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Insegurança sobre ITBI afeta municípios, cartórios e contribuintes

31 de julho de 2022, 8h44

Por Danilo Vital

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Ao que tudo indica, o Brasil não está pronto para pôr em prática a tese segundo a qual o fator de incidência para a cobrança do Imposto Sobre Transmissão inter vivos de Bens Imóveis (ITBI) é o momento do registro no cartório de imóveis.

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Mesmo após tese do STF, cartórios seguiram exigindo ITBI quitado para lavrar escrituras
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O enunciado foi fixado pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento com repercussão geral, em fevereiro de 2021. A tese colocou os cartórios de notas em uma sinuca de bico e ligou o alerta de arrecadação para os municípios, responsáveis por tributar as operações imobiliárias.

Trata-se de um mercado que, segundo estimativa da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi), movimentou R$ 99 bilhões em 2021 e tem tendência de alta para 2022, apesar da taxa de juros e da pressão inflacionária.

O rito de quem adquire um imóvel passa por lavrar a escritura de compra e venda no cartório de notas e, depois, registrar a transferência da propriedade no cartório de registro de imóveis. Segundo o STF, é só após esse último movimento que o ITBI pode ser cobrado.

O problema é que há na legislação federal um complexo de normas ainda válidas que impõem aos notários e aos oficiais de registro que exijam a comprovação do pagamento do ITBI para lavrar escrituras relacionadas à transmissão de propriedade imóvel.

Para os municípios, isso é o que garante que o tributo será devidamente recolhido. Caso contrário, o que ocorre é a compra e revenda de imóveis em acúmulo de transmissões em que, sem o devido registro no cartório de imóveis, não há a incidência do ITBI.

Essa cobrança antecipada é reforçada por leis de muitos dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros. E, no âmbito estadual, essa costumava ser a orientação das Corregedorias-Gerais de Justiça, órgãos responsáveis pela fiscalização das atividades cartorárias.

Segundo o advogado Wallace Wu, do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados, o resultado prático são casos em que cartórios, ao adotar a tese do STF e registrar as transferências sem a comprovação de quitação do ITBI, correm o risco de serem sancionados e processados.

"Em outros casos", disse ele, "foi possível perceber que as partes contratantes têm utilizado essa tese para não recolher o ITBI no ato da lavratura da escritura, em razão de planejamento tributário e financeiro, como também para se certificar de que a transferência da propriedade será registrada".

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ITBI é o imposto municipal cobrado na transação de compra e venda de um imóvel
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Cobrança antecipada
A possibilidade da cobrança antecipada do ITBI teve a constitucionalidade contestada recentemente pelo PSDB. O partido alegou que, apesar da tese do STF sobre o fato gerador do imposto, diversos cartórios no país mantiveram a exigência da quitação para a efetuação do registro da operação imobiliária.

São três as normas que criam uma sinuca de bico para os notários. A primeira é o artigo 1º, parágrafo 2º, da Lei 7.433/1985, que prevê que o tabelião registre no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do ITBI. As outras duas atribuem responsabilidade aos cartorários pelo cumprimento dessa premissa.

O artigo 289 da Lei 6.015/1973 diz que cabe aos oficiais de registro fazer "rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício". E o artigo 30 da Lei 8.935/1994 estabelece como dever dos notários "fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar".

Para o PSDB, a cobrança antecipada é indevida, pois anterior ao fato gerador. A transmissão da propriedade imobiliária e os direitos reais a ela relativos somente se dão mediante o registro da operação.

A Advocacia-Geral da União discordou. Em parecer, argumentou que a apresentação do comprovante de quitação do ITBI é mera garantia de que as obrigações tributárias sejam cumpridas. Graças à tecnologia, o pagamento pode ser feito até mesmo no ato da transferência efetiva da propriedade, na presença do notário ou oficial de registro.

A Procuradoria-Geral da República seguiu linha parecida. Ela afirmou em parecer que essa forma de atuar pelos cartórios é constitucional, que a antecipação tributária está fundada em lei formal e que há inescapável conexão entre as fases de assinatura do instrumento público de compra e venda e o posterior registro no cartório de registro de imóveis.

Em sentido oposto, as Corregedorias de Justiça dos estados têm alterado suas regras e orientações de modo a se adequar à tese do STF. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Ceará, no Amazonas, no Espírito Santo e em Pernambuco.

No Paraná, a atualização do procedimento trouxe uma ressalva: embora o fato gerador do ITBI seja o registro no cartório de imóveis, o notário sempre recomendará, por razões de segurança jurídica, o recolhimento do imposto antes da lavratura da escritura. Se mesmo assim a parte não pagar,  o título deverá conter a advertência de que o direito de propriedade só se adquire mediante o registro da escritura no cartório de imóveis.

Em junho de 2021, o Plenário virtual do STF optou por não conhecer da ação do PSDB (clique aqui para ler o acórdão). A corte entendeu que as normas contestadas estão ligadas à responsabilidade tributária dos notários e registradores. Esta, por sua vez, é prevista no artigo 134, VI, do Código Tributário Nacional, que deveria ter sido, mas não foi  contestado na ação.

Nelson Jr./STF
STF fixou tese sobre ITBI e, depois, não analisou no mérito uma ADI sobre o tema
Nelson Jr./STF

Ruim para todo mundo
Assessor jurídico da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais Brasileiras (Abrasf), o advogado Ricardo Almeida Ribeiro da Silva afirma que o tema tem reflexo prático gigantesco para os municípios, pois causa não só queda de arrecadação, como permite a acumulação de atos de transferência e cessão de direitos de propriedade.

Ele explica que, ainda que o momento do fato gerador do ITBI seja o registro no cartório de imóveis, a antecipação da cobrança oferece praticidade e segurança jurídica para as partes, o Fisco e os notários e os registradores. "Só quem não tem boa-fé quer escapar do recolhimento antecipado".

Isso porque a Constituição autoriza que o tributo possa ser cobrado de qualquer uma das partes. A depender da legislação municipal, mesmo o vendedor pode ser responsabilizado. Ele possivelmente não conseguirá registrar a alienação do bem sem pagar o imposto.

"Ninguém faz escritura de compra e venda definitiva se não for para levar a registro", continua Ribeiro da Silva. Ele afirma que a aplicação da tese do STF cria "um cenário dantesco desnecessário em que só se justifica essa demora nos casos de má-fé para estimular evasão fiscal".

Além disso, a lavratura da escritura é o momento mais importante da transação. É quando há a manifestação da capacidade contributiva. Já o registro da operação no cartório de imóveis é apenas um ato formal. "O fato gerador do ITBI, ainda que sem registro, pode ser presumido", defende o assessor jurídico.

Enquanto isso, os municípios ficarão à mercê da evasão tributária. Para mensurar o impacto, a Abrasf usou o exemplo de Manaus, uma cidade de pouco mais de dois milhões de habitantes, cuja estimativa é de que 8% das propriedades urbanas tenham ao menos um acúmulo de transmissão não registrado.

São pessoas físicas e jurídicas que compraram e revenderam imóveis, por meio de escrituras lavradas, e que não registraram as transferências no cartório de imóveis. A Abrasf indicou ao STF a existência de "um mercado de cessões de promessas de compra e venda, cessões de escrituras de compra e venda e até de cessões de cessões, tudo para evitar o pagamento do ITBI".

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Tese afetou arrecadação das prefeituras e atividades cartorárias e notariais no Brasil
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Como resolver
Para o advogado Wallace Wu, a resolução desse embate normativo será feita pelos cartórios no caso a caso, a depender da legislação municipal e das regras da Corregedoria-Geral de Justiça local.

Já Ricardo Almeida Ribeiro da Silva destaca que a tese fixada pelo STF não é, ainda, definitiva. O município de São Paulo, autor do recurso julgado pelo Supremo, interpôs embargos de declaração contestando o procedimento usado pela corte para julgar o mérito.

"Não tem decisão dos tribunais superiores com caráter vinculante e trânsito em julgado. Por isso, os municípios não vão alterar (suas normas). Tem gente até entrando com ação, conseguindo liminares. Mas a posição dos municípios é baseado na Constituição, na lei federal e em precedentes".

Recentemente, a ConJur noticiou a aplicação da tese do STF em processo julgado na Justiça estadual e o uso dela pelo Superior Tribunal de Justiça. A revista eletrônica publicou também dezenas de artigos com opiniões de especialistas sobre o tema.

Para Florence Haret Drago, do NHM Advogados, a interpretação constitucional dada pelo STF torna inadmissível a cobrança antecipada do ITBI e o respaldo do Judiciário a qualquer demanda judicial nesse sentido tem grandes chances de êxito, seja de forma preventiva ou mesmo repreensiva — para restituir valores que tenham sido pagos antes da hora, por exemplo.

Amanda Oliveira Falcão classificou a decisão do STF como acertada. E Ana Lúcia Pereira Tolentino, do Braga & Garbelotti, acredita que é de se esperar que municípios e oficiais de registro de imóveis não mais insistam no recolhimento antecipado do ITBI.

Artigo assinado por Priscila Faricelli, Marc Stalder e Marco Favini reforça essa necessidade de readequação dos municípios, para afastar a insegurança jurídica e os processos ajuizados por contribuintes. Já a advogada Ana Carolina Osório, do escritório Osório Batista Advogados, informou que já há mudança significativa nos procedimentos adotados em alguns cartórios.

ARE 1.294.969 (STF)
ADI 7.086 (STF)
AREsp 1.760.009 (STJ)