Críticas de má fé

Costa Leite alerta para risco de convulsão social no Brasil

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15 de fevereiro de 2001, 23h00

O presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Paulo Costa Leite, alertou para o risco das constantes críticas de “má-fé” formuladas contra a Justiça por autoridades de outros Poderes.

“Se o descrédito na atuação do Poder Judiciário for consolidado na sociedade civil, estará aberto o caminho para a convulsão social, a desobediência civil e o rompimento do Estado Democrático de Direito”.

A afirmação do presidente do STJ foi feita no plenário, do Tribunal de Justiça de São Paulo, para uma platéia de juristas e magistrados que foram assistir à entrega do “Colar do Mérito Judiciário” outorgado a Costa Leite, a mais alta condecoração do Judiciário paulista.

O presidente do STJ enfatizou que é a Justiça que dá conteúdo ao Estado Democrático de Direito. “Não se trata, em absoluto, de sermos impermeáveis à crítica. Ao contrário, quando realizada no campo das idéias, a crítica torna-se renovadora e construtiva. Porém, quando impregnada de má-fé, encobrindo na verdade outros propósitos, não é apenas o Judiciário que perde, mas todos”, afirmou Costa Leite, para quem o Judiciário, dentre os outros Poderes, “é aquele que mais depende de credibilidade para exercer sua missão”.

Durante seu discurso, o presidente do STJ também mencionou a necessidade de adequação do Poder Judiciário à ordem jurídica prevista no texto constitucional de 1988, “que tem como pressuposto básico a redução das desigualdades sociais”.

Segundo Paulo Costa Leite, a superação dos problemas da máquina judiciária é o principal desafio institucional a ser enfrentado no início do milênio. “Já está passando da hora de tornar realidade o sonho da Justiça acessível, efetiva e qualificada”.

Na identificação das causas da principal mazela do Judiciário, a morosidade, Costa Leite apontou como principais problemas o anacronismo das leis processuais e a litigiosidade excessiva dos órgãos da administração pública.

“Lamentavelmente, o próprio Estado tem se servido do colapso da Justiça para adiar o cumprimento de obrigações, ou mesmo para impor planos econômicos que atropelam direitos e afrontam a Constituição”, criticou.

Após defender uma reformulação das leis processuais, que contêm “um desmedido formalismo processual”, e a revisão do sistema de recursos judiciais, “que retarda a solução definitiva das causas”, o presidente do STJ voltou a defender a adoção de um freio para o uso excessivo de Medidas Provisórias.

“As sucessivas reedições e modificações de texto têm prestado um desserviço ao país, criando um clima de incerteza e insegurança jurídica”.

O presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo, Rui Celso Reali Fragoso, também foi agraciado com o Colar do Mérito Judiciário. A comenda foi instituída em 1989 com o propósito de homenagear pessoas que tenham prestado serviços à cultura jurídica. Desde a sua criação, o Colar do Mérito Judiciário é outorgado anualmente a personalidades do mundo jurídico que não integram o quadro de desembargadores do TJ-SP.

Leia, na íntegra, o discurso do ministro Paulo Costa Leite na solenidade de recebimento do Colar do Mérito Judiciário

É sumamente honrado e com indisfarçável orgulho que compareço a esta vetusta Casa de Justiça, na companhia ilustre do Presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo, Doutor Rui Celso Reali Fragoso, para receber o Colar do Mérito Judiciário, cobiçada láurea que tem o timbre do conceito e da respeitabilidade de uma instituição cuja história desvanece a alma bandeirante e tanto enaltece o Poder Judiciário brasileiro.

Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, excederam-se em generosidade ao incluírem o meu nome no quadro de honra onde estão insculpidos o de notáveis personalidades.

Não ignoro, no meu caso, a desproporção que existe entre o merecimento do homenageado e o vulto da homenagem. O que, em certa medida, assossega o meu espírito, ao ser assim tão altamente distinguido por este egrégio Tribunal, é a certeza advinda do juízo mais severo, que é o da nossa própria consciência, de ter a toga que envergo no colendo Superior Tribunal de Justiça as marcas indeléveis da dignidade e do trabalho.

Ocupando agora a presidência de meu tribunal – o Tribunal da Cidadania como hoje é conhecido – tenho procurado incessantemente cumprir o compromisso de primeira hora atinente à defesa institucional, na compreensão, tal como ressaltei em meu discurso de posse, de que o Judiciário é também um Poder Político, que precisa fazer-se ouvir com autoridade e firmeza.

A preocupação com o fortalecimento do Poder Judiciário tem sido o meu norte desde então, e as prontas respostas às críticas que lhe fazem situam-se nesse contexto. Não se trata, em absoluto, de sermos impermeáveis à crítica.

Ao contrário, quando realizada no campo das idéias, a crítica torna-se renovadora, construtiva. Porém, quando impregnada de má-fé, encobrindo na verdade outros propósitos, não é apenas o Judiciário que perde, todos perdem.

O Judiciário é dos três Poderes da República aquele que mais depende de credibilidade para exercer sua missão. Seu descrédito acaba sendo o dos demais Poderes, na medida em que o próprio Estado se vê fragilizado.

O que dá conteúdo ético e social ao Estado Democrático de Direito é exatamente a Justiça. E, por essa razão, não hesito em fazer este alerta: se o descrédito na atuação do Judiciário for consolidado na sociedade civil, estará aberto o caminho para a convulsão social, a desobediência civil e o rompimento do Estado Democrático de Direito.

É imperioso, pois, lutar por um Judiciário forte e independente, condizente com os anseios da sociedade pela real cidadania. Em verdade, já está passando da hora de tornar realidade o sonho da Justiça acessível, efetiva e qualificada.

Revitalizada a ordem jurídica pela Constituição de 1988, a sociedade anseia vê-la mais justa, o que tem como pressuposto básico a redução das desigualdades sociais. Fora daí, estiola-se por completo a noção de cidadania e, em tais circunstâncias, não se tem mais que arremedo de democracia.

Na conjugação de forças que se impõe para mudar quadro tão sombrio, toca ao Poder Judiciário tarefa fundamental. Uma justiça capaz de atender a todos, sem exclusão, constitui passo gigantesco, voltado a assegurar aquele mínimo de dignidade a partir do qual se pode falar em cidadania.

De outra parte, urge atacar as causas da morosidade da prestação jurisdicional. No particular, sem que isso sirva a obnubilar as causas internas, não se pode deixar de constatar que pesam mais as causas externas, tais como o anacronismo das nossas leis processuais e a excessiva litigiosidade da administração pública em todos os seus níveis – recente estatística do STJ revela que 85% dos recursos têm ente público em um dos pólos da relação processual.

Lamentavelmente, é uma triste realidade. O próprio Estado tem se servido do colapso da Justiça para adiar o cumprimento de obrigações, ou mesmo para impor planos econômicos que atropelam direitos e afrontam a Constituição.

Em nosso país, além do desmedido formalismo processual, tem-se um sistema de recursos que precisa ser urgentemente revisto, especialmente no que diz com acesso às instâncias extraordinárias.

A forma como hoje isso ocorre desvaloriza as instâncias ordinárias e retarda a solução definitiva dos litígios. E é por aí que se faz mister repensar o nosso sistema de execução dos julgados, que se acha inteiramente superado.

É bom que se enfatize aqui a necessidade de dotar o Judiciário de meios indispensáveis ao satisfatório atendimento das demandas da sociedade. Sem estrutura – aí entendidos magistrados suficientes e bem formados, pessoal, equipamentos e recursos mínimos para provê-los – a Justiça não tem como cumprir com eficiência o seu papel. Nesse passo, não se pode deixar de anotar o inevitável agravamento de problemas se o Poder Legislativo e o Poder Executivo não forem sensíveis às gravíssimas questões que dizem com a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Nessa ordem de idéias, é fundamental ainda que se discipline o uso das Medidas Provisórias, instrumento que, em razão dos abusos envolvendo as sucessivas reedições e modificações de texto, tem prestado um desserviço ao país , criando um clima de incerteza e insegurança jurídica. Imaginem-se os efeitos de 4.500 medidas provisórias nestes últimos seis anos, algumas delas sobrepondo-se às outras.

Estamos com a Reforma do Judiciário em tramitação no Congresso Nacional e o que se desenha à nossa vista até aqui não é nada animador. A esperança é que o Senado da República modifique e aprimore o texto que saiu da Câmara dos Deputados.

É preciso sim dar nova feição ao Judiciário, modernizá-lo, adaptá-lo enfim aos novos tempos. Isso é inegável, mas, como começo de tudo, impõe-se o respeito à intocável independência jurídica do juiz, no sentido de que, no exercício da jurisdição , ele não se subordina senão à lei e à sua consciência, o que, a seu turno, não prescinde da independência política, da qual o autogoverno é expressão maior.

Finalizando, recordo palavras de Joaquim Nabuco: “É preciso dar tempo para crescer a árvore que tem de viver séculos. Não se deve esperar que dê sombra antes de criar raízes. Por ora ela depende de cada um”. Metaforicamente, essa árvore é a Justiça que se renova. Proveio de uma árvore forte e antiga, de valor e mérito reconhecidos, mas é semente; lançada em terra fértil, é certo, contudo precisa de tempo para se fortalecer. Sua capacidade de frutificar depende de quanto estamos dispostos a fazer para dar-lhe vigor.

Agradecendo as generosas e estimulantes palavras com que fui saudado, reitero os meus agradecimentos a Vossa Excelência, Senhor Presidente, e aos demais ínclitos membros deste Tribunal, que me permitiram vivenciar este momento de júbilo, e rogo ao Senhor continue a nos dar luz e serenidade para os embates que ainda hão de vir. Muito obrigado.

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