Retrospectiva 2004

Retrospectiva: STF inaugura era mais ativa na interpretação constitucional.

Autores

  • Cláudia Fonseca Morato Pavan

    é advogada mestre em Direito Constitucional e fundadora do Instituto de Pesquisas Tributárias (IPT).

  • Ives Gandra da Silva Martins

    é professor emérito das universidades Mackenzie Unip Unifieo UniFMU do Ciee/O Estado de S. Paulo das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor honorário das Universidades Austral (Argentina) San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia) doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS catedrático da Universidade do Minho (Portugal) presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

7 de dezembro de 2004, 9h12

Muito embora o ano forense ainda não tenha acabado, já é possível um balanço acerca da atuação do Supremo Tribunal Federal ao longo de 2004. Como veremos no decorrer desse breve artigo, a cúpula do Judiciário brasileiro, que desempenha a nobre função de guardiã da Constituição Federal, passou por alterações em sua composição, mudança de presidência, reformas regimentais e enfrentou graves questões jurídicas, que suscitaram apaixonados debates nacionais.

O Supremo Tribunal Federal iniciou o ano de 2004 guiado pelas mãos de seu então presidente, ministro Maurício Corrêa, enfrentando as pressões do Poder Executivo para a aceitação do controle externo do Judiciário, um dos temas da Reforma do Judiciário. A posição inicial do Supremo Tribunal Federal foi não só contra o controle externo, mas, principalmente, de inegável defesa do Poder Judiciário, como bem retrata o incidente com a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU), Asma Jahangir, que defendia inspeção estrangeira para avaliar o Poder Judiciário brasileiro.

O então Presidente do Supremo Tribunal Federal foi categórico ao afirmar que receberia qualquer relator da ONU que quisesse conhecer o funcionamento da Corte, “Agora, se quiser vir à guisa de inspeção, isso jamais” (1).

Em um dos primeiros casos analisados pelo Plenário, o Supremo Tribunal Federal cuidou de preservar o direito fundamental de julgamento proferido por juiz imparcial, ao reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 9034/95, na parte em que conferia poderes inquistoriais ao juiz, ferindo o devido processo legal (2).

Passado um mês, o Plenário se defrontou com outra questão de grande relevância social e política, a fixação de critério para definição do número de vereadores. Ao julgar o RE 197.791 (3), o Supremo Tribunal Federal “adotou fórmula segundo a qual os municípios têm direito a um vereador para cada 47.619 habitantes” (4). Esse precedente foi aplicado para outros nove municípios quando do julgamento dos RE´s 266994, 274048, 274384, 273844, 276546, 282606, 300343, 295045 e 199522(5).

Dentre as alterações regimentais e institucionais, provocadas pelo então Presidente Maurício Corrêa, no exercício de 2004, vale mencionar a regulamentação Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário (6); a criação do Comitê Gestor de Estatística do STF (Resolução 284); o lançamento de livros, contendo a jurisprudência da Casa (7); o lançamento do Curso de Especialização de Controle de Constitucionalidade, decorrente de termo de cooperação técnica firmado com o Senado Federal (8); a inauguração do Laboratório de Conservação e Restauro de Documentos (9); a instituição do e-STF, sistema que permite o uso de correio eletrônico para prática de atos processuais no âmbito do Tribunal (Resolução 287); a atribuição de competência ao ministro-relator para julgar Reclamação, quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada (art. 161 RISTF); e a organização de aulas magnas, com professores convidados, voltadas ao aperfeiçoamento dos funcionários, transmitidas pela TV Justiça (10).

Em maio deste ano, o ministro Maurício Corrêa foi aposentado compulsoriamente. A vaga foi preenchida, honradamente, pelo ministro Eros Grau. Para o exercício da Presidência e da Vice-Presidência, foram eleitos os ministros Nelson Jobim e Ellen Gracie, respectivamente.

Sob a nova Presidência, o Supremo Tribunal Federal enfrentou outro caso de grande repercussão social, a exigência de recolhimento de contribuição social para a previdência, dos inativos e pensionistas, exigida pela EC 41/03. O julgamento das ações que cuidaram da matéria foi iniciado em 26/5/04, mas apenas em 18/8/04 sobreveio a decisão final que, por maioria de votos, reconheceu a constitucionalidade da exigência (11).

Em 9 de junho de 2004, o Supremo Tribunal Federal foi, pela primeira vez na história, presidido por uma mulher, a ministra Ellen Gracie, que substituiu o ministro Jobim naquela assentada.

Vieram as férias forenses e com elas, decisão singular do ministro Marco Aurélio, permitindo, liminarmente, a antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos (12), matéria que tem sido objeto de acesos debates (13). O feito foi levado a referendo pelo Plenário em 2/8/04. O Tribunal decidiu postergar a questão para apreciar, previamente, questão de ordem suscitada pelo Procurador-Geral da República, com relação a legitimidade ativa, pertinência temática e cabimento da ADPF.

Em sessão de 20/10/04, a liminar foi revogada. Quanto à questão de ordem, após o voto do ministro Marco Aurélio, reconhecendo o cabimento da ação, sobreveio pedido de vista do ministro Carlos Ayres Britto. Quando finalizada essa parte do julgamento, o Tribunal deverá marcar data para a primeira audiência pública em sede de controle objetivo de constitucionalidade.

O espírito moderno do atual presidente do Supremo Tribunal Federal (14), organizou o sistema de pauta temática para julgamento do Plenário. Com o propósito de reduzir o número de pedidos de vista, a pauta é publicada com antecedência, envolvendo todos os casos acerca de um mesmo tema. Muito embora essa inovação não esteja atingindo o objetivo de agilizar o julgamento dos feitos, transmite maior segurança ao jurisdicionado que é prevenido, de antemão, acerca dos julgamentos que lhe digam respeito.

Preocupado com a morosidade da Justiça, o ministro Nelson Jobim conclamou todos dos Tribunais a colherem dados indicadores a respeito do Judiciário. Esse exame nacional já produziu resultados. Os Tribunais do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Sergipe, adotando as fórmulas preconizadas pelo ministro Jobim, identificaram o grau de utilização de insumos, a litigiosidade e a carga de trabalho dos juízes (15).

As questões políticas, como sempre, chegaram ao Supremo Tribunal Federal, que foi provocado a se manifestar acerca de vários atos cometidos por CPI´s. Em 22/9/04, surpreendentemente, o Plenário decidiu que as CPI´s estaduais têm, tal como as CPI´s federais, o poder de quebrar o sigilo bancário de seus investigados, desde que respeitados os limites impostos pela jurisprudência a atos dessa natureza (16).

Em matéria tributária, os contribuintes sofreram importantes derrotas. Em primeiro lugar, o Plenário reconheceu a constitucionalidade da LC 102/00, na parte em que parcela, em 48 meses, o aproveitamento de abatimento de ICMS relativo a aquisições de ativo permanente (17). Ficou, também, consignado que Partido Político não pode questionar, em sede de mandado de segurança coletivo, questões tributárias, dada a sua natureza de direito individual. Mais recentemente, o Tribunal reconheceu a legitimidade da retenção de 11% sobre o valor da nota fiscal ou fatura do cedente de mão-de-obra, a título de contribuição sobre a folha de salários (Lei 9711/98) (18).

Os jurisdicionados ainda aguardam o desfecho de questões de grande relevância, cujos julgamentos foram iniciados em 2004, mas suspensos em virtude de pedidos de vista, tais como: isenção de Cofins para sociedades uniprofissionais; inconstitucionalidade do alargamento da base de cálculo do PIS e da Cofins, perpetrada pela Lei 9718/98; constitucionalidade da MP 144/03 que definiu o modelo do setor elétrico; definição acerca do poder de investigação do Ministério Público; limitação porcentual à compensação de prejuízos fiscais; creditamento de IPI na aquisição de insumos isentos, sujeitos à alíquota zero ou não-tributados.

O ano de 2004 já se aproxima do fim. Houve significativa queda no número de demandas distribuídas perante o Supremo Tribunal Federal, em relação aos anos anteriores. No ano de 2003, por exemplo, foram 109.965 feitos distribuídos, enquanto que neste ano, o número caiu para 62.273. Desse total, a maior parte — 94,96% –, corresponde a agravos de instrumentos e recursos extraordinários. De qualquer sorte, em um ano no qual o Supremo Tribunal Federal apreciou 274 ADI´s (19), teve, ainda, que se debruçar sobre questões de menor monta, tal como Habeas Corpus impetrado por acusado de furtar um boné! (20)

Outras questões de igual relevância deixaram de ser abordadas nesse artigo não por mero descuido, mas por respeito ao leitor e ao espaço que nos foi destinado (21), sendo de se ressaltar que, no ano que se encerra, o Supremo Tribunal Federal seguiu cumprindo sua missão constitucional, e seus membros, homens de notório saber jurídico, guiados por valores éticos e morais, procuraram, dentro da falibilidade humana, prestar a melhor jurisdição possível.

Notas de rodapé

1- Notícia de 12.02.2002, divulgada às 18:48 hs, no site: www.stf.gov.br

2- Supremo Tribunal Federal. Brasil. ADI 1570. Relator Min. Maurício Corrêa. Seção de 12.02.2004.

3- Comentários a esse acórdão: ARAUJO, Luiz Alberto David. “A fixação dos número de vereadores para as Câmaras Municipais e a interpretação do Supremo Tribunal Federal”. Foro Constitucional Iberoamericano”. Página de Internet; dirección URL: http://www.uc3m.es/bjc.htm. Revista nº 06.

4- Notícia de 24.03.2004, divulgada às 15:22 hs, no site: www.stf.gov.br

5- Notícia de 31.03.2004, divulgada às 17:52 hs, no site: www.stf.gov.

6- Notícia de 26.03.2004, divulgada às 17:51 hs, no site: www.stf.gov.

7- Até o momento já foram editados sete volumes da coleção “Ações Diretas de Inconstitucionalidade – Jurisprudência” e o volume intitulado “Crime de Racismo e Anti-semitismo”, todos pela Editora Brasília Jurídica Ltda.

8- Notícia de 29.04.2004, divulgada às 19:14 hs, no site: www.stf.gov.

9- Notícia de 19.04.2004, divulgada às 20:22 hs, no site: www.stf.gov.

10- Entre os professores convidados, cite-se: Ives Gandra da Silva Martins, Alexandre de Moraes, Cláudio Fonteles e Sacha Calmon.

11- Notícia de 18.08.2004, divulgada às 21:57 hs, no site: www.stf.gov.

12- Notícia de 01.07.2004, divulgada às 16:57 hs, no site: www.stf.gov.

13- A esse respeito, um dos autores do presente artigo, Ives Gandra da Silva Martins, escreveu os seguintes artigos: “Pode o STF Legislar?”, publicado em “O ESTADO DE SÃO PAULO”, de 10.11.2004; “O Direito à Vida do Anencefálico”, publicado em “FOLHA DE SÃO PAULO”, de 19.10.2004; “Aborto uma questão constitucional”, publicado em “FOLHA DE SÃO PAULO”, de 05.12.2003; “Como se faz um aborto”, publicado em “JORNAL DO BRASIL”, 18.08.2004; “O Supremo e o Homicídio Uterino”, publicado em “JORNAL DO BRASIL”, de 15.07.2004.

14- Ressaltado por um dos autores do presente, no artigo “Jobim e a Modernização da Justiça”, publicado no “JORNAL DO BRASIL”, de 21.10.04.

15- Notícia de 23.09.2004, divulgada às 14:40 no site: www.stf.gov.br e notícia publicada no “VALOR”, de 18.11.2004, no Caderno Legislação & Tributos, sob o título “RS tem um processo por três habitantes”.

16- Notícia de 22.09.2004, divulgada às 19:56 no site: www.stf.gov.br.

17- Supremo Tribunal Federal. Brasil. ADI 2325. Medida Cautelar. Relator Min. Marco Aurélio. Relator p/ acórdão Min. Carlos Velloso. Sessão de 23.09.2004.

18- Supremo Tribunal Federal. Brasil. RE 393.946. Relator Min. Carlos Velloso. Sessão de 03.11.2004.

19- Dados colhidos do Banco Nacional do Poder Judiciário.

20- Notícia divulgada dia 19.08.2004, às 20:11 hs, no site: www.stf.gov.br.

21- Cite-se, exemplificativamente, o tema do direito à imagem, enfrentando quando do julgamento do MS 24.832, no qual o impetrante buscava ver assegurado o seu direito de não ver divulgada sua imagem ao ser ouvido em audiência pública, pela CPI da Pirataria.

Autores

  • é sócia do escritório Advocacia Gandra Martins e conselheira do Conselho de Estudos Jurídicos da Fecomércio de São Paulo

  • é advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.

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