apenas salientaria o que consta do parágrafo único do artigo 19, onde se vê a exigência de, pelo menos, dois terços de votos favoráveis para aprovação de liberação comercial de organismos geneticamente modificados.

Por fim, o Decreto 5.591/2005 prevê duas classes de risco, I e II, para efeito de análise: na primeira classe estão os organismos classificados como receptores ou parentais, vetores/insetos e organismos geneticamente modificados, que preencham os critérios estabelecidos nas letras A, B, C e D do anexo I; na segunda classe de risco — classe II — estão incluídos todos os organismos que não se encontram dentre aqueles previstos na classe de risco I.

Células-tronco

A aprovação da Nova Lei de Biossegurança — Lei 11.105/2005 — causou polêmica também no campo das pesquisas com células-tronco. O alvo da discussão tem sido o artigo 5º da lei, que dispõe sobre a utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia. E o que vem a ser célula-tronco embrionária?

Células-tronco são células não-diferenciadas, vale dizer, todas idênticas, tendo a capacidade de diferenciar-se, de se transformar em mais de 200 tipos de células distintas, como por exemplo, células do fígado, células do sistema nervoso, células sanguíneas. Essas células têm também a capacidade de multiplicar-se indefinidamente. Ora, essa característica peculiar das células-tronco é o que as torna extremamente importantes e interessantes do ponto de vista médico-científico. Elas podem ser encontradas no embrião, ocasião em que são chamadas de células-tronco embrionárias, ou no feto, no sangue do cordão umbilical ou, ainda, em certos órgãos de um indivíduo adulto, como por exemplo na polpa dos dentes (descoberta recente de cientistas coreanos). Nessas últimas três situações estamos diante de células-tronco adultas. A diferença entre as células-tronco embrionárias e as células-tronco adultas é que aquelas podem originar-se em quase todos os tipos de células existentes, à exceção daquelas que formarão a placenta, a respectiva membrana e o líquido amniótico.


E, por achar que a prática de extração de células-tronco de embriões para estudos implica em violações do direito a vida, e do direito a dignidade da pessoa humana, a Procuradoria Geral da República ingressou com uma ação perante o Supremo Tribunal Federal pleiteando a declaração de inconstitucionalidade do artigo 5º da Nova Lei de Biossegurança (ADI 3.510). Segundo o representante do parquet federal, se a vida começa desde a concepção, a lei que autoriza a utilização de embriões descartáveis para a obtenção de células-tronco seria contrária a constituição, por viabilizar a destruição da vida.

A sociedade civil, por sua vez, manifestou-se acerca do problema. A OAB/SP, por intermédio de sua Comissão de Bioética e Biodireito, opinou contrariamente a qualquer declaração de inconstitucionalidade do referido dispositivo de lei. Já a ONG Movitae — Movimento em Prol da Vida solicitou a sua admissão no feito como parte interessada no desfecho desse litígio. Na solicitação de admissão na lide, a ONG apresentou ao Supremo Tribunal Federal um estudo apontando a viabilidade ética, jurídica e técnica para tais pesquisas com células-tronco extraídas de embriões humanos passíveis de descarte pelas clínicas de fertilização assistida.

Diante deste contexto, a dúvida que se apresenta é a seguinte: o artigo 5º seria mesmo inconstitucional ?

A resposta é negativa. Isso porque a Constituição Federal, em nenhum momento traça os limites do que vem a ser um organismo com vida. Diz, sim, no caput do artigo 5º, que é garantida a inviolabilidade do direito à vida. E nem poderia ser de outra forma, eis que a biologia, a medicina e a genética ainda não chegaram a um consenso sobre quando se começa a vida. Sabe-se que existem cerca de dezessete critérios para se determinar quando a vida começa. Esses critérios vão desde o momento da concepção até o do nascimento com vida, passando pelas várias fases do desenvolvimento do organismo que, mais tarde, dará origem a um ser humano.

Na verdade, as leis não definem o que vem a ser vida, mas sim as conseqüências do nascimento com vida. E, em algumas situações, a lei faz retroagir tais direitos ao momento da concepção, para salvaguardar os interesses daquele que nasce com vida (Novo Código Civil, artigo 2º.) E por uma razão muito simples: não cabe ao legislador ser casuístico a ponto de definir questões de tamanha complexidade, difíceis até mesmo para os iniciados no assunto, no caso os médicos, biólogos, geneticistas, biólogos moleculares, dentre outros. E, se assim o é, exigir que a Constituição tenha definido o que a ciência ainda não o fez é querer que o legislador constitucional tenha se pronunciado sobre assuntos que são do seu total desconhecimento. O que pode implicar num verdadeiro desastre para o desenvolvimento e bem-estar da sociedade moderna. Afinal de contas, nem tudo pode ser traduzido em leis e normas de direito positivo.

Com efeito, o artigo 5º da mencionada lei autoriza, “para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento …” Desse enunciado verifica-se que o legislador colocou dois elencos de condições para a realização de tais pesquisas: umas que impõem certas condições técnicas, e outras exigindo o cumprimento de determinadas formalidades. No primeiro elenco as condições são as seguintes: 1) embriões humanos obtidos por fertilização in vitro; 2) embriões inviáveis; ou 3) embriões congelados há três anos ou mais, na data da publicação da Lei 11.105/05, ou que, já congelados na data da publicação da referida Lei, depois de completarem três anos, contados a partir da data de congelamento. No segundo, as exigências se limitam aos documentos necessários para a realização dos experimentos: (i) consentimento formal e escrito, dos genitores; (ii) apreciação e aprovação do projeto de pesquisas ou terapia com células-tronco embrionárias humanas pelos comitês de ética das instituições de pesquisa e centros de saúde que se dedicam a tais pesquisas.

Assim, se por um lado a inteligência humana é infinita na busca da compreensão de como se comporta a natureza (e esse é o verdadeiro sentido da expressão ciência), por outro lado é importante que essa mesma inteligência estabeleça limites para a sua própria atuação.

Destarte, em sendo tão importantes as pesquisas com células-tronco embrionárias, o que o legislador permitiu que fosse feito é a realização de estudos e pesquisas com essas células-tronco dentro de limites rígidos estabelecidos, proibindo-se toda e qualquer prática que se afaste de tais limites. Daí a razão de ser dos artigos 6º, 24 e 26 da Lei de Biossegurança, que traçam os parâmetros precisos para utilização daquelas células em pesquisas e estudos.


Em se tratando de limites, o artigo 6º da lei proíbe a prática de engenharia genética em embrião humano e a clonagem humana para fins reprodutivos.

Já o artigo 24 estabelece que a utilização de embrião humano, em desacordo com o que dispõe o artigo 5º da Lei de Biossegurança, pode implicar em detenção de um a três anos, sem prejuízo de eventual multa aplicável. Por sua vez, o artigo 26 determina que a realização de clonagem humana pode culminar na aplicação de uma pena de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo da multa.

Ora, enquanto o objeto jurídico penalmente tutelado é, no caso do artigo 24, a utilização do embrião exclusivamente para os fins previstos no artigo 5º da Lei de Biossegurança, na hipótese do artigo 26 o que o legislador pretende proteger é a originalidade que cada ser humano traz em si desde o nascimento, que faz com que nenhum ser existente na face da terra seja exatamente igual ao outro. E isso mesmo considerando as hipóteses de nascimento de clones naturais.

Outro aspecto importante é que a Lei de Biossegurança contem proibição expressa quanto a comercialização de células-tronco. Isso porque, se a Constituição Federal, em seu artigo 199 parágrafo 4º, estabelece que “a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento …, sendo vedado todo tipo de comercialização”, a Lei de Biossegurança não poderia dispor de outra forma. E o fez expressamente: no parágrafo 3º, do já citado artigo 5º da Lei de Biossegurança, o legislador, “ad instar” do que está previsto na Carta Magna de 1988, vedou expressamente a comercialização de células-tronco, determinando que a realização dessa prática deva implicar no crime previsto no artigo 15 da Lei de Transplantes de Órgãos (Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997).

Portanto, a despeito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.510), o artigo 5º da Lei de Biossegurança parece estar inserido dentro de rígidos parâmetros de biossegurança, permitindo a realização de pesquisas e estudos com células-tronco embrionárias em total observância dos preceitos que regem o ordenamento jurídico vigente. Vemos que, tanto no topo (Constituição Federal) quanto na base (legislação infra-constitucional) de nossa pirâmide normativa, não há elementos que possam atestar, com seriedade, qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade da mencionada regra. E isso, em benefício de todos os brasileiros que sofrem à espera de um verdadeiro milagre da ciência, o que, em muitos casos, pode ser entendido como “terapia com células-tronco”.

Em matéria de financiamento público para pesquisas com células-tronco, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) aprovou dotação de verbas para dois projetos de criação de linhagens de células-tronco embrionárias humanas (CTEH’s), ambos da USP. Isso porque o desenvolvimento de linhagens brasileiras são de extrema importância para o avanço das pesquisas nesse campo, pois elimina a necessidade de importar tais células do exterior, um processo burocrático e que pode se arrastar por meses, além do fato de se correr o risco do uso das células-tronco estrangeiras estar eventualmente sujeito a limitações legais por conta de direitos de propriedade industrial.

Em outros países, a discussão em torno da utilização, ou não, de células-tronco embrionárias para pesquisas e estudos já aconteceu há muito tempo. O momento é outro: de avanço nas pesquisas.

Em novembro, o cientista da Coréia do Sul, Woo-Suk Hwang, que criou os primeiros embriões humanos clonados para fins terapêuticos, admitiu que tinha conhecimento das atitudes eticamente questionáveis por parte de alguns membros de sua equipe, tais como a utilização, nos estudos, de óvulos das próprias pesquisadoras envolvidas nos projetos. Além da procedência dos óvulos, um dos colaboradores da pesquisa, Roh Sung-il, reconheceu ter pago algumas mulheres para obter óvulos, o que é terminantemente proibido pela legislação sul-coreana que trata de questões de bioética. Por conta disso, Hwang deixou seu cargo de chefe do Centro Mundial de Células-Tronco.

Ainda na Coréia, foi anunciada a criação do primeiro banco de células-tronco do mundo, organizado por cientistas sul-coreanos. Este banco, que começou a funcionar em novembro, receberá doações de células somáticas de pacientes com doenças incuráveis, com a finalidade de se trabalhar com vistas a produzir, no futuro, tratamentos baseados em células-tronco.

No Reino Unido, cientistas anunciaram em setembro a criação de embriões humanos feitos por uma técnica de “concepção imaculada”, que não envolve fertilização por espermatozóide ou clonagem. O novo embrião foi resultado de partenogênese, uma forma comum de reprodução assexuada em muitos animais, exceto mamíferos. Por essa técnica, os seis embriões produzidos viveram de três a cinco dias, o que poderá representar, no futuro, uma fonte potencial para produção de células-tronco embrionárias humanas.

Outra vez, na Grã-Bretanha, o governo pretendeu consultar os cidadãos quanto a possibilidade, ou não, de se proceder a pesquisa com embriões para finalidades terapêuticas. Nesse sentido, a HFEA, organismo regulador que trata deste tipo de assunto no Reino Unido, elaborou um documento questionando a população quanto a ampliação, ou não, da utilização de células-troncos obtidas a partir de embriões, com o escopo de identificar genes vinculados a doenças como câncer ou o Alzheimer.

Nos Estados Unidos, os estudos avançam para a descoberta de um novo método para obtenção de células-tronco sem embriões. Criado por uma equipe de cientistas da Universidade de Harvard, esse método poderia acabar com as objeções éticas e religiosas que envolvem a questão da obtenção de células-tronco a partir de embriões humanos. Esses cientistas fundiram células-tronco embrionárias com células do tecido da pele de humanos adultos, que foram “reprogramadas em sua condição para embriões”. Porém, a nova técnica ainda não está pronta para uso habitual, e muito menos pode, no atual estágio das pesquisas, substituir as técnicas já existentes.

Na Europa, o Parlamento uma resolução sobre patentes de invenções biotecnologias, onde se reitera que as células-tronco não podem ser objeto de direitos de propriedade industrial. Afinal de contas, sendo as células-tronco parte do corpo humano, inconcebível a sua apropriação exclusiva por quem quer que seja. Aliás, a União Européia considera uma ilicitude patentear qualquer procedimento que inclua este tipo de células ou outras obtidas a partir delas.

Autores

  • é sócio de Demarest e Almeida Advogados, presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB-SP, membro da Sociedade Brasileira de Bioética e da Sociedade de Bioética de São Paulo.

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