Alienação do afeto

Desamor e traição no casamento podem gerar indenização

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20 de novembro de 2001, 16h52

A aprovação do texto do novo Código Civil pela Câmara dos Deputados precipitou uma série de notícias que, em alguns casos, passou a noção de que seria um retrocesso a inserção do adultério como causa de separação judicial. O adultério pode deixar de ser ilícito penal ou crime, mas sempre foi e será ilícito civil, por importar em grave descumprimento do dever de fidelidade, dever este que é essencial em sociedades cujas famílias têm formação monogâmica. Portanto, o novo Código Civil não retrocede ao estatuir o dever de fidelidade entre pessoas casadas e o adultério como descumprimento deste dever.

A infidelidade ou traição no casamento pode gerar o direito à indenização, além de ser causa de separação judicial. Indaga-se, então, se a perda de amor, por si só, pode acarretar o direito do desamado à indenização.

Nos Estados Unidos da América vigora lei sobre “alienação de afeto” (alienation of affection), em nove estados (Alaska, Hawaii, Illinois, Mississippi, Missouri, New Mexico, North Carolina, South Carolina e Utah), que data de 1.700 e proporciona indenizações a partir de US$ 30 mil. Segundo esta lei, se um dos cônjuges causa dor ao outro ou destruição da família deve responder por isso, com a indenização cabível. E a traição da mulher tornou o marido milionário, em razão de condenação do amante da esposa em US$ 1,4 milhão. Após 10 anos de casamento, com filhos comuns, a mulher abandonou o marido, para viver com um namorado que teve na época do curso colegial, o que trouxe a aplicação da referida lei, que alcança até mesmo o terceiro que é cúmplice do adultério.

No Direito Brasileiro não existe lei específica sobre a aplicação dos princípios da responsabilidade civil às relações familiares. No entanto, há regra geral sobre a responsabilidade civil, pela qual aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano (art. 159 do Código Civil). Esta regra é perfeitamente aplicável às relações de família (v. “Reparação civil na separação e no divórcio”, tese de doutorado defendida pela articulista na USP, publicada pela Editora Saraiva em 1999).

É incontestável que a perda do afeto da pessoa amada traz dor, tristeza, desespero, depressão e outros sentimentos negativos. Há, portanto, dano moral, expressão utilizada nos meios jurídicos para qualificar estes sentimentos.

Mas, para que exista o direito à indenização é necessário o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, que não se resumem ao dano, seja moral ou patrimonial. Há outros dois requisitos da responsabilidade civil subjetiva e do conseqüente direito à indenização: o ato ilícito e o nexo causal entre o ato ilícito e o dano. O ato ilícito decorre do descumprimento de dever legal ou contratual.

Quando uma pessoa casada deixa de amar a outra, não pratica qualquer ato ilícito, porque não há, nem mesmo no casamento, o dever de amar o consorte. Se não há dever, não pode haver descumprimento de dever e, portanto, não pode existir ato ilícito.

No entanto, as pessoas casadas têm o dever de fidelidade, que é o dever de lealdade, sob o aspecto físico e moral, quanto à manutenção de relações que visem à satisfação do instinto sexual dentro da sociedade conjugal. Este dever é estabelecido no art. 231, I, do Código Civil, como dever oriundo do casamento civil, e no art. 2º, inciso I, da Lei nº 9.278 de 10/05/96, como dever originado da união estável.

Se há descumprimento do dever de fidelidade por parte de uma pessoa casada ou que viva em união estável, há ato ilícito. Se desse ato ilícito decorre dano, que na maioria das vezes é de ordem moral, pelo sofrimento que a traição causa, haverá o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil e, por conseguinte, o direito à indenização do consorte ofendido, traído na relação conjugal ou de união estável.

E, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que o cônjuge que descumpre dever conjugal, no caso o dever de respeito, deve pagar indenização pelos danos morais ocasionados à consorte. Este dever é jurídico e não só moral, está estabelecido no Código Civil, art. 231, inciso III, sob a denominação de dever de mútua assistência (v. “Dever de assistência imaterial entre cônjuges”, dissertação de mestrado defendida pela articulista na USP, publicada pela Editora Forense Universitária em 1990).

O julgado do STJ versou sobre uma separação judicial, em que a mulher, durante o casamento, foi agredida em sua honra, com humilhações constantes feitas por seu marido, incluindo o cerceamento de sua liberdade, sendo que, tendo fugido do lar conjugal, por estar em risco sua integridade física, foi abandonada materialmente pelo marido, sobrevivendo às custas da caridade de amigos. Tratava-se de um casal de libaneses, que, embora residentes no Brasil desde 1981, não tinha, da parte do marido, a assimilação da cultura ocidental, sendo sua prática costumeira tratar a mulher como subordinada e ser inferior.

O TJ-SP considerou que embora existisse descumprimento por parte do marido do dever de respeitar a consorte, inexistia o direito desta última à indenização, em razão dos referidos costumes. O STJ reformou esta decisão, para condenar o marido a pagar à mulher uma indenização, já que estavam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil: ato ilícito (descumprimento do dever de mútua assistência imaterial ou respeito recíproco) ligado, pelo nexo causal, ao dano moral por ela sofrido.

Conclui-se que, tanto nos EUA, como no Brasil, a matéria em tela merece a atenção dos estudiosos do Direito, especialmente quando se avizinha um novo Código Civil e o Direito de Família está em plena evolução.

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