Juízes curiosos

O recrutamento de juízes no Brasil e o episódio de Santa Catarina

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23 de agosto de 2002, 18h21

Bernard Botein, juiz da Suprema Corte americana em 1957, responsabilizava o então secretário de Justiça por uma incômoda frase. “Um bom juiz deve, primeiro, ser honesto; segundo, possuir dose razoável de habilidade; terceiro, ter coragem; quarto, ser um cavalheiro e, finalmente, se tiver algum conhecimento da lei, isto será um bom auxílio”.

A lembrança vem a pretexto de recente episódio no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, onde 99,4% dos candidatos inscritos para o cargo de juiz substituto foram reprovados logo na primeira bateria de exames. Dentre mais de 1,7 mil inscritos, apenas sete se saíram bem em provas de múltiplas respostas. O Tribunal debitou o índice de reprovação ao “despreparo dos candidatos”. Divulgada a primeira prova, a explicação parece outra. A pretexto de avaliar os conhecimentos gerais dos bacharéis que pretendem vestir a toga, o Tribunal os questionou sobre a história oficial do Estado e outras referências locais.

Recolho algumas preciosidades. Pergunta-se quantos desembargadores nativos compunham o Tribunal em 1891, quais os limites territoriais e os dados do Censo 2000 em Santa Catarina. Outros temas menores: os intelectuais locais animados pelo Modernismo e os italianos recentemente canonizados.

O processo de recrutamento dos juízes no Brasil escancara na tragédia catarinense o seu calcanhar de Aquiles. Centenas de comarcas e varas continuam sem juízes porque o índice de aprovação nos concursos é baixíssimo. O que se desconhecia é que a seleção estava tão rigorosíssima assim, a ponto de exigir do candidato a leitura do saboroso “Guia dos Curiosos”, de Marcelo Duarte.

O Supremo Tribunal Federal já diagnosticava em 1975 que a seleção de juízes deve abranger o maior número possível de candidatos. O processo envolveria duas fases: um recrutamento mediante provas e títulos; depois, um curso de aperfeiçoamento sob responsabilidade de uma Escola de Magistratura. O STF com certeza se inspirava no modelo francês.

O juiz brasileiro é chamado a decidir relevantes questões da vida nacional. Dele se espera que vá além do tecnicismo jurídico e revele um perfil próximo ao do juiz imaginado por Botein. A ele se reserva a tarefa quase divina: ser o “intermediário entre a norma e a vida”.

Lavagem de dinheiro, crimes do colarinho branco, trabalho escravo, proteção ambiental e direito de minorias foram alguns dos temas mais freqüentes nas decisões judiciais. Aprendemos noutras searas para atender melhor ao que o velho Ferrara tinha como a melhor definição do juiz: a voz viva do Direito (viva vox iuris).

Os juízes parecem assim ter colhido muito mais da escola da experiência enquanto persiste o atual modelo de recrutamento.

A União tem competência para legislar sobre 90% das leis que regem a vida dos brasileiros. Advogados, juízes e promotores usam as mesmas leis processuais de Sul a Norte, realidade impensável nos EUA, onde cada estado legisla sobre quase tudo.

Regionalismo em qualquer processo de seleção a cargos públicos também inquieta o mesmo STF. Já se disse inconstitucional uma regra de edital a conferir pontos adicionais a candidatos locais tidos como “pioneiros”. (ADI-598, Brossard). É discriminação, ofensa à igualdade de oportunidades.

Deixo aos leitores concluir se é indispensável que um juiz saiba que o “uso do avião para fins bélicos é característica marcante” de um Estado brasileiro. Pode ser apenas um detalhe a quem incumbirá decidir sobre a vida, a liberdade e o patrimônio dos outros. Bortein bem que poderia acrescer que seu juiz imaginário também fala açoreano.

Leia as questões da prova de conhecimentos gerais do concurso para juiz no TJ-SC.

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